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Ilustração Marco Joel Santos |
Lembro-me de que, quando era pequeno… Lembro-me pois! Quero lá saber que a
malta não se lembre e mais não sei o quê? Eu lembro-me, porra. E não era grande
espingarda, aquele tempo. A televisão só começava às seis da tarde com o clip
dos Dire Straits “Money for Nothing” e meia hora de desenhos animados em que
continuavam a dar-nos música, com o Flash Gordon e os Queen na sua pior fase...
depois admiravam-se do Imperador Ming andar sempre mal humorado e de cortar a
barba naquele formato de picareta. De que é que eu me lembrava? Ah, sim,
lembro-me de ter lido um conto interessante.
Contava a historieta popular que um homem levou o seu pai, já velho e
debilitado, para um passeio pela montanha. O velho sabia que não era nenhum
passeio. O homem deu ao velho uma ração de pão velho para um dia, um pouco de
água e desceu a montanha, sem olhar para trás. Era o costume daqueles lados, e
o velho já não servia para nada senão consumir tempo à família e comer. Durante
a noite, o homem lembrou-se de toda a sua infância, de toda a sua juventude, e
de todo o cuidado dispensado por seu pai ao seu crescimento. Arrependeu-se de
ter deixado o pai a morrer na montanha. Não estava certo. Logo de manhã, abalou
montanha acima para ir buscar o pai. Fosse ou não costume, não se sentia bem
com o que tinha feito. O velho tinha ficado no mesmo sítio, não tinha tocado na
comida nem na bebida. Estava sentado, com a cabeça entre as mãos, via-se que
tinha chorado. O homem não sabia se o seu pai tinha morrido de desgosto ou de
frio, de fome ou de sede.
Segundo a lenda, isto passou-se “antes dos tempos”, ou seja, provavelmente
antes da História escrita na península, provavelmente no tempo dos primeiros
bárbaros ou dos lusitanos. Em tempos primitivos, em tempos de barbárie. Num tempo
de selvajaria. No nosso tempo, muito dificilmente isto poderia acontecer. Mas
só porque o pão está caro e água é privada. Porque o governo, esse, nem
voltaria atrás. Cambada de selvagens…!