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Ilustração Marco Joel Santos |
Decorrendo
do atentado ao Charlie Hebdo, nunca por nunca se terá falado tanto de religião
como nestes últimos tempos. Exceptuando talvez a Idade Média, bem entendido. Interesso-me
desde há muito pelo fenómeno religioso, o que me levou a estudar o assunto e
concluir a licenciatura em História com o “major” em Religião e Cultura. E se
há quem não entenda a relação entre as duas vertentes, então não vive neste
mundo.
Há quem
diga que tudo o que se faz é política. Eu digo que se faz por causa da
religião. Ou ausência dela, o que estranhamente se assemelha cada vez mais a
uma nova religião que, antes de atingir o zénite, já decaiu. Vivemos na nova
era religiosa, a era das experiências religiosas pessoais, a era das fés não
organizadas que tanto horroriza tanto os ateus como os religiosos. Contudo, o
meu interesse pela religião é puramente académico e de alguma forma social,
pois rejeito a religião organizada e sinceramente não quero gastar dinheiro em
drogas de segunda para ter uma epifania religiosa universo-pessoal ao estilo
americano nativo.
Tendo estas
premissas desde já aclaradas, escrevo agora sobre a religião organizada. As pessoas
são livres, nesta sociedade a que convencionamos chamar “ocidental”, mas que no
fundo não passa da condescendente, vetusta e levemente passada de prazo cultura
europeia de cariz judaico-cristão, de professar a religião que muito bem
entenderem. Para os agnósticos, laicos ou ateus, seja de que forma se refiram
aos que se estão defecando para as religiões, no entanto, não deixa de ser
estranha a experiência religiosa, particularmente entender os mitos cosmológicos
ou os factos fundadores da Fé.
A nossa
sociedade europeia é, como já referi, de cariz judaico-cristão. Convenhamos que,
sendo provavelmente a religião mais numerosa do mundo inteiro, desde que os
chineses não se tornem hindus ou os indianos se tornem confucionistas, é também
a religião ou continuum religioso mais difícil de compreender. Isto porque
acreditar que uma senhora engravidou num sonho de um anjinho e se manteve
virgem, e com isto tudo o marido ainda aguentou a família, que uma estrelinha
no céu estava por cima do local onde estava o puto daí nascido, puto esse que
depois de inspirar Marx e Engels se deixou crucificar para ressuscitar ao
terceiro dia e melhor ainda, ascender aos céus quarenta dias depois… Nada mau.
É verdade
que muitas figuras fundadoras de diversas religiões são figuras reais da
História. Buda, Jina, Confúcio, Zoroastro, Abraão, José (não o pai de Jesus) e
provavelmente Moisés, ou Maomé, por exemplo, são pessoas que existiram
efectivamente. Já Cristo, apesar das imensas pressões para que se diga o
contrário, não tem uma existência documentada historicamente, a não ser a
palavra de honra de uns três ou quatro supostos apóstolos cujos testemunhos
foram transcritos entre cem a trezentos anos depois da suposta crucificação. Método
de execução que, ao contrário do que se quer fazer crer, era extremamente comum
nas províncias romanas e mesmo no Lácio e Roma. A beleza do mito cristão é, no
entanto, indescritivelmente prática. Como não há registos independentes que
documentem a existência de Cristo, a veracidade da história provar-se-ia se
descobríssemos um corpo. Mas o facto de ninguém ter descoberto um corpo prova
que a história é verdadeira, pois Cristo subiu aos céus com o corpo. É a
chamada pescadinha de rabo no corpo.
O islamismo
aceita tudo o que vem do judaísmo e do cristianismo, mas acrescenta-lhe Maomé e
os seus delírios esquizofrénicos. Bem, assim seriam consideradas as famosas
conversas com Deus, ou Allah, assim chamado nos tempos idos de Moisés, quando
Deus se terá anunciado ao profeta como “Eu sou Aquele que é”, ou seja, Allah. Como
todos somos porque somos o que somos, Deus assume aqui a sua faceta de La
Palisse em grande estilo de sarça ardente e voz grossa. Maomé sonhava tantas
vezes com Allah que temo que o pobre coitado tenha inventado a SPA e os
direitos de autor em consequência. E Maomé, apesar de ser uma pessoa
efectivamente real, pregava a paz mas fazia a guerra e foi mais um que subiu
aos céus com corpo e tudo, e se Cristo o teria feito em Jerusalém, Maomé não
era homem para menos e fez o mesmo no mesmo local. Apesar de ter morrido em
Medina, uns bons kms a sul.
