Trabalho escrito para a disciplina de Antropologia das Religiões, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião
A afirmação de João Paulo II, segundo a
qual “o cristianismo é uma religião entranhada na história” pode parecer
unicamente um lugar-comum. A verdade é que a noção histórica, senão social ou
mesmo política, do cristianismo está fortemente impregnada desse facto inegável
– o cristianismo não é apenas uma teoria religiosa abstracta, mas antes uma
realidade social dificilmente descartável em qualquer discussão no âmbito da
sociedade, de forma geral, e da sociedade e respectivos modelos éticos (e mesmo
morais) ocidentais, em particular.
Há diversos aspectos interessantes na
afirmação, aparentemente inócua, de João Paulo II. Há o aspecto histórico
propriamente dito, o aspecto religioso e o aspecto social. Dado que as raízes
do cristianismo vão muito para além do nascimento de Cristo, tende-se a
procurar justificar a progressão histórica do cristianismo não numa vertente
social, mas antes quase puramente historicista ou puramente religiosa. Mas
damo-nos conta, facilmente, que os três aspectos estão intimamente
interligados.
Qualquer religião, antiga ou moderna, e genericamente,
tem, na sua génese, para além dos seus dogmas, que representam a sua essência
espiritual, um carácter civilizador. Quer estejamos a falar de judaísmo, de
cristianismo, islamismo ou budismo, é inultrapassável o facto de que qualquer
confissão religiosa incorporar, nos seus desígnios, a dimensão social da sua
massa de seguidores ou fiéis. O cristianismo não foge a essa regra – antes pelo
contrário – tendo tido diversos momentos civilizadores ao longo da sua longa
história, e não apenas, como outras religiões, no momento de génese ou
compilação de princípios de fé e ética.
Julgo não ser demasiado fantasista
colocar a génese do cristianismo na génese do judaísmo. E esse é o primeiro
momento civilizador e, ao mesmo tempo, profundamente dogmático, de toda a
doutrina cristã. É com Moisés que o monoteísmo definitivamente se institui, ao
mesmo tempo que é constituído o primeiro conjunto de leis – a Lei mosaica.
Primeiro, a partir da lei fundamental que são os 10 Mandamentos, depois através
de diversas adaptações que fundaram o corpo legal da Lei. Esta Lei não é apenas
um código legal – nesse aspecto, já os sumérios e egípcios levavam milénios de
experiência. É uma Lei absoluta, que não se separa da Fé, da religião. Nesta
altura, o Judaísmo é uma teocracia pura, uma vez que elege Deus como seu
governante supremo, em todas as dimensões humanas. Mas é também a primeira Lei
que consagra o valor supremo da vida humana, ao afirmar que nada é mais
precioso que essa vida humana, pois ela pertence apenas a Deus, que criou, por
amor apenas, todas as coisas, e tornou o universo bom, mas apenas uma coisa
criou à sua semelhança – o Homem.
Os ensinamentos de Cristo, porém,
representam um grande segundo momento civilizador. Ao longo dos séculos, o
judaísmo ter-se-à tornado cada vez mais hermético, cada vez mais inflexível e
cada vez mais dependente da Lei mosaica. Cristo, nas suas pregações, não altera
a Lei de Moisés. Porém, explica-a com novos argumentos, e acrescenta-lhe o 11º
mandamento: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Exemplos de
relativização da Lei não faltam, ao longo dos tempos do ministério de Cristo.
Perguntado se era lícito pregar num Sábado, responde com um exemplo simples e
fulminante: se uma cabeça de gado cair num poço num Sábado, não vai o seu dono
salvá-la? Quando defendeu a prostituta que a seus pés se arrojou, fugindo da
multidão que a queria lapidar, com o famoso “Quem nunca pecou, atire a primeira
pedra”. Ou seja, Cristo não só relativiza como refunda a Lei, uma vez que tende
a distinguir os conceitos, até aí coincidentes, de pecado e crime. Os pecados
podem ser perdoados, os crimes não – “A César o que é de César, a Deus o que é
de Deus”, ou seja, começa a distinguir a esfera social da esfera legal e
religiosa, que, naquele tempo, eram uma e a mesma coisa.
