Ilustração Marco Joel Santos |
Falemos então
dos diversos acontecimentos ao longo dos últimos tempos. Alguém ainda se lembra
da Primavera Árabe? Um encadeamento de revoluções em países árabes com as mais
diversas consequências. Começou na Tunísia, onde pouco ou nada mudou
verdadeiramente, evoluiu para o Egipto, onde o sentimento de arrependimento
pelo afastamento de Mubarak se generalizou de tal forma que os membros da
Irmandade Muçulmana estão presos ou em fuga. E depois, o verdadeiro cerne da
questão, a Líbia.
A revolução
líbia foi provavelmente aquela que foi mais desejada por todo o mundo
ocidental. Para os povos ocidentais, Kadhaffi era o estandarte de uma estranha
mistura de fundamentalismo islâmico com socialismo à africana. Um mal a
extirpar. Para os governos ocidentais, Kadhaffi vinha servindo os interesses de
todos, e não devemos esquecer as excelentes relações que este mantinha com a
Comissão Europeia e os diversos governos europeus (com o nosso incluído) e até gozava
de alguma aquiescência por parte dos americanos. O que mudou então? Já lá
vamos. O certo é que a Líbia entrou numa sangrenta guerra civil, que não parou
até hoje, pois as facções que derrubaram Kadhaffi enfrentam-se agora de forma
feroz, depois de terem tido o apoio logístico e mesmo bélico do ocidente. Curiosamente,
o jornalista James Foley foi aprisionado e mais tarde libertado por Kadhaffi. A
Líbia está a ferro e fogo.
Depois rebentou
a revolução na Síria. Assad, que sucedeu ao seu pai também Assad começou a ser
contestado e daí até à guerra aberta foi um passo. Os insurgentes, com o apoio
ocidental, situação análoga à da Líbia, tomaram posse de diversas cidades
sírias e ameaçam derrubar o ditador. O apoio ocidental não pode ser directo, por pressão da Rússia, tradicional aliada de Assad. Curiosamente, os EUA afirmam que o
jornalista James Foley foi raptado pelas forças de Assad.
Mais uma
revolução que não ficou pela revolução palaciana simplesmente política foi a
ucraniana. O poder instalado com o apoio de Moscovo, que representava metade da
etnia russa do país, e que rapidamente tinha substituído a teia corrupta da
ex-presidente Yulia Timoshenko por uma teia igualmente corrupta comandada por
oligarcas ligados a diversos negócios, começou a ser contestada pela parte da
Ucrânia que não fala russo, com o apoio do mundo ocidental. Desta vez, foi
particularmente interessante ver representantes de Washington e de Bruxelas
entre a multidão que se manifestava nas ruas de Kiev. Sobe ao poder uma mescla
de pequenos partidos de oposição, com um denominador comum, a extrema-direita. Quem
não se lembra da saudação nazi de Arseniy Yatsenyuk quando finalmente assumiu o
poder? A Rússia entra na Crimeia por interesse geopolítico, alegando interesse
étnico. O que não é inteiramente falso, uma vez que todo o leste ucraniano é de
etnia e língua russa. Aliás, e quem sabe um pouco de História sabe, esta parte
da actual Ucrânia está no âmago do nascimento da nação russa. Tal como o Kosovo
para a Sérvia. Rebenta a guerra que ainda dura. Pelo meio até um avião comercial malaio se disse
que foi abatido, e provas de que teriam sido os rebeldes a fazê-lo apareceram
em catadupa, ou pelo menos assim foi dito. O que é um facto é que ninguém apresentou
qualquer prova disso até agora e se provas há de alguma coisa é de que toda a
gente que abriu a boca para acusar os rebeldes do crime já não abre a boca há
bastante tempo, o que não deixa de ser interessante.
Liguemos
os pontos, então. Vamos a denominadores comuns a três situações. Às coincidências.
Ora, por coincidência, verifica-se que o mundo ocidental, nomeadamente os EUA e
a UE estão presentes nas três situações. Por coincidência, todos estes três
países têm implicações importantes na produção e fluxo de gás natural da Ásia e
da África para a Europa. A Líbia é um grande produtor, a Ucrânia é por onde
passam os gasodutos russos que abastecem a Europa Central e a Síria é a
principal alternativa para o mesmo intuito para o gás natural proveniente do
Golfo e do Afeganistão – curiosamente países ou regiões onde houve recentemente
guerras e onde aparentemente guerras ressurgiram.
Aspectos
laterais destas situações que não deixam de ser interessantes. James Foley, que
havia sido raptado por Kadhaffi na Líbia e por Assad na Síria, acabou, afinal,
por ser raptado na Síria, sim, mas pelos rebeldes, pelo que parece que Assad
tinha alguma razão ao negar que tinha sido ele a fazê-lo. Acaba nas mãos do
ISIS, Estado Islâmico da Síria e Iraque, e aparentemente executado em directo
na internet por um mordomo muito british. A família, entrevistada dois dias
depois do aparentemente sucedido, mostrava uma calma impressionante. O próprio
Foley mostrava uma calma impressionante no momento da execução, vestido com um
sugestivo fato laranja, que é muito comum, como sabemos, em zonas de guerra,
particularmente no Médio Oriente. Mais anedótico do que este excelente vídeo
são os excelentes vídeos de assassinato em massa perpetrados pelo ISIS,
organização que, relembro, foi apoiada pelo mundo ocidental contra Assad…
Mais um
aspecto interessante destas situações são as sanções à Rússia. Aquilo que até
agora me fazia sorrir, pois as sanções à Rússia limitavam-se a algumas ténues
proibições financeiras contra alguns esbirros de Putin, faz-me agora rir a
bandeiras despregadas, com os nossos produtores de pêra rocha, e os produtores
de pêssego espanhóis e os agricultores franceses e os criadores de carne britânicos
a queimar em praça pública a bandeira da União Europeia. E, imaginem, a Rússia
nem sequer ameaçou um embargo energético, que deixaria a Europa Central
congelada já este inverno.
Como
dizem os britânicos, “connect the dots”.
A manipulação de que somos alvo é de uma constância indecritível. Há que ter muito discernimento e estar alerta para conseguirmos "connect the dots".
ResponderEliminarBela análise, com de costume, Cirrus!
O Putin também me faz rir a bandeiras despregadas. Especialmente pela forma sensata como trata os árabes, usando a única linguagem que os animais percebem. É ver como as bestas da Tchetchénia andam mansas, e a esquerdalhada do Ocidente caladinha.
ResponderEliminarChe
O Putin não é nenhum santo. Mas a realidade é o que é. A Ucrânia nada tem a ver com a Europa, a Europa nada tem a ver com a Ucrânia. Os ucranianos são russos e sempre hão-de ser, não são alemães, nem austríacos nem qualquer outra coisa que queiramos que eles sejam. São russos, como sempre foram. Falhamos, mais uma vez, em analisar a História, que tantas lições já nos deu. Teimamos nisso, acreditando sempre que desta vez será diferente. Não é.
EliminarPresumindo que vive no «mundo ocidental», já pensou ir viver para um país do «mundo não ocidental» para ser mais feliz? Olhe que não terá outra vida para viver...
ResponderEliminarSaudações,
António
Presumo que no mundo não ocidental, pela sua forma de ver, não há vida. Estranho planeta que só tem um hemisfério habitado... Em todo o caso, e como bem sabe, as grandes catástrofes da Humanidade, vulgo Guerras Mundiais, ocorreram no que chama "mundo ocidental". Talvez seja bom fugir para o não ocidental enquanto pode... Senão pode não ter outra vida para viver... ;)
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