sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A AMBIGUIDADE HINDU




 Trabalho escrito para a disciplina de Antropologia das Religiões, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião


É um facto que uma observação casual da religião hindu induz imediatamente a sensação inquietante de uma idolatria quase sem limites e de um politeísmo absolutamente explícito. Aliás, a Índia encerra, em si mesma, um excesso evidente. Um excesso demográfico, por certo, mas, mais importante, um excesso social. E, como veremos, nada disto é alheio à religião, ao Hinduísmo. É um país imenso, não só demográfica ou geograficamente, mas antes e principalmente nos seus contrastes evidentes, do ponto de vista social e ético.

O Hinduísmo deriva dos conceitos religiosos trazidos pela invasão ariana do subcontinente indiano, algures entre os séculos X e XIV antes da nossa era. É um facto que antes disso, muito antes disso, já os indianos cultivavam e floresciam civilizações grandiosas, como a de Harappa (ou Mohenjo Daro), no vale fértil do Indo, civilizações contemporâneas das primeiras cidades do mundo. Mas dessa realidade ficaram os testemunhos arqueológicos e pouco mais, pois perdeu-se todo o contacto com essas sociedades. A invasão ariana trouxe o sânscrito, a língua sagrada, bem como os primeiros textos sagrados, os Veda.

A interrogação de Carmo faz todo o sentido. Nada na Índia é aquilo que parece, e muito menos a fonte de todo o sistema social indiano, o Hinduísmo. Na verdade, e passado o espanto perante o imenso panteão indiano, semelhante apenas ao do Egipto faraónico, a questão do politeísmo hindu permanece mal resolvida. Quando Carmo diz: “ (…), somos de imediato tentados a classificar as tradições hindus como idólatras e “politeístas”. (…)”, é de frisar a palavra “tentados”. A verdade, como o próprio autor inquire, é algo mais complexa que aquilo que parece.

Há várias dimensões que podem ser analisadas no que se refere à ambiguidade extrema da religião hindu. A primeira prende-se com as suas principais divindades. E a principal, quiçá o princípio das coisas, é o Brahman. Este pode ser considerado como um deus, mas a verdade é que não é apenas mais um deus. Brahman é, antes de mais, um conceito, e é o mais importante conceito hindu. É, tão só, e apenas, Deus. Um ser que não é um ser, mas sim um Uno, uma unidade de todos os seres – unidade onde, aliás, se diluem aqueles que atingem finalmente, e depois de várias transmigrações, o direito de se fundirem a Brahman.

Emanando de Brahman, há três figuras principais. Não são diversas de Brahman, mas estão abaixo dele e são diversas entre si: Brama, Vishnu e Siva, os deuses da criação, da conservação e da destruição. É, antes de mais, uma contradição em si própria. Brahman é absoluto e absolutamente transcendental, para lá de qualquer representação que a mente humana possa imaginar. É uno, é Deus. Mas depois, e dele emanados, aparecem Brama, Vishnu e Siva. Há, então, politeísmo ou não? Na verdade, o conceito politeísta não pode ser aplicado correctamente ao Hinduísmo. Hulin e Kapani, na obra coordenada por Delumeau, “As Grandes Religiões do Mundo”, afirmam: “Politeísmo, é certo, mas de carácter fluido. As múltiplas entidades [veneradas] (…) possuem uma individualidade tão débil e tão indefinida que se fundem facilmente ou se transformam umas nas outras. São sentidas (…) como modalidades locais e temporárias da presença entre nós de um divino em si mesmo informe e, por isso mesmo, capaz de todas as metamorfoses.”.

Ou seja, o politeísmo hindu não é referente ao nosso conceito de politeísmo, pois os vários deuses, embora distintos entre si, não são mais que diversas formas de Deus, de Brahman, que, estando para além da compreensão humana, concede forma aos seus avatares. E pode inclusivamente multiplicar-se, como no caso de Vishnu, o deus mais venerado entre as castas superiores, que se multiplica em formas como Rama, Krshna, Buddah ou Kalkin, para falar apenas dos quatro últimos.

