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Coluna de Trajano, Google |
“O património arquitectónico e urbano figurado por um labirinto que dissimula a superfície cativante de um espelho acompanhado pelos comportamentos conservadores que o rodeiam, pode ser decifrado como uma alegoria do homem na alvorada do século XX. […]”
Françoise Choay – A Alegoria do Património, pp.225
A frase de Françoise Choay parece, em si mesma, redutora. Como apelar a uma alegoria quando esta é plenamente identificada? Sendo que o labirinto do património histórico e urbano dissimula um espelho, e quando esses elementos estão acompanhados do comportamento conservador, não há mistério na afirmação. O espelho torna-se a motivação social, torna-se o próprio homem, não como o indivíduo, mas como o ser eminentemente social que é, a multidão de pensamentos e culturas, uma espécie de memória colectiva que perdura.
É um mundo de signos. De sinais, de máximas. É uma evolução, também. E convém, para além de tudo, fazer uma retrospectiva histórica do próprio conceito de património. O que implica fazer uma retrospectiva histórica do homem, já que o património é intimamente relacionado com a cultura humana. Não há monumentos nem arte sem olhos que os vejam. Seja de que maneira for, o património sempre requereu a presença humana. Interessante seria indagar se o contrário é verdadeiro.
Desde os tempos dos Atálidas, ávidos admiradores da arte clássica, mormente grega. Num mundo mediterrânico, orientalizado, a monumentalidade clássica assumiu talvez o maior motivo de cobiça e de desejo de posse. Nota-se a procura pela arte. Não pelo património. Este ainda não existe. Apenas existem objectos, já na época antigos, apreciados não numa atitude de veneração, mas antes como meio de atingir um fim claro, o de igualar os gregos, através da posse dos seus mais preciosos objectos.
Esta terá sido, aliás, a razão principal da aculturação romana. Os dominadores territoriais depressa se deixaram dominar culturalmente. E cultualmente. A arte e antiguidades gregas não são valiosas per si, não são objectos com valor intrínseco, para um romano abastado ou valente o suficiente para os comprar ou saquear. Nem historicamente os objectos e monumentos são importantes. A importância da História era então relativa. Não era importante se por aquele templo se tinha passeado Sócrates, ou naquele anfiteatro teria orado Aristóteles. Os objectos permaneciam intrinsecamente com o valor que haviam tido anteriormente. Já o seu valor extrínseco era outro. Era o de uma busca. Era quase o de uma competição. Não pela sua posse propriamente dita, mas pelo que representavam na sua origem. Não pela sua antiguidade, mas apenas e só porque provinham de uma cultura considerada superior. Uma cultura com um requinte a todo o custo pretendido e imitado pelos romanos. Um requinte que apenas os gregos tinham experimentado.
Movimento importante de mimetismo, ou um original passo para a constituição de futuro património, o que é certo é que este gosto pela Antiguidade Clássica grega levou os romanos a erigirem o seu próprio património, em si mesmo quase grego, mas diverso daquele pela excelência de diversos progressos construtivos e estéticos. E se em muitos campos os romanos nunca rivalizaram com os gregos, como na poesia, apesar de usarem o grego como língua erudita, já na arquitectura os exemplares de edifícios públicos que erigiram ultrapassaram os sonhos gregos. Roma era a cidade monumental por natureza, se esse fosse um termo utilizado na altura.
A mesma Roma que, séculos mais tarde, havia de se erguer das completas cinzas da quase destruição, depois do exílio de Avinhão. Com uma população dizimada e reduzida a parcos milhares, os edifícios grandiosos erguiam-se por entre as ervas daninhas e os rebanhos dos pastores que a habitavam. A Igreja trata de reabilitar as antiguidades da cidade. Por um lado, protege e faz depender a vida do prevaricador da gravidade do acto de destruição dos edifícios. Por outro, retira ela própria materiais dos mesmos edifícios para erigir outros novos. O sofrimento do Coliseu foi imenso e hoje pode ser testemunhado. Mas, para além das bulas papais, que proibiam a destruição, a Igreja conserva as antiguidades. Torna os templos e edifícios públicos romanos em igrejas e basílicas. No fundo, reminiscências dos pequenos renascimentos dos séc. XII e XIII, o advento do gótico.
