Trabalho escrito para a disciplina de Antropologia das Religiões, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião
É um
facto que uma observação casual da religião hindu induz imediatamente a
sensação inquietante de uma idolatria quase sem limites e de um politeísmo
absolutamente explícito. Aliás, a Índia encerra, em si mesma, um excesso
evidente. Um excesso demográfico, por certo, mas, mais importante, um excesso
social. E, como veremos, nada disto é alheio à religião, ao Hinduísmo. É um
país imenso, não só demográfica ou geograficamente, mas antes e principalmente
nos seus contrastes evidentes, do ponto de vista social e ético.
O Hinduísmo deriva dos conceitos
religiosos trazidos pela invasão ariana do subcontinente indiano, algures entre
os séculos X e XIV antes da nossa era. É um facto que antes disso, muito antes
disso, já os indianos cultivavam e floresciam civilizações grandiosas, como a
de Harappa (ou Mohenjo Daro), no vale fértil do Indo, civilizações
contemporâneas das primeiras cidades do mundo. Mas dessa realidade ficaram os
testemunhos arqueológicos e pouco mais, pois perdeu-se todo o contacto com
essas sociedades. A invasão ariana trouxe o sânscrito, a língua sagrada, bem
como os primeiros textos sagrados, os Veda.
A
interrogação de Carmo faz todo o
sentido. Nada na Índia é aquilo que parece, e muito menos a fonte de todo o
sistema social indiano, o Hinduísmo. Na verdade, e passado o espanto perante o
imenso panteão indiano, semelhante apenas ao do Egipto faraónico, a questão do
politeísmo hindu permanece mal resolvida. Quando Carmo diz: “ (…), somos de imediato tentados a classificar as
tradições hindus como idólatras e “politeístas”. (…)”, é de frisar a palavra “tentados”. A
verdade, como o próprio autor inquire, é algo mais complexa que aquilo que
parece.
Há várias dimensões que podem ser analisadas no que
se refere à ambiguidade extrema da religião hindu. A primeira prende-se com as
suas principais divindades. E a principal, quiçá o princípio das coisas, é o
Brahman. Este pode ser considerado como um deus, mas a verdade é que não é
apenas mais um deus. Brahman é, antes de mais, um conceito, e é o mais
importante conceito hindu. É, tão só, e apenas, Deus. Um ser que não é um ser,
mas sim um Uno, uma unidade de todos os seres – unidade onde, aliás, se diluem
aqueles que atingem finalmente, e depois de várias transmigrações, o direito de
se fundirem a Brahman.
Emanando de Brahman, há três figuras principais.
Não são diversas de Brahman, mas estão abaixo dele e são diversas entre si: Brama,
Vishnu e Siva, os deuses da criação, da conservação e da destruição. É, antes
de mais, uma contradição em si própria. Brahman é absoluto e absolutamente
transcendental, para lá de qualquer representação que a mente humana possa imaginar.
É uno, é Deus. Mas depois, e dele emanados, aparecem Brama, Vishnu e Siva. Há,
então, politeísmo ou não? Na verdade, o conceito politeísta não pode ser
aplicado correctamente ao Hinduísmo. Hulin e Kapani, na obra coordenada
por Delumeau, “As Grandes Religiões do Mundo”, afirmam: “Politeísmo,
é certo, mas de carácter fluido. As múltiplas entidades [veneradas] (…) possuem
uma individualidade tão débil e tão indefinida que se fundem facilmente ou se
transformam umas nas outras. São sentidas (…) como modalidades locais e
temporárias da presença entre nós de um divino em si mesmo informe e, por isso
mesmo, capaz de todas as metamorfoses.”.
Ou seja, o politeísmo hindu não é referente ao
nosso conceito de politeísmo, pois os vários deuses, embora distintos entre si,
não são mais que diversas formas de Deus, de Brahman, que, estando para além da
compreensão humana, concede forma aos seus avatares. E pode inclusivamente
multiplicar-se, como no caso de Vishnu, o deus mais venerado entre as castas
superiores, que se multiplica em formas como Rama, Krshna, Buddah ou Kalkin,
para falar apenas dos quatro últimos.