O islamismo
prega a paz, mas não é menos verdade que em cem anos conquistou à lei da espada
meio mundo conhecido. E se é bem verdade que períodos houve em que a liberdade
religiosa era garantida pelo Califado, e não será demais lembrar os tempos da
Catedocracia judaica, de Maimónides e das Academias, precisamente sediadas nas
Babilónias – Bagdade, sede do Califado e Cairo, um pólo islâmico importante,
onde fixou capital, mais tarde, o próprio Saladino, também é verdade que a
tradição oral veio endurecer paulatinamente as posições políticas do Islão, e a
imposição islâmica não é nenhuma ficção na actualidade.
Ao patrocinarmos
(Ocidente) o abate dos regimes laicos de alguns países islâmicos, como a Líbia,
a Tunísia, o Egipto e a Síria, antes já precedidos por Líbano e Turquia, patrocinamos
igualmente a prévia fuga de clérigos radicais destes países, onde eram
perseguidos ou ignorados (para eles é igualmente atroz) para a tal Europa cândida
e multiculturalista, tão segura da sua identidade que ingenuamente recebeu
todos estes asilados políticos que subterraneamente exercem a sua influência
junto das comunidades emigrantes. Ao mesmo tempo, com a eclosão da Primavera
Árabe, que na realidade não passou de um gigantesco conjunto de golpes de
Estado perpetrados pelo tal Islão radical, deixamos que se instalassem no poder
desses países os tão famigerados fundamentalistas. Com os resultados óbvios,
como se vê pelo Estado Islâmico.
A verdade
é que todos dizem que não devemos confundir o fundamentalismo com o radicalismo,
não devemos confundir islâmicos com islamitas. Obviamente, o politicamente
correcto que ninguém em seu perfeito juízo pensa e muito menos pratica. As
Cruzadas não foram feitas por todos os cristãos, mas foram feitas pelos Cristãos.
Os judeus europeus não foram aniquilados por todos os alemães, mas foram
sujeitos ao holocausto pelos Alemães. A Ibéria não foi invadida por todos os
árabes, mas foi invadida pelos Árabes. Os arménios não foram massacrados por
todos os turcos, mas foram-no pelos Turcos. Os sérvios não foram aniquilados
por todos os croatas, mas foram aniquilados pelos Croatas. Por isso, é ingénuo
quem diz que isto não é uma guerra motivada pela religião, ou pelo choque de
culturas, porque é. E não tenham dúvidas que provavelmente, em caso de guerra
aberta, as populações seguem quem conhecem, não seguem os inimigos do outro
lado da fronteira.
Quanto ao
Charlie Hebdo, é um pasquim de extrema-direita que nunca me foi particularmente
simpático. Não me chocou a reacção, chocou-me a execução. Eu não sou Charlie
Hebdo, porque sou pela liberdade de expressão, e liberdade de expressão é dizer
o que se passa, no caso da imprensa, em todas as direcções. Quando é só numa,
além de tudo, é monótono.
Por fim,
a figura ou símbolo de Maomé inspira-me, como a de Cristo ou Buda, todo o
respeito, apesar das brincadeiras acima retratadas. Mas estou-me literalmente
cagando para o que pensam os islâmicos ou islamitas ou o que quiserem chamar a parte
da sociedade dos países islâmicos, por quem tenho uma enorme ternura e afecto,
acerca do seu sagrado Maomé, e eles deviam estar a cagar-se para o que eu penso
– mas não estão. Para mim é apenas mais uma figura histórica, o primeiro Califa
que não se sabe muito bem em que genro delegou o poder à hora da morte – e possivelmente
antes do delírio final da elevação do corpo aos céus e da fantástica viagem de
Medina a Jerusalém num cavalo voador que lerpou depois de lá chegar, uma
história inspiradora (porra, nós também temos o Adamastor e o D.Sebastião). Naquele
tempo, está já provado que o ópio era da pesada e não devia ser fumado
conjuntamente com o consumo de bebidas alcoólicas…