Com o renascimento, o humanismo. Ou seja, a primeira camada de prata no espelho de Françoise. Até ali, as antiguidades, fossem objectos móveis ou imóveis, foram apreciadas e acarinhadas com dois objectivos: o de comparação com o zénite civilizacional de onde provinham ou a redução religiosa, a subversão do paganismo e do secularismo ao cristianismo. Joguetes, pois, em fogueiras de vaidades ou de ideologias. O vidro do espelho? Afinal, ainda hoje servem os mesmos senhores. Mas o humanismo começa a ver arte onde antes se via obra. Começa a ver património onde antes apenas se via antiguidade. A Coluna de Trajano adquire finalmente uma primeira dimensão histórica. O Coliseu começa a ser visto como algo mais que um grande edifício.
A Revolução trouxe a conservação. Trouxe a consciência de património. Intimamente ligado a esta noção patrimonial estava o carácter revolucionário do movimento. Afinal, tudo o que pertencia à nobreza, primeiro, à Igreja depois, e finalmente até à própria burguesia instigadora, era agora distribuído irmamente pelos cidadãos. Pelo Estado de cidadãos. E cada cidadão era ciente da parte que lhe cabia. E queria vê-la conservada. Será seguro encarar os movimentos de conservação do património pós-Revolução Francesa apenas como actos profundamente afirmativos de posse? Talvez não. Havia já o humanismo suficiente para que a noção de património histórico se fosse enraizando. Mais uma capa de prata no espelho de Françoise?
Mais uma Revolução, esta inglesa e de meios de produção. A era industrial. A era do aperfeiçoamento dos métodos de trabalho, a era da máquina e do poder. Um poder imenso, rico, com recursos aparentemente inesgotáveis. Uma era perigosa para o Património Histórico, já com letra grande? Possivelmente, não fora o medo. O homem pós-revolução industrial, o homem industrial, o poderoso espécime que molda a superfície da Terra, afinal tem medo. Medo de quê? Tem medo de ganhar indubitavelmente o futuro, mas de perder irremediavelmente o passado. É um homem que acaba por se lançar numa aventura patrimonial, numa epopeia de conservação de um passado cujos avanços tecnológicos ameaçavam cair no esquecimento.
O Património Histórico e Artístico torna-se vastíssimo. O desejo de conservação, fruto do conservadorismo que, afinal, moldava a mente progressista do homem, que deve a sua existência a um medo de desenraizamento profundo, da ausência de passado e de origem, leva a que não só objectos, outrora isolados nas primeiras galerias de arte ou museus do mundo, ou no meio de cidades totalmente renovadas, como Paris e Londres dos sécs. XVIII e XIX, ou como a nossa Lisboa de Pombal, pós-tragédia de 1755, mas também a própria cidade, o seu próprio traçado antigo, os seus mais modestos edifícios de traça pobre mas antiga, sejam integrados na noção de Património.
A diferença não é só estilística. Ou dimensional, ou apenas técnica. A grande diferença é temporal. A diferença está no tempo, está na percepção da evolução. O homem de finais do séc. XIX e início da Belle Époque do alvorecer do séc XX apercebe-se de que o que passou não mais voltará. Tudo será diferente. As ruas são iluminadas a gás ou a electricidade, agora. Acabaram-se os archotes. No fundo, inicia-se um novo mundo, e o homem aventura-se nele, mas não pode esquecer de onde vem, quer relembrá-lo, quer tocar no passado, quer vê-lo. É a noção de História da Arte e do Património que emerge definitivamente. O Vale dos Reis é símbolo máximo do estatuto do coleccionador. Por ser o mais antigo.
A cidade, a vila, a aldeia, torna-se histórica ela mesmo. Património de pleno direito. O progressista é conservador, e faz do local que frequenta mais o seu ambiente histórico, o seu património. Este torna-se a sua matriz cultural, ao mesmo tempo testemunha do tempo e da existência intelectual do próprio homem. A capa final de prata no espelho de Françoise. O labirinto é a localidade e os seus edifícios, o tecido que compõe a existência humana, que lhe dá a perspectiva última de existência histórica. No fundo, o sentido derradeiro da criação humana – o reflexo do espelho de Françoise, onde o homem se vê e se contempla na sua obra.
Trabalho realizado no âmbito da disciplina Património Histórico e Artístico, Lic. em História, 1ºAno