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Ilustração Marco Joel Santos |
No
século VIII, na Alta Idade Média ou Idade das Trevas, dois factores haviam de
moldar os espaços pelos quais a diáspora judaica se havia espalhado. Na Europa,
o Império Romano havia-se cindido em dois, e por esta altura já o Império do
Ocidente havia caído às mãos dos bárbaros, enquanto o Império Oriental se
debatia em estertores que em breve dariam lugar a Bizâncio. Por outro lado, no
Próximo Oriente e Norte de África, uma nova fé havia estendido o seu domínio
pelas armas, desde a Pérsia até Cartago e, em breve, Marrocos. Assim sendo, o
período da Idade Média foi passado pelo povo judeu, de uma forma geral, sob
domínio bárbaro franco-germânico a norte e muçulmano a sul.
Apesar
de o domínio secular e religioso das regiões onde habitavam os judeus não lhes
pertencer, nunca as comunidades judaicas enjeitaram o seu próprio governo,
sujeito, muito embora, ao poder vigente. Neste período, o governo destas
comunidades espalhadas desde a Babilónia até à Península Ibérica foi
assegurado, em termos espirituais, religiosos e éticos pelo chamado “governo
dos Sábios”, também conhecido por Catedocracia. As academias, regra geral,
exerciam esse poder, e uma dessas instâncias, o gaon de Babilónia, assumia particular importância para o mundo judaico.
Paul Johnson, na sua História dos Judeus,
assegura-nos: “Na Idade das Trevas, essa
catedocracia babilónica era também um judiciário hereditário, a instância final
de apelação para toda a diáspora. Falando estritamente, não lhe assistia
qualquer poder físico. (…) Mas possuía o poder da excomunhão (…). Gozava também
do poder do seu conhecimento”.
Como
tal, o poder destes sábios, entre academias e indivíduos sábios, dos quais se
vem a destacar Maimónides, cuja caracterização é importante e mais adiante será
aflorada, não se prendia com qualquer tipo de poder temporal ou secular mas
antes e apenas pela autoridade do seu conhecimento religioso, ou seja, pelo seu
conhecimento da Lei. E a Lei judaica não é mais que o conjunto de escritos bem
conhecido: a Torá, a Bíblia e o Talmude, este último não tão escrito, mas mais revestido
de tradição oral. As academias – gaon
– de onde emanava esse poder eram os sucedâneos do Sinédrio, o órgão
legislativo supremo nos tempos do Templo de Herodes, o Grande. Eram, pois,
constituídas por homens sábios na Lei. Espalharam-se, tal como a diáspora,
sendo de assinalar a presença de grandes academias em regiões muçulmanas, como
a cidade santa de Kairouan, na actual Tunísia, ou Granada e Córdova, durante o
califado Al-Andaluz, em Espanha.
Não
será demais referir que este poder era tão forte quanto o poder secular sob o
qual existia. Exemplo disso foi o Al-Andaluz, aquando da invasão almóada, que acabou
por expulsar os judeus do califado, até aí perfeitamente integrados na
sociedade andaluza, mas sempre com o estatuto de dhimmi, ou seja, de não-muçulmano, algo discriminatório. Foi desta
onda de refugiados, que extravasou em diversas direcções – desde a Espanha
cristã, França e mesmo Norte de África e Egipto – que saiu Maimónides. A sua
família refugiou-se em Fustat, a cidade velha do Cairo, e bem cedo revelou a
sua faceta de estudioso e sábio.
O povo judeu, fixado por toda a bacia
mediterrânica e pelo norte europeu, depressa desenvolveu capacidades que faziam
falta aos territórios onde se fixavam. A estas capacidades não será alheio a
forma de encarar o estudo e as letras. Johnson, por exemplo, diz-nos: “Em resumo, como o formulou um historiador, a
família era importante e o êxito comercial era útil, mas a erudição era
essencial”. A erudição a que Johnson se refere é mais do que conhecimento
geral, é o conhecimento da Lei. Os judeus desta época acreditavam ter maior
capacidade de erudição que os restantes, e, de certa forma, estavam correctos.
Advinha principalmente do estudo da Lei, pois para um judeu a Lei continha
todas as respostas às questões da vida. Como tal, a vantagem judaica face aos
demais baseava-se na sua capacidade de estudo e erudição, mas traduzia-se
essencialmente no plano burocrático (financeiro e económico) e científico (os
mais proeminentes eruditos judeus, como Maimónides, eram, além de mercadores e
prestamistas, médicos), o que lhes permitia escalar facilmente a hierarquia
vigente e aproximarem-se dos detentores de poder secular, quer no caso dos
territórios árabes, quer nos cristãos. A Lei, por exemplo, não permitia a usura
entre judeus, mas permitia a usura de judeus sobre membros de outros credos.
