segunda-feira, 4 de novembro de 2013

EVANGELHO DE CIRRUS MINOR, CAPÍTULO 1

Ilustração Marco Joel Santos

  1. Naqueles dias, era o tempo de Herodes sobre o povo do Senhor, e sobre Herodes era César, e os estrangeiros dominavam na Terra prometida; e eram uns sobre os outros, e outros sobre os uns e tudo ao molhe e fé no Senhor;
  2. E eis que eram estas práticas que desgostavam ao Senhor, pois que Ele se havia esquecido do mandamento “Não farás orgias malucas”, mas pensava que estava subentendido; e, por isso, a fúria do Senhor se manifestou, porque o seu povo se deixava corromper por outros;
  3. E o Senhor meditava no que havia de fazer à humanidade, e não encontrava coisas originais; assim, coisas divertidas como afogar toda a gente num dilúvio ou arrasar a Terra com fogo vindo dos céus pareceram-lhe coisas pouco originais.
  4. E eis que entrou na sala o seu Filho mais velho, derrubando uma jarra chinesa da dinastia xung; e eis que o Senhor se decidiu: “Vou enviar este pestinha aos homens! Assim chateio-os com mais uma série de mandamentos e cenas do género, enquanto a casa fica arrumada cá em cima! Porra, até pode ser que ponha a leitura em dia, há que séculos tenho o Manifesto em cima da mesinha de cabeceira!”;
  5. E o Senhor chamou o mordomo, para que este cumprisse as suas ordens. Divertido seria até cumprir aquelas profecias malucas do Elias e fazer o puto nascer em Belém de uma virgem, no meio de um tasco onde arruaceiros comessem sandes de torresmos e emborcassem mines.
  6. “Gabriel” – disse o Senhor – “Vai à terra de Belém e encontra lá uma virgem em idade casadoira, e dela farei o ventre do Senhor, pois que dela nascerá o meu Filho, sem pecado!”
  7. “Senhor” – respondeu o Gabriel – “que a Tua palavra seja tornada realidade. Mas achas que em Belém vou encontrar um tal ser tão estranho? Não seria mais fácil fazê-lo nascer de uma velha de 90 anos na Bolívia?”
  8. “Não porás em causa as ordens do Senhor teu Deus!” – trovejou a voz do Senhor, visivelmente irritado com o puto, que agora andava atrás do gato por detrás da Meo Box – “Olha, está aí um bom mandamento, não me lembrei deste… Como dizia, vais a Belém encontrar uma virgem e vais mesmo! Além disso, já engravidei uma velha, a mulher do Abraão. Não é original! E pára com essa porra de me tratares por tu!”
  9. “Senhor, e qual dos teus filhos vai enviar?” – perguntou Gabriel, ao que o Senhor respondeu: “Olha, vai este! O outro não faz mal a uma mosca, mas também é verdade que desde sempre se desgostou com o nome. Devia ter-lhe chamado outra coisa, tipo Fantasma Sacro, ou Divino Espectro… Espírito Santo o gajo não aprecia… Diz que lhe faz lembrar o Chipre, vê lá tu! Ele, que nunca esteve em Chipre!”
  10. E Gabriel tomou o caminho da Terra, e apanhou o elevador junto do 4023º Esquerdo. E eis que, chegado à terra de Belém, avistou um palácio, e não se demorou a entrar. E lá encontrou um ancião, a quem perguntou: “Qual o teu nome, velho rei?”. O velho ancião, que dormitava num cadeirão, abriu e fechou a boca três vezes, com um barulho de quem come bolo-rei a seco.
  11. “Oh Maria, os angolanos vieram-me matar! Oh Maria, oh Maria, olha este preto! Eu bem disse ao Machete para não abrir o bico lá em Luanda! Catano do velho que não sabe estar calado! Não aprendeu comigo, que só falo quando não há nada para dizer!”
  12. Gabriel saiu apressadamente do Palácio perseguido por uma anciã aos berros e dois GNR a cavalo de paus de vassouras disparando rajadas de água de bisnagas. Não que pudesse ser atingido por tiros ou algum mal terreno o pudesse afectar, mas entristecia-o o estado em que Roma deixava aquela terra, onde já nem havia cavalos nem armas que atirassem coisas a sério, bem como o facto de lá por ser do Médio oriente logo foi apelidado de preto. Para além do mais, a velha não parecia estar em si. Há 40 anos.
