Ilustração Marco Joel Santos |
Do passado guardo os prazeres, do futuro guardo as saudades.
Não é uma má vida viver. Como costumo dizer, o Dark Side é a história da nossa vida, e é uma história triste. Mas entre acordes e recordações, continuamos a ter uma vida que contar. Todos temos uma vida que contar. Nesta altura, depois de tantas provações de doença à mistura com retiros obrigatórios, todos pensamos que de facto temos vidas para contar. E temos. E temos.
Do passado guardo os prazeres. E todos temos prazeres que recordamos com deleite. Provavelmente o maior prazer do passado foi mesmo o de partir, e depois o de chegar. Não partir de um sítio específico, ou o de chegar a um local determinado. Mas antes o prazer de partir apenas, e o prazer de chegar somente. Mas é apenas isso? Partir e chegar? Claro que não é apenas isso.
Houve alturas em que parti para grandes destinos, e que prazer tirei dos destinos que escolhi! Mas sempre que regressei, igualmente retirei o prazer do retorno à zona de conforto, do regresso a casa. E não é que a nossa casa é tantas vezes o nosso local preferido no universo?
Mas tenho saudades do futuro, por certo. Tenho saudades do momento em que voltarei.
Por força das circunstâncias, desde há seis anos que não viajo verdadeiramente, há mais de seis anos que não regresso aos meus locais, às minhas cidades, aos cheiros, cores e matizes que amo profundamente, às gentes que toleramos e aprendemos a amar também. E tenho saudades desse regresso, não a dois como no passado, mas a três no futuro. Bem sei, porque raio deixei para a quarta década de vida cumprir o desígnio último da biologia? Não deixei, são outras histórias, outras recordações, não particularmente prazeres. Mas aqui chegado, não mudaria nada. Não, não creio, não mudaria nada. Até porque nada foi minha escolha. Excepto os destinos, e os prazeres.
Mas voltemos às viagens, voltemos às saudades do futuro. Quero de novo partir. Tenho a vaga noção que aquilo que fiz no passado não poderei repetir no futuro. Há que ser responsável, diria. Há uma alminha pequena que não tem culpa das loucuras dos pais, por isso, "vai com calma". Mas quero aventurar-me novamente, ir El Khalili fora numa noite cálida, desembarcar de comboio naquela estação do lado de cá do rio, na sombra das três senhoras, deixar-me navegar indolentemente rio acima, explorar Karnak. Quero perder-me novamente no Grande Bazar, atravessar o Bósforo, comer milho assado em Besiktas ou creme de arroz na Taksim. Quero poder trautear a música do Indiana Jones enquanto percorro o corredor de Petra, sentir as águas quentes do Mar Morto na pele, comer humus e pão ázimo a sair à sombra de uma parreira, de preferência sem ouvir os tiros do outro lado da fronteira. Quero ver novamente as Taurus e as praias do Egeu, admirar a bela silhueta do Ararat, meditar em Kairouan, perder-me em Fez e comprar relógios genuinamente falsos em Éfeso ou Marraquexe. Ver a Cúpula novamente, nem que seja de novo ao longe.
É deste futuro que tenho saudades. De ir, mas também de levar. De aprender, mas também de ensinar coisas sobre os locais que estudei com tanto prazer. E devo dizer que já me contentava com uns dias em Sevilla a emborcar cañas, pistos e colas de touro, à vista da Giralda ou sentado numa ruela do bairro mouro...
Há mais futuro para se ter saudades. Muito mais. Mas para já é este o futuro que mais saudades me deixa. Porque de resto... casa é o meu local preferido no Universo, onde até estão as minhas pessoas preferidas. Um dia destes partimos e regressamos. E convertemos saudades em prazeres.