No
plano religioso, os judeus viveram em eterna dualidade. Por um lado, sábios
havia, como o referido Maimónides, que defendia a racionalização da Lei, ou
seja, conferia, através dos seus escritos e “governo”, uma base racional para
uma Lei que não o parecia ser. Isto porque, principalmente no Talmude, a Lei se
emaranhava em conceitos vagos que não permitiam que a razão prevalecesse na
procura de respostas. Por outro lado, havia outros sábios, como Namânides, que
defendiam um rigorismo legal baseado no estrito cumprimento da palavra da Lei.
Fosse
como fosse, a função mais proeminente e pela qual mais eram conhecidos os
judeus era o empréstimo de dinheiro a juro. Obviamente, este facto trazia-lhes
inimizades consideráveis, e as perseguições iam-se sucedendo, quer na Europa
quer nos territórios muçulmanos (como no caso de Al-Andaluz). No século XI,
quando a Primeira Cruzada foi lançada, já o anti-semitismo estava instalado,
muito por esta razão. E se a Cruzada foi terrível para todos os envolvidos
directamente, não o foi menos para a diáspora judaica, que serviu como “corpo
de treino” aos cruzados antes do embarque.
As
coisas iriam piorar muito por acção de algumas figuras históricas como Eduardo
de Inglaterra que, por cobiça dos bens dos judeus, permitiu não só que as
maiores calúnias fossem sobre eles lançadas, como o libelo de sangue
(assassínio ritual de crianças para expiar o pecado da morte de Cristo) ou o
roubo de hóstias, que depois torturariam (Corpo de Cristo), como acabou por
organizar enormes pogroms, acabando
na expulsão definitiva de Inglaterra. Nos territórios árabes, as coisas corriam
de forma mais pacífica, se bem que sempre que havia ondas fundamentalistas os
judeus acabavam por pagar, com a vida ou com humilhações a nível social.
De uma
forma ou de outra, as coisas nunca foram fáceis para os judeus nos territórios
onde se fixaram. Mas sem dúvidas que o período mais negro para a diáspora
judaica foram os séculos XIV e XV. Em Espanha, são criados os famosos
“debates”, entre os eruditos cristãos e os judeus, que mais não eram que farsas
organizadas para julgar a fé judaica em praça pública. Por outro lado, nunca
esquecer que os próprios cristãos foram adquirindo as técnicas dos judeus, e
chegaram ao ponto de dominarem perfeitamente a usura (por exemplo, os “bancos”
Templários), fazendo dos judeus uma comunidade dispensável.
Por
outro lado, o anti-semitismo primário começou a cavalgar as mentes cristãs de
forma insistente, mais insistentemente que nos territórios muçulmanos. Em
breve, por toda a Itália e França, se davam expulsões. Na Espanha, foi criada a
Santa Inquisição, para aquilatar das qualidades dos marranos, conversos à força à fé cristã. A questão dos cristãos
novos acabou por ser uma espada de dois gumes. Se, por um lado, os judeus
escapavam à fogueira por professarem a sua fé, agora associada por dominicanos
e franciscanos ao culto do diabo, por outro, tornavam-se alvo das maiores
desconfianças e eram perseguidos novamente por suspeitas de professarem o
judaísmo em segredo – o que, diga-se em abono da verdade, era certo na maior
parte dos casos.
A
história judaica na diáspora é pontuada pelo contraste. Se, em determinada
altura, tinham liberdade de culto e lhe eram toleradas as suas tradições, muito
porque estavam na posição de credores (e sabiam estar nessa posição), outras
houve em que a cobiça pelos seus bens e créditos lhes selava o destino (curiosa
a associação ao Templários, aniquilados pela mesma razão). E finalmente, a
desumanização progressiva do judeu, dada principalmente na Alemanha, havia de
trazer as funestas consequências que todos conhecemos. Aliás, a expulsão da
Península Ibérica e da Alemanha terão sido as piores fases da diáspora judaica
antes do século XX. Johnson afirma: “A
ideia de que o judeu conhecia a verdade [acerca de Cristo], mas a rejeitava,
preferindo trabalhar com as forças da escuridão – e, portanto, não podia ser
humano no sentido em que os cristãos o eram – já estava bem estabelecida”.
Por
outro lado, os muçulmanos não parecem ter desenvolvido um sentimento análogo ao
dos cristãos relativamente aos judeus. Religiosamente, os judeus eram uma
religião do Livro e não aceitaram Maomé, mas também não lhe fizeram mal algum.
Os cristãos apontavam-nos como os carrascos de Cristo.
Bibliografia:
·
JOHNSON, Paul –
História dos Judeus. RJ: Imago, 1995.
1ª Edição, ISBN 853-120-421-6
·
HOLTZ, Theo – A História dos Judeus. São Paulo: Via Lettera, Janeiro de
2009. 1ªEdição, ISBN 978-85-7636-082-7
·
DELUMEAU, Jean
– As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Presença, 1997. 2ª
Edição, ISBN 972-23-2241-9