Ilustração de Marco Joel Santos |
Não vai há muito tempo, mais concretamente
uns dias, escrevi, num contexto de guerra no Médio Oriente, da soberba dos
homens que pretensamente comandam os destinos daqueles povos. Escrevi soberba,
mas podia escrever vaidade, presunção, arrogância ou mesmo pretensionismo. Esta
última é daquelas palavras que calham sempre bem, é um termo politicamente
correcto que no fundo apenas quer dizer o que as outras dizem de forma mais
clara. Por defeito, o Homem é arrogante. O Homem é limitado, mas não conhece as
suas limitações. A História está cheia de exemplos de arrogância vergada ao seu
destino que, normalmente e com raras excepções, é a derrota.
Podia escrever sobre Hitler, Napoleão ou
Nixon. Exemplos de arrogância vergada à vergonha da derrota. Mas prefiro a sabedoria
da Antiguidade, até porque é na Antiguidade Clássica que encontramos os mais
pungentes mitos e histórias que serviram de base ou exemplo para muita da nossa
cultura.
No século VI a.C., a Lídia era uma potência
regional no Mediterrâneo Oriental. Era liderada por um rei extremamente rico,
de nome Creso. Dizia-se que a sua riqueza provinha da exploração de ouro no rio
Pactolo, um afluente do Hermo, onde, rezava a mitologia grega, se tinha banhado
o célebre rei Midas, que transformava em ouro tudo o que tocava. Desde Sardes,
a sua capital, Creso dominava praticamente todo o Egeu e parte da Anatólia,
agora que a influência Hitita cada vez menos era notória, desgastado que estava
o Império de Hattousa por constantes guerras contra o Egipto e a Pérsia.
Tão poderoso e rico era Creso que não
resistiu a erigir aquele que foi o monumento da sua vida e uma das Sete
Maravilhas, o fabuloso Templo de Artémis, na exuberante cidade de Éfeso, actual
Turquia, que havia de subsistir até ao séc. III da nossa era, quando foi
definitivamente destruído na invasão bárbara pelas hordas dos Godos. Creso era
rico e poderoso, mas havia uma ameaça pendente sobre os seus domínios. A ameaça
encarnava então na pessoa do Imperador Ciro II, da Pérsia, que havia já ocupado
todo o planalto mesopotâmico e grande parte da Anatólia com os seus vastos e
inovadores exércitos.
Creso, sendo ele próprio um rei temente às
instâncias superiores, não descartou uma consulta aos deuses antes de decidir a
sua linha de acção. Consultou então o deus Apolo, no seu oráculo, o famoso
Oráculo de Delfos, na margem norte do Golfo do Peloponeso. O Oráculo era
conhecido pela certeza das suas previsões mas também pela ambiguidade com que
as transmitia. Por vezes, nem todos compreendiam o que era dito e as interpretações
eram geralmente aclaradas apenas depois de se confirmarem as previsões. A
pitonisa falou e preconizou que se Creso fosse ao encontro de Ciro, para além
do rio Hális, por certo destruiria um grande Império.
Creso sublevou a Babilónia e captou o apoio
egípcio para a decisiva batalha de Timbra, às margens do Hális. Era tão grande
o seu poder que conseguiu até aliar a si a mais prestigiada cidade guerreira da
Grécia, Esparta. A coligação lídia foi facilmente vencida pelos persas, que
perseguiram Creso até Sardes, ocuparam a capital e o fizeram prisioneiro.
Concederam-lhe a graça da sobrevivência na faustosa corte persa, mas anexaram a
Lídia ao seu Império.
A arrogância de Creso é tão grande como a
sua ingenuidade. Se por um lado pensou que destruiria um extenso império como o
persa numa única batalha, não pensou que o império destruído, que o Oráculo de
Delfos tinha previsto, pudesse ser o seu. E esse sim, foi destruído numa única
batalha.