A afirmação de von Stietencron induz mais
variedade de conceitos que apenas o politeísmo. Aliás, a própria existência de Brahman
induz a um outro conceito: o panteísmo – pois se é informe, transcendental e
para lá da compreensão, ele é tudo. E é certo que uma das representações de Krshna,
no Bhagavad-Gîtâ, mescla claramente a figura antropomórfica do deus com
o que dele emana: a representação de toda a existência. Assim, é um conceito
também ele fluido, não exacto, pouco explicável. Ou seja, como conceito, é
imperfeito. O panteísmo indiano é uma sensação, uma espécie de constatação
lógica subjacente à confusão aparente.
É
neste contexto que faz todo o sentido a afirmação de von Stietencron: “somos
finalmente confrontados com expressões de fé que vão desde a utilização de
poderes mágicos nos ritos de fertilidade e nos cultos sacrificiais até à
concepção de um absoluto não antropomórfico, que escapa às categorias do
pessoal e do impessoal, que transcende toda a representação humana, passando
por todos as cambiantes de crenças politeístas, dualistas e monoteístas.”. Hulin e Kapani vão mais longe: “(…) a
própria noção de panteísmo parece ambígua (…) [mais] sob a forma de um
sentimento, quase de uma sensação, que de um conceito.”.
A religião hindu é uma religião cheia de dualismos.
E um desses é o dualismo politeísmo/monoteísmo. Mas, para o hindu, um conceito
não anula o outro. Ao nível teosófico, Brahman é o Uno, é Deus, é o Todo. Mas
não pode negar-se a existência de outros deuses, distintos entre si, ainda que
emanados de Brahman. Por outro lado, um hindu pode ter, em fases diferentes da
sua vida, diversos deuses merecedores da sua veneração máxima, se bem que normalmente
apenas venere um de cada vez. Ou seja, também o conceito de monoteísmo é
extremamente fluido. Como dizem Hulin e Kapani: “Este “monoteísmo
alternativo” (…) é absolutamente característico da sociedade hindu.”.
E falar de fluidez religiosa numa sociedade
rigidamente estratificada em castas não é mais que um outro dualismo hindu, já
que é a própria religião que determina, até aos dias de hoje e apesar de banido
pela Lei, o sistema de castas. Através das Leis de Manu, por exemplo.
E não se ficam por aqui os dualismos e ambiguidades
hindus. De tudo isto decorre uma representação bissexuada do sagrado. Pois é
certo que se ao processo de recolhimento de Brahman na sua forma indefinida e
fechada em si mesma, inatingível e transcendental corresponde uma dimensão
masculina, o processo inverso, o das milhentas representações induz uma
dimensão feminina. Hulin e Kapani afirmam: “Daí a ideia de
imaginar a via divina das espécies de como que um jogo amoroso entre um
princípio masculino (o absoluto recolhido em si mesmo) e um princípio feminino
de movimento e de expansão na multiplicidade.”.
Aliás, esta dualidade masculino/feminino na
religião hindu é por demais evidente na própria tríade celebrada pelos três
movimentos: criação (Brama), normalmente associado ao sexo feminino,
conservação (Vishnu) como o equilíbrio entre os sexos, e a destruição (Siva),
claramente identificável como um elemento masculino.
Por fim, mais um exemplo de dualidade, ligada ao
que afirmou von Stietencron, reproduzido acima. Os deuses hindus têm, na
verdade, dois aspectos: o universal e longínquo e outro, mais próximo e,
portanto, mais protector. Ou seja, independentemente de a morada dos deuses ser
uma espécie de paraíso, os seus avatares (de avatâra – lit.
“descida”) multiplicam a sua existência ligada a determinadas regiões, locais
ou até famílias, passando a funcionar como uma espécie de protectores quase
pessoais dos fiéis – tal como von Stietencron afirma – tomando estes
cultos a forma de ritos mágicos ou de sacrifício (não confundir com os
sacrifícios primordiais descritos nos Veda).
Em suma, a ambiguidade é uma característica
indiana, indelevelmente marcada por uma religião dominante e prescritora, mas
simultaneamente tão ambígua que quase cada fiel pode desenvolver a sua forma de
culto e entendimento sobre o divino.
Bibliografia:
·
Carmo,
António – Antropologia das Religiões.
Lisboa, Universidade Aberta, 2001. 1ª Edição, ISBN 978-972-674-359-0
·
Delumeau, Jean – As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Presença, 1997. 2ª Edição,
ISBN 972-23-2241-9
Conselho. Vê o filme "Quem quer ser bilionário". É um retrato fiel da Sociedade na Índia.
ResponderEliminarBelíssimo texto e síntese!
ResponderEliminarLiz