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Arranjar um assunto difícil sobre o qual pudesse escrever ás 11:00 de uma noite fria de Domingo nunca foi tão fácil. Egipto. País que não existe, na realidade. O país chama-se MISR, e não Egipto. Mas isso é outra história e toda a gente conhece o país como Egipto e está tudo bem. Além do mais, não falamos árabe.
Tunísia, Egipto, Jordânia... Enfim, países do Médio Oriente e norte de África são para mim muito queridos. O Egipto particularmente. Muito se tem falado sobre o país e o seu presidente, o eterno Mubarak. Os egípcios são afáveis, gente simples com bom trato. Não são tradicionalistas, e o Egipto é o país árabe mais liberal em termos religiosos, de longe. O estado é laico e embora a religião dominante seja a islâmica, não é frequente verem-se burkas ou nikabs. Há uma minoria de cerca de 12% da população que é cristã (não confundir com europeus – são cristãos árabes – também os há), que tem liberdade de culto.
O Egipto é o centro do mundo árabe. O Cairo tem o maior museu arqueológico do Mundo, e é a cidade capital da cultura árabe. É uma urbe de proporções assustadoras, sendo que o Nilo divide a cidade em duas partes distintas, al-Qahïra, de doze milhões de habitantes, e Gizah, de seis milhões, e ao fundo da principal avenida desta última encontram-se as Pirâmides. Num centro comercial, perto do Hospital Central de Gizah, encontrei 46 lojas, sendo que 20 eram de lingerie. É um mundo de contrastes, é uma cidade feia com belezas imensas, grandiosa na sua confusão diária de pó do deserto, comércio desenfreado e trânsito caótico. Cidade onde aterrar de avião é sempre uma aventura extraordinária.
A revolta no Egipto é do povo. O povo egípcio está a pedir mais democracia, mais reformas económicas, menos corrupção. O sistema político egípcio cinge-se a uma palavra: Mubarak. A economia, estruturada em volta das três principais fontes de rendimento: agricultura, primeiro, turismo, depois, e finalmente os recursos minerais (petróleo, fosfatos, metais, etc.), está a dar sinais de evidente ruptura, perante um acréscimo de população de 1,25 milhões por ano. A corrupção é palavra de ordem, e a gorjeta aplica-se a todos os níveis da sociedade egípcia.
É natural a revolta. Mubarak está há mais de 30 anos no poder. O povo anseia por uma cara nova que lhe dê esperanças para o futuro. O problema não é a revolta, mas sim o que dela pode sair. Mubarak não é um homem religioso, e na retina fica, a nível de exemplo, a sua lei que proibiu o uso de nikab ou burka no interior das universidades. É essencialmente um homem prático, que não hesita em fechar as fronteiras com Gazah assim que o Hamas tomou posse do seu governo, que não hesita em manter vivo o acordo de paz com Israel, tão importante para a região, que não hesita em alinhar com o Ocidente em questões de equilíbrio regional. Evidentemente, é um homem incrustado no poder, sem capacidade de delegação, que tudo controla, e que, muito provavelmente, sorve grande parte das riquezas imensas do país. Tudo isto pesado, pede-se que abandone o poder, para que se possa instalar uma democracia.
Mas que regime poderá emergir desta revolta? Assumindo que Mubarak abandone o poder, o que não é ainda certo, será que o Egipto pode vir a ser uma plena democracia? Pode. Poder até pode. Mas estou algo céptico. A esperança, é bem sabido, é a última a morrer, mas organizações potencialmente perigosas como a Irmandade Muçulmana alinham-se rapidamente com os manifestantes. Esta Irmandade está conotada com o Hamas e com o Hezbollah, são fanáticos religiosos que, a troco de uma suposta melhoria das condições de vida do povo, pode implantar-se no poder, decretar a República Islâmica e revogar o Estado Laico. Não precisamos de recuar muito para constatar o que aconteceu no Irão há mais de 30 anos e que ainda perdura. Tenho esperança, mas tenho também um enorme receio de que este país, antes aberto a quem o quisesse visitar, que não impunha qualquer código religioso, em breve se possa tornar em mais um bastião religioso.
Por outro lado, e tal como aconteceu na Tunísia, é preciso questionar os nossos líderes ocidentais. É preciso perguntar-lhes porque apoiaram ditaduras tão longas, por que razão Ali e Mubarak eram considerados amigos do Ocidente mesmo sendo ditadores. É preciso saber por que razão a Ministra dos Negócios Estrangeiros francesa se prontificou a ajudar Ali com meios de controlo de rebeliões urbanas. É necessário fazer estas perguntas todas. E acima de tudo, é necessário que o Ocidente se dê conta do que está a acontecer a tempo. Se a evolução dos acontecimentos levar a democracias plenas, óptimo. Se levarem a Repúblicas Islâmicas, perguntar-se por que razão o povo árabe decide aglutinar-se contra o Ocidente. É necessário lembrar que o problema do Médio Oriente foi criado por uma deficiente descolonização dos países europeus dominantes – o Reino Unido, a França e até a Alemanha – que por diversas vezes e muito tempo se limitaram a lavar as mãos como Pilatos.
A única coisa de que posso estar certo é que o que ficará será sempre a extrema simpatia e simplicidade do povo egípcio. E a sua forma de ver o mundo: o Céu é o Misr, o inferno é tudo o mais.