  13. Caindo a noite, Gabriel, já um pouco arrependido de se fazer representar como ser humano, lá voltou à sua forma original e voou por cima de Belém. E fez uma batota e lá foi vendo quem se encontrava no interior daquelas casas. E dentro de uma delas viu uma bela rapariga, e cedo se manifestou num dos sonhos dela, daqueles sonhos que parecem tão reais que se cheira e se responde e tudo. Que bela história esta! Depois veio o Pai Natal e o palhaço…
  14. E disse Gabriel à rapariga, no sonho dela que agora também era seu, ou coisa assim mais ou menos parecida com algo saído de um filme do Harry Potter ou do Senhor dos Anéis: “Qual o teu nome, doce donzela?”. “Maria” – respondeu a moça – “mas isso da donzela é medieval e é suposto estarmos em 4 a.C.”.
  15. “Não te armes em esperta, ò peste do c…! És virgem, Maria?” – perguntou o enviado do Senhor, ao que ela respondeu – “Depende da perspectiva… se as orelhas contarem…”. O anjo ergueu os olhos para o céu, e abanou a cabeça, e finalmente afirmou: “Está lá perto.”. E o filme transformou-se de repente nas Sombras de Grey ou no Senhor dos Anais.
  16. “Pois é chegada a hora de dares à luz o Filho do Senhor, teu Deus! E darás à luz em Belém, e não estarás contaminada pelo pecado! Pois que o salvador do mundo será concebido no teu ventre sem pecado!”
  17. Maria ouvia, submissa, e respondeu: “Seja feita a vontade do Senhor, mas sempre ouvi dizer que isto devia acontecer em Nazaré e não em Belém, pois só devia dar à luz em Belém, dentro de nove meses! O que aconteceu a Nazaré?”
  18. Gabriel suspirou e ficou admirado com a sapiência da jovem e docemente respondeu: “Estás doida? Aquilo desde que o Samarra surfou a onda de trinta metros que está cheio comó c…! Já nem chicharro se compra em condições naquela terra! Além do mais, vê lá, poupa-se numa viagem!”
  19. “E José?” – perguntou a jovem. Gabriel não se tinha lembrado do namorado, pois claro, ainda havia de aparecer mais um cabrão para atrapalhar – “O teu namorado?” – “Sim, às vezes é ele, outras vezes…” – “Chega, não digas mais nada... Eu falo com ele em sonho…”
  20. “Olha lá, ò anjo, e isso do concebido sem pecado não é assim um bocado forçado…? Quer-se dizer, eu até ouvi dizer que os anjos não têm sexo, mas não é verdade, pois não? Não queres assim… mostrar o que vales e tal…? Antes de ires falar com o corn… o José?”
  21.  “José!” – clamou Gabriel, acordando o homem – “José, tua noiva dará à luz o Filho do Senhor, engendrado sem pecado, ou lá como já foste, no seu ventre! Desposarás a Maria, e criarás o Filho do Senhor como se teu filho fosse, e muito o amarás, e dele farás um Homem, o Filho do Homem de que o Mundo precisa para remissão dos pecados!”
  22. “Tá tudo,  meu, mas comigo falas com o coiso dentro da braguilha, que isto de me apareceres à porta a abanar o badalo não me parece bem. Quanto a isso da Maria, tudo bem, mas só com uma condição!”
  23. “Fala das tuas condições, José, mas não forces demasiado a coisa que o Gajo lá de cima está maldisposto e pode lembrar-se de te fazer alguma…” – disse Gabriel, ao que respondeu José: “E vai-me fazer o quê? Já me fez corno e pouco tenho a dizer sobre isso, imagina tu…! Ao menos, que me arranjem um daqueles apartamentos da Câmara e o RSI!”
  24. “Então tu não és carpinteiro? Para que precisas de um subsídio para prover à tua família? Não viverás feliz exercendo a tua profissão?”
  25. “Pois, é uma possibilidade. Mas pelos vistos já tu vens suado o suficiente para a história – por enquanto, lá para a frente logo se verá – e não é a fazer cadeiras que compro um carrito para dar aquelas voltas com o puto aí pelo Médio Oriente. Ou são assim tão forretas que me vão obrigar a andar de burro?”


4 comentários:

  1. E eu, humilde serva do Senhor, muito apreciei esta versão de escritos passados.

    Cirrus, servo tresmalhado, voltaste a casa! :)

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    1. De humilde tens pouco e de serva do Senhor ainda menos.

      Mas eu saí de casa???

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