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Ilustração de Marco Joel Santos |
Este país provavelmente não merece ter a língua que tem. Talvez os Baptistas americanos, os Polibãs lá do sítio, é que tenham razão – nós falamos muito mal o espanhol, seja lá o que for essa língua desconhecida.
Mas, no fundo, lá estou eu a cair nos maiores vícios portugueses, a auto-comiseração e o auto-flagelamento. Um português que não diga mal de Portugal não é um português decente. É provavelmente um descendente de algum mouro que por cá tenha ficado a arrotear para D. Afonso I, ou então de algum romano mal disfarçado ou até, quem sabe, o resultado de um estranho cruzamento com o chauvinismo arrogante que impera do outro lado da fronteira.
Contudo, pensemos bem. Eu tinha motivos para gostar de Portugal. Tinha, mas sinceramente começam a escassear. Gostava do Portugal onde o Benfica era campeão pelo menos ano sim ano não. Agora há campeões programados.
Gostava do Portugal onde se ia à praia gozar o sol de Verão. Agora, dizem-me que o sol envelhece e que o cancro espreita.
Gostava do Portugal onde se comia decentemente. Agora, há pratos para o colesterol, para a hipertensão e para as hemorróidas, todos a saberem ao mesmo – a palha.
Gostava do Portugal onde as crianças ainda iam todos os dias para a escola. Agora, os carros entopem as ruas em que as escolas recebem os pais que não se esquecem de levar os filhos. Gostava do Portugal em que esses filhos eram mais uns putos que iam à escola. Agora são os reis lá de casa.
Gostava do Portugal em que havia crise constante. Agora, tenho saudades de uma boa crise – bons velhos tempos.
Gostava do Portugal ruidoso de manhã, em que buzinas de automóveis se misturavam com pregões de varinas. Agora, vamos ao Pingo Doce comprar peixe chileno e não se pode buzinar porque não é politicamente correcto.
Gostava do Portugal bonito, aquele que demorava uma eternidade a percorrer. Agora, temos estradas que nos levam a nenhures, estamos em Lisboa em três horas e se formos de Alfa nem para babar um sono temos tempo.
Gostava do Portugal das cidades cheias e vibrantes, da confusão das gentes que as habitavam, das suas ruas sujas e vivas. Agora, moram todos em gaiolas nos subúrbios desenhados a régua e esquadro.
Gostava do Portugal às seis, quando zuniam as sirenes para “arrear” do trabalho e as casas se enchiam de famílias famintas com muito para contar dos seus dias. Agora, não têm hora para chegar.
Gostava de Portugal cantinho da Europa, esquecido por todos excepto pelos emigrantes chegados para um mês de pausa no suplício. Agora, somos apenas periféricos, mas todos nos conhecem.
Gostava do Portugal onde os doentes hepáticos iam para Coimbra e sobreviviam com órgãos portugueses. Agora, morrem em Madrid à espera de órgãos… portugueses.
Gostava do Portugal em que um doente oncológico tinha tratamento a duzentos quilómetros de distância. Agora, ou se gasta no transporte ou no funeral – ou nos dois – em todo o caso nada resta para comer.
Gostava do Portugal dos Presidentes da República que subiam para cima de carros ao som de tiros. Agora, queixam-se das reformas.
Gostava do Portugal dos Primeiros-ministros que se dispunham a visitar localidades em que sabiam não serem bem vindos. Agora, não sabem sequer onde isso fica, apesar de ser em todo o lado.
Gostava do Portugal onde se gritava a plenos pulmões “25 de Abril, sempre! Fascismo nunca mais!”. Agora, anseia-se pelo germinar de um novo Salazar.
Gostava do Portugal onde os estudantes eram a reserva moral do povo e os precursores da mudança. Agora, aprendem economia e gestão financeira nas Universidades.
Gostava do Portugal onde quem tomava estupefacientes era drogado. Agora, o toxicodependente é um doente, e o fumador, um criminoso.
Gostava do Portugal dos gordos e dos doentes coronários. Agora somos todos saudáveis mas estão milhões com stress.
Gostava do Portugal dos restaurantes que cheiravam a comida. Agora cheiram a Harpic.
Gostava do Portugal onde os poetas declamavam na TV. Agora apenas vemos e ouvimos excelsos financeiros e economistas errarem previsões.
Gostava do Portugal com defeitos. Hoje somos todos perfeitos.
As salas das morgues também são perfeitas.