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Ilustração Marco Joel Santos |
Trabalho escrito para a disciplina de Cultura e Mitologias na Antiguidade, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião
A reforma atoniana prefigura, de facto,
uma viragem no rumo religioso egípcio. Tida por muitos como um delírio mais ou
menos consciente de um jovem rei – Amen-Hotep IV, que mudou o seu nome para
Akhenaton, precisamente em honra do deus Aton, terá, no entanto, tido
consequências políticas, religiosas e artísticas para além do seio do faraó,
sua família e sua corte. O Hino a Aton é, sem dúvida, uma descrição viva e
pungente de um deus que, ao contrário de outros deuses egípcios, parecia ter
exclusivamente qualidades vivificantes, sendo o deus da luz, o Disco Solar.
O Hino começa com um parágrafo quase
completamente descritivo acerca da essência de Aton, “Apareceste belo no
horizonte do céu, Ó Aton vivo, princípio da vida!”. A frase é mais explícita que ambígua, afirma a beleza do disco solar,
mas também a sua vida aparentemente eterna, usada, por sua vez, para criar a
vida. É o princípio criador, que até aí era premissa de Amon, o Escondido, o
todo-poderoso deus de Tebas. Segundo diversas cosmogonias, incluindo a de
Heliópolis e de Mênfis, esta teria sido a missão de Atum, o deus primordial,
transmutado frequentemente em Rê, divindade suprema da adoração solar,
associado mais tarde a Amon. Uma frase importante é: “Como és Ré, chegas até
ao extremo de todos os países; une-los para o teu filho amado.”. Inequivocamente,
o Hino associa, desde logo, Aton a Rê. Christian Jacq, por exemplo, defende que
esta associação é primordial para a compreensão do pensamento de Akhenaton.
Este não se limitou a inventar uma nova divindade, antes a transmutou. Na
verdade, tanto Aton como Rê eram deuses adorados no Egipto desde os primórdios,
e ambos associados ao Sol. Jacq acredita que Akhenaton adorava Aton como o
Corpo de Rê, que permanecia abstracto como Deus-Sol, enquanto Aton era a face
visível desse princípio abstracto (embora Rê fosse representado frequentemente
em formas antropomórficas diversas – Rê Horaktli, Rê-Hórus, Khepra – com forma
de escaravelho). Por outro lado, a união de Aton ao seu filho (Akhenaton, ele
próprio Aton encarnado) revela-nos o carácter quase pessoal deste culto, o que
ajuda a perceber o seu desaparecimento após a morte de Akhenaton.
Prosseguindo
no Hino, a evocação da noite revela-nos a vida sem Aton. Que não mais é vida,
mas antes a morte:”Quando desapareces no horizonte ocidental, a terra fica
como morta, nas trevas.”. Como culto de luz, de cor e vida, o culto de Aton
previa a noite como um período de morte. Aliás, o próprio Rê, ou o seu disco,
Aton, não tinha uma passagem pelo firmamento plena de poderes. Começava tímido,
pela manhã, apresentava-se pujante ao meio-dia, e envelhecia e morria todos os
dias no crepúsculo. Apesar de toda a alegria em volta do culto solar, não
conseguiu Akhenaton descartar a ideia da morte egípcia, seguida de ressurreição
cósmica. Aliás, uma ideia recorrente nas cosmogonias egípcias, sendo Osíris o
seu representante máximo. Só que Osíris era o deus do mundo subterrâneo, Aton
era o gerador de vida.
Mais à
frente no Hino, são explicitadas as capacidades criadoras de Aton, que não se
ficam pela natureza exterior ao homem: “Criador da semente na mulher, tu que
produzes o sémen no homem, (…)”. É evidente a exaltação do carácter
criador, não só do princípio dos tempos, mas também da continuação dos mesmos,
de Aton. Aliás, a criação primordial é imediatamente relevada de seguida: “Criaste
a terra segundo o teu desejo, quando estavas só, (…)”. Esta é uma das mais
controversas afirmações do Hino. Se é certo que remete à ideia de monoteísmo, a
verdade pode ser diversa. Já referi que, por exemplo, Jacq não considera o
Atonismo um monoteísmo. É certo que Aton estava só no princípio da criação –
tomando o lugar de Atum, o criador primordial até aí. Mas não se deve
depreender que tenha, segundo a cosmogonia atoniana, permanecido só. Mais não
fosse, a afirmação anterior “Como és Ré, chegas até ao extremo de todos os
países;” remete-nos igualmente para a adoração de Rê através do seu disco
solar, expressão da sua glória. Aliás, partir do princípio que os egípcios eram
politeístas era também errado, uma vez que o egípcio não distinguia o sagrado
sob essa dimensão. Deus era uno, e no entanto, Conjunto. Deus era representado
por diversas formas, e não se pode falar verdadeiramente de uma diversidade
enorme de deuses, mas antes de um conhecimento de Deus sob diversas formas.
Conhecimento e não Fé. O egípcio experimentava o sagrado, não se limitava a
acreditar nele. Por isso a questão do politeísmo é uma falsa questão, como tão
bem refere Jacq. Tal como a do monoteísmo no culto de Aton. Basta atentar nos
nomes das filhas de Akhenaton, como Ankh-sun-Amon (relativa a Amon) ou
Neferneferurê, relativa a Rê. O próprio Akhenaton tinha como título inscrito em
tijolos para sua protecção após a morte Osíris-Nefer-khepuré-Ré, ou seja,
Osíris associado a Rê, o que, segundo Jacq, não tem nada de herético, já que
Akhenaton assim demonstra a sua apetência de um deus ressuscitado (Osíris), ao
mesmo tempo que é o próprio deus-sol encarnada (Aton, mas também Rê), mas
mostra inequivocamente o carácter flexível do Atonismo e não a imposição do
Deus Único Solar.
Como é sabido,
o Nilo representa a vida do Egipto. Ele próprio foi divinizado. O Hino a Aton acrescenta:
“Criaste um Nilo no mundo inferior.”. Nada da religião antiga é
descartado, ou seja, o próprio Nilo passa a ser criação de Aton. Isto demonstra
também a dinâmica política do atonismo, ao associar definitivamente os símbolos
nacionais ao seu culto. Nada foi deixado ao acaso. A não ser o carácter
iniciático do atonismo, o que nada tem de extraordinário – o culto osírico era,
nesta altura, também iniciático e não de massas – o que inexoravelmente o fez
desaparecer. Dependia do Aton encarnado, e esse era indubitavelmente Akhenaton,
na sua cidade de Akhentaton:”Estás no meu coração e não existe outro que te
conheça, à excepção do teu filho Neferkheperuré Uaenré. (atente-se no título e na devoção extrema de Akhenaton a Ré). Akhenaton era doente, acabou
por morrer relativamente jovem. E Aton não voltou a encarnar.
Bibliografia:
JACQ, Christian – Nefertiti
e Akhenaton. Lisboa: Bertrand
Editora, imp. Março 2001. 2ª Edição, ISBN 972-25-1130-0
TAVARES, António
A. – Civilizações Pré-Clássicas.
Lisboa: Universidade Aberta, 1995. 1ªEdição, ISBN 972-674-141-6
SALES, José das Candeias – As divindades egípcias. Uma
chave para a compreensão do Egipto antigo. Lisboa: Editorial Estampa,
1999.