quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O QUEIJO


Ilustração de Marco Joel Santos
Reza a lenda que, certa vez, um pastor, após longa ausência nos montes, chegou finalmente a casa. Trazia um queijo, um daqueles belos queijos serranos, contando regalar a sua esposa com tão requintado presente. Porque a vida de pastor não era abastada e os queijos que fazia não os comia, antes os vendia no pequeno mercado da vila, aos Sábados. O pastor não tinha filhos, e tinha algum desgosto por tal facto. Ao mesmo tempo, a sua esposa era conhecida em toda a aldeia, meia dúzia de casebres perdidos nas encostas da serra, pela sua enorme teimosia.
O homem, querendo de imediato saborear o queijo trazido de tão longa jornada e feito com o leite das suas cabras e com o suor da sua fronte, pede à esposa uma faca com que o cortar. De imediato a esposa lhe traz uma tesoura. O pastor, olhando para as mãos de sua esposa, diz-lhe que vá buscar uma faca, pois que um queijo não se pode cortar com uma tesoura. Mas a esposa recusa-se, insiste que o queijo se corta com uma tesoura e não com uma faca. A discussão torna-se altercação, sobe de tom até ao confronto físico, e finalmente ao desespero do pastor. Arranca a esposa do chão e leva-a no costado até ao poço da casa, lança-a às águas escuras e vê-a debater-se em desespero. Grita-lhe que a salva, que a tira das águas negras que a envolvem, que a poupa à morte certa, se ela admitir que um queijo se corta com uma faca.
Demasiado tarde, a esposa do pastor já não consegue falar, pois afunda-se nas águas. Agora é o pastor que chora, olhando a desgraça que sobre ela e sobre ele se abate. A sua esposa amada estava já morta, pensava. Mas eis que um braço se ergue das águas, e dele uma mão, e dela dois dedos fazem um movimento de tesoura.
Esta lenda parece-me elucidativa para os tempos que vivemos. Muita gente, em todos os quadrantes desta sociedade europeia, teima em tentar cortar o queijo com uma tesoura, sabendo que a faca é a única solução. Tarde demais. As águas negras já nos cobriram a todos.

10 comentários:

  1. Presumo que a mão não tenha apenas feito o movimento de tesoura mas que tenha arrastado o pastor para as águas escuras também! Tal como a nós nos arrastaram para esta situação miserável...

    P.S. Não sei porquê, lembrei-me do queijo Limiano. Não que tenha a ver com a lenda mas porque a Scut Viana-Ponte de Lima passou a ser portajada!!

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  2. Esta não conhecia... é uma lenda muito violência doméstica, não?...


    Malena, e não é que quando li o título a primeira coisa de que me lembrei foi também do Limiano?!... :D

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  3. Quando li, e li por várias vezes, associei sempre a um queijo serrano envolto em tecido cru, de aspecto grotesco embora delicioso como as gentes que os fazem.
    O resto, bem, o resto é tudo e espelha a teimosia levada á última.

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  4. Agora o único que se eleva sobre as águas é o dedo médio...

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  5. Malena, a mão não puxou ninguém. a esposa afogou-se mesmo sabendo que poderia ter evitado esse destino com algum bom senso.

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  6. Pronúncia, é uma história com alguma violência, sim. Mas o princípio subjacente é o mais importante.

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  7. Marco, efectivamente esta lenda vem das serranias da Estrela...

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  8. Cat, devia, meu caro, devia...

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  9. Também muito temos que seja tarde demais, os estragos já são mais que muitos. Mas ainda se insiste na mesma receita.

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  10. André, nunca é tarde demais. Se nada se conseguir antes, há a reconstrução...

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