Ilustração Marco Joel Santos |
Jerusalém
não era um sítio grande para se percorrer, mas era uma cidade grande, a maior
daquelas partes, repleta de becos e ruas estreitas, alçada na sua perene colina,
brilhando com o Templo à vista de todos. Por isso, decidira pôr as mãos à obra
bem cedo, logo após a última hora. Tinha muitas casas para visitar, muitos
muros para transpor, e muita mercadoria na qual pôr as mãos.
Decidira
evitar as patrulhas romanas. Não que os romanos se interessassem pelo que
andava a fazer. Tinham coisas mais prementes a tratar e tratavam delas com eficácia.
Ainda poucos dias antes tinham posto as mãos ao Barrabás, um dos líderes dos
revoltosos, e preparavam-se para o executar com requintes de crueldade. Aliás,
como era hábito nos romanos. Eram extremamente tolerantes para com a religião e
a sociedade que conquistavam, mas não toleravam minimamente afrontas à sua
autoridade. Para além do mais, os romanos não tinham a sensação de que a
Palestina fosse uma terra que verdadeiramente valesse a pena, apenas a
conquistaram para completar a sua colecção de costas mediterrânicas. Em todo o
caso, poderia topar com alguma patrulha com zelo mínimo e o fizesse passar uma
temporada valente nos calabouços do Pretório.
Decidira
também evitar as patrulhas dos guardas do Templo e do Sinédrio, que eram bem
mais zelosos que os romanos, particularmente em tempo de Páscoa. E, pelas suas contas, já pouco mais de uma hora faltaria para o
nascer do sol. Já lhe doíam as mãos de tanto trabalho, doíam-lhe as pernas de
tanto calcorrear e saltear. Mas tinha de o fazer, tinha de o fazer. Até ao
nascer do sol.
Esperava
que aquela fosse a última casa a visitar naquela noite. Achava que já havia
visitado todos os seus objectivos. Saltou um muro e, furtivamente, abeirou-se
de um pequeno cercado onde dormiam os galináceos. Procurou, com o olhar já
habituado àquela escuridão medonha, o maior volume e, num gesto rápido e
eficaz, que lhe vinha já dos tempos de içar o peixe para o barco no Mar da
Galileia, apertou o pescoço ao incauto guarda da capoeira. O enorme galo nem
teve tempo de cacarejar como uma pobre galinha. O pescoço estalou imediatamente
por entre os dedos de Simão.
Nunca entendera
por que raio o JC decidira mudar-lhe o nome. Gostava tanto do seu nome! Simão
era um nome poderoso, que inspirava respeito. E ele era um homem de respeito! Um
grande pescador, um bom homem. Rude, talvez, mas afável o suficiente para
seguir Aquele que um dia o chamou para as aventuras dos últimos três anos! Ah,
boas memórias, uma vida aventurosa que estava prestes a acabar! Nunca se
queixou das agruras do caminho poeirento, ou das camas de pedras onde dormiu
tantas vezes. Mas admitia que a sua situação actual era realmente deplorável. Um
vulgar pilha-galinhas, cheio de dores no corpo, de roupas esfarrapadas de tanto
roçar-se pelas paredes ásperas das ruas de Jerusalém, um fugitivo na noite, com
uma meta quase impossível, mas que finalmente havia atingido. Não que o
consolasse muito, mas pelo menos era prova da sua determinação.
Transpôs
novamente o muro, agora para o caminho poeirento e pedregoso que conduzia ao
centro da cidade e às ruas pavimentadas. Dobrando uma esquina, foi abordado de
surpresa por um grupo turbulento que, por milagre, havia escapado às patrulhas.
Um dos homens, inebriado e com bafo de cerveja barata, atirou-lhe:
- Tu és
um dos que estava com o Nazareno ainda ontem, aqui no monte defronte da cidade!
Foi apanhado de surpresa, mas teve a presença de espírito
para retorquir de imediato:
- Não
conheço tal homem, estás enganado. Vai curar a puta da bebedeira!
Era já a
terceira vez que era confrontado com aquela acusação naquela noite. E, no
entanto, e de repente, um calafrio percorreu-lhe a espinha. Ficou paralisado de
horror perante aquele som fantasmagórico, um som vindo de outra dimensão, um
choque completo. O cantar de um galo!
Foi atrás
do som. Correu atrapalhadamente pelas ruas, já pouco importado com as
patrulhas. Tinha a certeza de
que havia matado todos os galos de Jerusalém! Como era possível que lhe tivesse
escapado algum? Mais uma
esquina, e vislumbra uma patrulha romana. No meio dos seis guardas, seguia uma
figura vestida de branco, de longos cabelos e andar cansado. Ao lado dessa
figura, seguia Jesus Cristo. E Jesus parou por um momento, virou-se para Pedro
e sorriu-lhe, enquanto mostrava um garboso galo nas suas mãos.
Pedro
não evitou o pensamento: “Podes ser o Filho de Deus, mas agora foste foi um
ganda filho da…!”
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