Trabalho escrito para a disciplina de História do Islamismo, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião
O
Al-Andaluz é, sem dúvida, uma fonte primacial de cultura na península ibérica.
Tal importância deve-se a inúmeros factores e às próprias características do
califado. Algumas questões podem ser pertinentes, uma vez afloradas as
respostas respectivas, para o entendimento sobre este período da história
andaluza e ibérica.
Assim,
há que perceber como o califado se constitui, ou seja, não propriamente o acto
da invasão de 711, mas antes de onde vieram os homens que o perpetraram, e em
que contexto histórico, tanto do lado europeu, como do lado árabe e
norte-africano, isso aconteceu.
Por
outro lado, a caracterização do califado é de suma importância, em todos os
aspectos: social, cultural, económico e religioso. Provavelmente uma mescla de
todos eles, pois cada um deles está intrinsecamente ligado aos outros.
Por
fim, é importante perceber qual a herança do califado. O que nos deixou o
califado, em todos estes aspectos? E pode parecer que não é verdade que todos
eles tenham sido legados, mas quer a nível sociocultural, como económico, como
religioso, a herança é vasta.
O
expansionismo árabe em torno do Islão foi fulgurante, ainda que não sem
dificuldades. Contudo, à data da morte de Maomé, no ano 632, os territórios
circundantes de Meca e de Yathrib, mais tarde chamada de Medina, constituíam o
califado original. No entanto, em apenas três anos, toda a península arábica
estava sob domínio islâmico. Nos quinze anos seguintes, estendia-se já esse
domínio por uma área geográfica imensa: desde a Pérsia até à actual Tunísia.
Por volta do ano 700, já o Islão dominava toda a costa norte-africana, e
estendia-se daí até locais tão longínquos como o Azerbaijão e o Afeganistão.
Em
711, e aproveitando as convulsões internas graves no reino visigótico, um
berbere recém-convertido ao Islão, Jebel-al-Tariq (Gibraltar), atravessou o
estreito que hoje tem o seu nome, em auxílio de uma das facções visigóticas
beligerantes na guerra civil que assolava o reino godo ibérico. Não tardaram
senão alguns meses até que Tariq derrotasse Rodrigo e precipitasse o
desmembramento e queda do reino cristão, que se fragmentou em inúmeros
territórios senhoriais que estavam incumbidos de resistir ao invasor. No
entanto, muitos destes senhores viram na invasão uma oportunidade e pactuaram
declaradamente com o invasor. Por essa razão, a invasão peninsular foi rápida e
quase total, exceptuando-se a região asturiana.
Tal,
no entanto, não queria dizer que o domínio muçulmano fosse total. Ao chegarem a
acordo, mais do que pelas armas, com os senhores locais, o novo estado islâmico
sujeitou-se a delegar poder nestes, o que, em certa medida, era quase uma
declaração de independência, dada a desordem em que ainda se encontravam as
fracas ou inexistentes instituições centrais de Al-Andaluz.
É certo que os primeiros emires de Al-Andaluz
tenderam a centralizar o estado na sua capital Córdova. Mas alguns factores
importantes impediam que tal acontecesse. Se, por um lado, a enorme diversidade
populacional o dificultava, como diz Guillemain: “(…) coabitavam árabes, entre os quais se encontrava um
forte elemento sírio atraído pelos Omíadas, berberes, mais inclinados à
turbulência, cristãos — os Moçárabes — que tinham conservado os seus bispos, as
suas igrejas e a sua liturgia, mas de que se destacavam numerosos renegados
muitas vezes com postos elevados, escravos comprados nos mercados da Europa
central ou capturados em incursões em território cristão, e também grandes
colónias judaicas.”, também é certo que a
família omíada que tomou o poder não era independente do califado com capital
em Damasco, tanto em termos políticos como religiosos, o que, nesta altura do
Islão, eram uma e a mesma coisa.
Da
afirmação anterior de Guillemain, resulta uma caracterização social perfeita de
Al-Andaluz. Os cristãos mantinham o direito de culto, e eram, na sua maioria,
elementos respeitados na sociedade. A aristocracia desenvolvia-se à volta dos
árabes sírios omíadas e dos chefes berberes que haviam procedido à invasão. As
colónias judaicas eram responsáveis por grande parte do comércio do novo estado
que, apoiado numa agricultura que juntava as excelentes condições com novas
técnicas muçulmanas e novos produtos introduzidos, e que assim prosperava, bem
como pela particular posição geoestratégica de Al-Andaluz, tendia a crescer
para níveis nunca vistos na península ibérica até então.