Esta pequena história, que considero
deliciosa, lembra o quão poderoso pode ser o consumo de alucinogénos, pois as
pitonisas do Oráculo eram a isso sujeitas em quantidades massivas. Mas, para
além disso, lembra igualmente o quão pode o Homem arrogante ser insensato.
Hoje, o Oráculo é outro, e parece-me ser
igualmente certeiro. A propósito da crise que assola toda a Europa e, em rigor,
todo o mundo, muito se tem falado de crescimento. Que temos de crescer, que
temos de criar riqueza, que temos de prosperar. Por outo lado, a população
humana na Terra não para de aumentar. Ainda aqui há uns dias foi anunciado o
bebé sete mil milhões e parece que entretanto já acrescentamos 87 milhões de
seres humanos à população global. A minha questão é simples. Crua, talvez
cruel, talvez até insensível, mas simples e objectiva: crescer para onde? Para
onde quer ir o Homem? Crescer é um objectivo em si, a população cresce, a
economia cresce, tantas vezes de forma artificial como ultimamente tem vindo a
terreiro. Mas há uma coisa que não cresce. A Terra. O Oráculo é aquele incómodo
sentimento de fazermos e dizermos aquilo que sabemos não estar correcto, e que
é a tendência judaico-cristã de ir e povoar o Mundo. Só que no tempo de Abraão,
o mundo era quase isento de seres humanos. Hoje somos sete mil milhões. Sete
mil milhões para alimentar, para vestir, para cuidar. E bem sabemos que desses
todos, apenas uma pequena parte tem esses cuidados providenciados.
Se o oráculo é a própria consciência humana
que sabe que se atingiu o limite em termos de população humana, e que não há
desenvolvimento sustentável que nos valha daqui a 20 anos, quando formos dez
mil milhões, o Império, tal como Creso fez, é muitas vezes confundido. Parece
que a soberba humana novamente vem ao de cima. O Império é a raça humana, o
Homem, dizem. É uma mentira descarada e óbvia. O Homem é Creso, arrogante,
poderoso e que se julga invencível. Mas não é o Império. O Império é a Terra.
Mas não o Império destruído, como a Lídia, mas sim o Império vencedor, a
Pérsia. Porque a Terra está-se literalmente cagando para o Homem. Quando este
tiver de desaparecer, é um adeus, oh vai-te embora e está pronto. A Terra vai
sobreviver. Nós, por este caminho, por esta espiral louca de crescimento, por
esta arrogância imensa de nos confundirmos com o local que habitamos, por o
assoberbar de descendência, por o explorar até à medula, nós, o Homem, não. O
Homem não sobreviverá. Regressará a sua massa morta ao seio da Terra, que dela
gerará nova vida, esquecendo rapidamente o capítulo fugaz da nossa existência
enquanto espécie dominante. É que o planeta é fabuloso: recicla tudo e encontra
sempre forma de sobreviver em quaisquer circunstâncias. O Homem não. Morrerá.
Como a Lídia de Creso.
É arrepiante sentirmo-nos do tamanho de um grão de areia. É, ainda, mais arrepiante ter que concordar contigo nesta matéria!
ResponderEliminarA Mãe Natureza e soberana...
ResponderEliminarMalena, não é nem deixa de ser arrepiante. A dimensão do Homem é absolutamente divina. Pena só se aperceber disso através do "crescimento". A sua verdadeira dimensão não é apenas a económica.
ResponderEliminarPronúncia, a natureza, como lhe chamas, é apenas prática. Racional.
ResponderEliminarCirrus, essa é um certeza. Nós iremos definhar; sucumbir à nossa ignorância em tempos de certezas e "conhecimento". Nota: e gostei muito da lição, stôre.
ResponderEliminarO Jota gostou da cadência narrativa do teu texto.
ResponderEliminarCat, só será uma certeza pela nossa arrogância. Só será assim se de facto nos multiplicarmos indefinidamente neste planeta de recursos escassos. Essa é uma certeza.
ResponderEliminarJota, obrigado.
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