A afirmação de von Stietencron induz mais variedade de conceitos que apenas o politeísmo. Aliás, a própria existência de Brahman induz a um outro conceito: o panteísmo – pois se é informe, transcendental e para lá da compreensão, ele é tudo. E é certo que uma das representações de Krshna, no Bhagavad-Gîtâ, mescla claramente a figura antropomórfica do deus com o que dele emana: a representação de toda a existência. Assim, é um conceito também ele fluido, não exacto, pouco explicável. Ou seja, como conceito, é imperfeito. O panteísmo indiano é uma sensação, uma espécie de constatação lógica subjacente à confusão aparente.

É neste contexto que faz todo o sentido a afirmação de von Stietencron: “somos finalmente confrontados com expressões de fé que vão desde a utilização de poderes mágicos nos ritos de fertilidade e nos cultos sacrificiais até à concepção de um absoluto não antropomórfico, que escapa às categorias do pessoal e do impessoal, que transcende toda a representação humana, passando por todos as cambiantes de crenças politeístas, dualistas e monoteístas.”. Hulin e Kapani vão mais longe: “(…) a própria noção de panteísmo parece ambígua (…) [mais] sob a forma de um sentimento, quase de uma sensação, que de um conceito.”.

A religião hindu é uma religião cheia de dualismos. E um desses é o dualismo politeísmo/monoteísmo. Mas, para o hindu, um conceito não anula o outro. Ao nível teosófico, Brahman é o Uno, é Deus, é o Todo. Mas não pode negar-se a existência de outros deuses, distintos entre si, ainda que emanados de Brahman. Por outro lado, um hindu pode ter, em fases diferentes da sua vida, diversos deuses merecedores da sua veneração máxima, se bem que normalmente apenas venere um de cada vez. Ou seja, também o conceito de monoteísmo é extremamente fluido. Como dizem Hulin e Kapani: “Este “monoteísmo alternativo” (…) é absolutamente característico da sociedade hindu.”.

E falar de fluidez religiosa numa sociedade rigidamente estratificada em castas não é mais que um outro dualismo hindu, já que é a própria religião que determina, até aos dias de hoje e apesar de banido pela Lei, o sistema de castas. Através das Leis de Manu, por exemplo.

E não se ficam por aqui os dualismos e ambiguidades hindus. De tudo isto decorre uma representação bissexuada do sagrado. Pois é certo que se ao processo de recolhimento de Brahman na sua forma indefinida e fechada em si mesma, inatingível e transcendental corresponde uma dimensão masculina, o processo inverso, o das milhentas representações induz uma dimensão feminina. Hulin e Kapani afirmam: “Daí a ideia de imaginar a via divina das espécies de como que um jogo amoroso entre um princípio masculino (o absoluto recolhido em si mesmo) e um princípio feminino de movimento e de expansão na multiplicidade.”.

Aliás, esta dualidade masculino/feminino na religião hindu é por demais evidente na própria tríade celebrada pelos três movimentos: criação (Brama), normalmente associado ao sexo feminino, conservação (Vishnu) como o equilíbrio entre os sexos, e a destruição (Siva), claramente identificável como um elemento masculino.

Por fim, mais um exemplo de dualidade, ligada ao que afirmou von Stietencron, reproduzido acima. Os deuses hindus têm, na verdade, dois aspectos: o universal e longínquo e outro, mais próximo e, portanto, mais protector. Ou seja, independentemente de a morada dos deuses ser uma espécie de paraíso, os seus avatares (de avatâra – lit. “descida”) multiplicam a sua existência ligada a determinadas regiões, locais ou até famílias, passando a funcionar como uma espécie de protectores quase pessoais dos fiéis – tal como von Stietencron afirma – tomando estes cultos a forma de ritos mágicos ou de sacrifício (não confundir com os sacrifícios primordiais descritos nos Veda).

Em suma, a ambiguidade é uma característica indiana, indelevelmente marcada por uma religião dominante e prescritora, mas simultaneamente tão ambígua que quase cada fiel pode desenvolver a sua forma de culto e entendimento sobre o divino.


Bibliografia:

·         Carmo, António – Antropologia das Religiões. Lisboa, Universidade Aberta, 2001. 1ª Edição, ISBN 978-972-674-359-0

·         Delumeau, Jean – As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Presença, 1997. 2ª Edição, ISBN 972-23-2241-9


2 comentários:

  1. Conselho. Vê o filme "Quem quer ser bilionário". É um retrato fiel da Sociedade na Índia.

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  2. Belíssimo texto e síntese!

    Liz

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