Desde
os tempos do emirado de Abderramão, primeiro emir, que o território foi
dividido em unidades administrativas, as Kuras,
à frente das quais era colocado uma espécie de governador, ou wali. Por outro lado, o acesso fácil ao
ouro norte-africano instituiu o dinar
de ouro como moeda padrão, que valia 10 dirham
em prata. Foi nesta altura que aqueles que tinham assinado os pactos de
capitulação se tentaram sublevar, mas depressa foram dominados pela criação de
um exército regular central. A centralização do estado estava em marcha. Sinal
evidente disso era a cobrança centralizada de impostos, conceito até aí esquivo
aos cristãos, aliás, como bem refere Guillemain:
“Neste
grande Estado muçulmano que os textos árabes denominavam de Al-Andaluz e a que
a divisão em governos, e o recebimento de impostos davam uma receita que os
reinos da Europa cristã ignoravam, (…)”.
Estes impostos eram pagos apenas por não muçulmanos, o que provavelmente terá
levado à revolta moçárabe nos tempos de Abderramão II, que este dominou com
mais ou menos dificuldade. Aliás, terá sido este emir que dotou o estado de uma
estrutura central moderna, baseado no exemplo do califado abássida.
A
fundação do califado representa, provavelmente, a idade de ouro de Al-Andaluz.
O feito deve-se a Abderramão III que, em 929, toma o título de califa e assim
se torna, efectivamente, independente do califado de Damasco/Bagdade. Curioso é
o facto de os cristãos terem, por esta altura, um ímpeto renovado no seu
esforço de reconquista. O facto é que, por mais algum considerável tempo, o
califado permaneceu na península ibérica.
Destas
características, muitas heranças se podem inferir do califado Al-Andaluz. Do
ponto de vista económico, ainda hoje as grandes culturas andaluzas permanecem
as mesmas daqueles tempos, bem como o comércio mediterrânico, um dos seus
trunfos. Culturalmente, as línguas, quer castelhana, quer portuguesa quer
valenciana ou mesmo a catalã, conservam testemunhos preciosos de vocábulos
árabes. A dimensão artística da herança de Al-Andaluz é impressionante e não
pode ser negada: basta olhar para a última capital, Granada, e o seu
extraordinário palácio Alhambra, para a imensa catedral de Córdova, antes sua
mesquita, ou para a traça antiga de Sevilha e a sua enorme torre Giralda. Isto
para não falar em todo o manancial de lendas, poemas e canções que felizmente
por este califado nos foi deixado.
Mas
outras heranças subsistiram. A luta da Reconquista cristã tomou muitas formas,
mas uma delas foi a consolidação territorial através de Ordens religiosas, em
tudo semelhantes às Kuras árabes,
mais tarde as célebres taifas. A
ideia de guerra santa foi uma das mais persistentes, não só na península, mas
em toda a Europa e todo o mundo árabe. Essa é a sua herança religiosa. Por
outro lado, ambos os lados usaram os judeus para a administração de recursos
financeiros (quer as taifas, quer as
ordens religiosas), o que veio a conferir a esta etnia uma áurea de excelente
negociante.
No
fundo, e como refere Amine Maalouf, na sua entrevista à Euronews, a sã
convivência neste encontro de culturas – não confronto de culturas – devia ter-nos legado algo mais que a guerra
santa movida por ambos os lados. O califado Al-Andaluz é prova histórica de
que, na maior parte das vezes, as três confissões, cristã, judaica e árabe,
conviveram mais do que se guerrearam.
Bibliografia:
·
Delumeau, Jean
– As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Presença, 1997. 2ª
Edição, ISBN 972-23-2241-9
·
Riché, Pierre – As
Grandes Invasões e Impérios, séculos V a X, in História Universal, vol. 5, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1980
·
Ruiz Domenec, José Henrique – O Islão na Península Ibérica, in José Pijoan, História do Mundo, vol. 5, Lisboa, Publicações Alfa, 1973
·
Vázquez Borau, José Luís – As religiões do Livro, Lisboa, Ed. Paulus, 2008
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