Ilustração Marco Joel Santos |
Seja como
for, a proposta é ridícula. Mudar a designação de um cartão não protege a
identidade feminina ou masculina do seu portador ou sua portadora. A culpa é da
língua. O português é uma língua difícil, arcaica, descritiva. O português, ou
língua portuguesa, não vá alguma deputada do BE sentir-se ofendida por falar
português, discrimina género em quase tudo. O inglês, por exemplo, não tem esse
problema, pois um citizen feminino é igual a uma citizen masculina, ou
vice-versa, que este assunto dá para confundir. A mesma palavra aplica-se ao
feminino e ao masculino e designa, no geral, os adeptos do Manchester City.
Ora acontece
que, em Portugal, cidadão é uma palavra que, para algumas pessoas do BE, não se
aplica às mulheres. Claro, têm razão. As mulheres são cidadãs. São diferentes. São
cidadãos, mas femininos. Não são portugueses, são portugueses femininos, o que,
logo, os torna algo especiais. Mesmo assim, tenho arrepios quando relembro a
forma cínica que cavaco utilizava para começar os discursos, “Portugueses e
portuguesas”, em vez da solenidade rígida mas empática do General Eanes quando
começava com “Portugueses” apenas.
Isto pode
ir longe. Logo, assim de repentemente, lembro-me das Lojas do Cidadão. Nunca
percebi porque se chamam assim, já lá fui algumas vezes e nunca consegui
comprar um cidadão. Se calhar fui ao local errado e devia ter ido a uma
qualquer sociedade de advogados. As Lojas do Cidadão terão de se chamar Lojas
de Cidadania. O que piora as coisas. Se nunca lá tinha comprado um cidadão (ou
cidadã), muito dificilmente comprarei cidadania, a julgar pela falta dela da
generalidade das pessoas que lá se amontoam. Mas nem só de cidadãos vive o
homem. E os beneficiários e beneficiárias? Também teremos de ter um cartão de
Beneficiária. E cuidado com os mais iletrados, porque aí a coisa piora. Não é
pouco usual as pessoas mais iletradas se referirem aos homossexuais como “homens
sexuais”. Piorou, porque nunca lhes ouviram a expressão “mulheres sexuais”. Primeiro,
porque para grande parte dessas pessoas uma relação homossexual entre mulheres
é impensável e segundo porque, para queles que assim não pensam, é mais fácil
dizer que “batem pratos”. Que é uma expressão extraordinária que não quer dizer
absolutamente nada.
Se pensarmos
ao contrário, as coisas também podem ir longe. Não devemos poder mais dever
dinheiro às Finanças, se formos homens. Queremos o direito a dever também aos
Finanços. E se forem finados, melhor, pode ser que esqueçam a dívida. Cuidado
com a palavra “pessoa”. É feminina e os homens podem querer não ser tratados
por pessoas, mas antes como indivíduos. Assim ficaria pessoas para as mulheres
e indivíduos para os homens. Os homens podem querer também não serem incluídos
na Humanidade, já que a palavra é feminina. Obviamente, as mulheres podem não
querer igualmente pertencer ao Homem quando a palavra é utilizada para designar
a raça humana.
Os livros
de História têm de ser todos mudados. Não pode haver mais a referência ao Homem
de Cro-Magnon, pois também devia haver mulheres de Cro-Magnon. O Homem não
apareceu em qualquer altura da pré-história, pois a mulher também deve ter
aparecido mais ou menos na mesma altura. Considerando os atrasos mais típicos
das senhoras, deve ter aparecido dez minutos depois. Cuidado com expressões
paternalistas como “os putos”. Pode haver meninas no grupo e quererem ser
tratadas por putas. Nos hipermercados, teremos de ser mais criteriosos e pedir
no talho 1 kg de carne de porco ou de porca, de vaca ou de boi, de peru ou de
perua, de frango ou de galinha.
É óbvio
que a proposta é ridícula. Mas há 150 anos, uma mulher ter direito a voto era
ridículo. Na verdade, em Portugal, só votava quem, nessa altura, tivesse
suficiente fortuna pessoal comprovada, o que hoje seria ridículo. Há 50 anos
apenas, era ridículo um preto entrar pela mesma porta do autocarro que um
branco, ou sentar-se nos mesmos bancos, em países tão diversos como a África do
Sul, Portugal ultramarino ou os EUA. Era ridículo, há quinze anos atrás, pensar
que poderíamos publicar detalhes da nossa vida privada para um público de milhões
de pessoas. Tudo isto era ridículo. Era ridículo, em Portugal, noutros tempos,
falar de política em público, e até em privado. Era ridículo uma mulher
conduzir, era ridículo uma mulher ser sequer advogada ou militar.
Por outro
lado, era usual, em Portugal, até há bem pouco tempo, atirar lixo para o chão,
fumar em locais públicos fechados, bater em crianças que não nos nossos filhos
ou não colocar o cinto de segurança.
A cidadania
faz-se de pequenos ridículos. Tudo o que fazemos hoje numa sociedade avançada
pareceria ridículo aos nossos antepassados. Trabalhar pareceria ridículo a um
aborígene, ter eleições pareceria ridículo a D.Afonso Henriques. Na verdade,
tudo é ridículo. Mas nós fazemos isso tudo. Mais um ridículo não nos faz mal
nenhum. Mas que é ridículo, é. Principalmente ridículo. Ridícula não sei se é,
não ouvi ainda nenhuma mulher pronunciar-se. Mas também é certo que nós,
homens, é que sabemos o que é bom para as mulheres. E isso não nos parece
ridículo.
Sem comentários:
Enviar um comentário
LEVANTAR VOO AQUI, POR FAVOR