Por outro lado, o 11º mandamento é
elucidativo. A Lei mosaica prezava essencialmente a vida humana porque esta
pertence unicamente a Deus. Contudo, Cristo, o Deus feito humano, também tem
uma vida humana. E dá-a pelos fiéis – na verdade, pelo povo de Deus, numa
versão agora alargada a todo o mundo e não apenas aos judeus. Logo assim, o 11º
mandamento adquire uma nova dimensão. Não é só uma demonstração mosaica de amor
de Deus, já que o segundo mandamento manda amar o próximo e o primeiro manda
amar Deus. Este novo mandamento, no entanto, não manda amar o próximo, vai para
além disso, manda dar a vida própria pelo próximo, se tal for necessário. Ou
seja, a santidade da vida humana permanece, mas não é um valor absoluto. Mais
uma vez, a preservação da vida é relativizada, e circunstâncias há em que dar a
vida por determinada pessoa ou causa se torna aceitável – e não será por acaso
que dez dos apóstolos de Cristo tenham morrido martirizados pela causa cristã,
e João Evangelista tenha sido martirizado pelo mesmo motivo.
Nota-se, assim, e por motivos
doutrinários, decorrentes das pregações de Cristo, uma evolução no que concerne
à forma como a vida humana deve ser encarada. A sua prática, no entanto, não é
menos importante. Pregando para os pobres, vistos na altura como alvo do
castigo de Deus – os pobres eram pobres por castigo divino, próprio ou
ancestral, aliás, uma teorização que merece reflexão, pois pelo menos o ramo
protestante do cristianismo novamente o afirma – Cristo reafirma a igualdade de
oportunidades. Ao falar com a mulher samaritana junto ao poço de Jacob,
reafirma que os judeus fazem parte do povo de Deus, que é todo o Homem, e não
representam uma minoria escolhida. Ao afrontar os vendilhões no pátio exterior
do Templo, afronta a ganância humana. E finalmente perdoa quem o mata. Mais uma
vez, as noções de pecado e de crime estão bem dissociadas.
A Igreja incorporou estes e muitos mais ensinamentos
de Cristo. Não é apenas um enorme Humanista, como um grande civilizador, como
haviam sido Moisés ou o Buda, e como haveriam de ser Maomé ou o Jina. Mas não é
apenas um grande civilizador como eles, mas antes de mais, um grande humanista.
É verdade, porém, que nem sempre o portador destes ensinamentos, a Igreja, se
comportou à altura dos mesmos, e provavelmente hoje, e não há muito tempo, isso
fica bem patente. Basta pensarmos em atrocidades como as Cruzadas, onde nem os
irmãos cristãos de Constantinopla foram poupados, a Inquisição, as perseguições
a judeus e heréticos. No século passado, a conivência com os holocaustos judeu
e sérvio, a resistência imensa que ainda hoje se mantém em Roma sobre o
controlo de natalidade e a prevenção de DSTs e aos avanços científicos – tudo
factores que nos poderão levar a descartar o valor moral do cristianismo,
mormente do catolicismo.
O protestantismo não fica atrás. A ânsia
do capitalismo desenfreado, para quem a ideia de ser pobre é culpa
exclusivamente própria, a própria instituição sangrenta do ramo protestante do
cristianismo, e a atroz ideia de que não são as obras que salvam, mas
unicamente a Fé, indo ao cúmulo calvinista de que Deus já prenunciou o destino
de cada alma, são sinais de que a mensagem original de Cristo, provavelmente,
terá sido esquecida.
Tal não é inteiramente verdadeiro,
porém. Toda a nossa sociedade ocidental é baseada na moral judaico-cristã. E, a
avaliar por outras paragens do globo, talvez essa moral não seja a pior das
morais. Prova mais que evidente disso é a Declaração dos Direitos do Homem, que
consagra todos os valores judaico-cristãos, e mais cristãos que judaicos, em
boa verdade. Por outro lado, o esforço de solidariedade, que as próprias
Igrejas por vezes confundem com o pobre conceito de caridade, tão prejudicial
da condição humana, é notório e, mesmo feito este reparo, digno de admiração.
Relativamente à doutrina cristã, desde
os tempos do Vaticano II, em 1965, que a aproximação de doutrinas entre os três
ramos principais do cristianismo se tem vindo a dar. Ao mesmo tempo, a própria
Igreja católica parecia vir a trilhar um caminho de regresso à pureza cristã.
Não será a eleição de Bento XVI contraproducente?
Bibliografia:
·
Delumeau, Jean – As Grandes Religiões do Mundo.
Lisboa: Presença, 1997. 2ª Edição, ISBN 972-23-2241-9
·
Vázquez
Borau, José Luís – As religiões do
Livro. Lisboa, Ed. Paulus, 2008
·
Carmo,
António – Antropologia das Religiões. Lisboa, Universidade Aberta, 2001.
1ª Edição, ISBN 978-972-674-359-0
·
Bíblia
Sagrada.
Lisboa, imp. Gráfica Europam, 1982. Trad. João Ferreira de Almeida, imp. 1681,
Amsterdam