No dia-a-dia, na azáfama diária,
habituamo-nos a queixar sobre as coisas mais triviais. É bem verdade que ultimamente temos tido
coisas menos triviais que o costume, que dantes não iam muito além da bola e
das novelas com um ou outro problema mais bicudo para resolver. Hoje, os
problemas são maiores, e enquanto assistimos a uma cavalgada para o abismo,
agarramo-nos ao passado e ao conforto da fé para negar a evidência.
No entanto, Portugal é um jardim à beira
mar plantado. Mediterrânico a sul, mais temperado a norte, às vezes seco,
outras vezes nem por isso, com zonas de deserto e outras desertificadas. É tudo
uma questão de manter a fé e a crista levantada. Mas um país onde, cada vez
menos, se pode viver. Cada vez menos, mas ainda.
Aqui há dois anos, tive o prazer de voltar
ao Médio Oriente. Tenho esse prazer quase todos os anos, mas nessa altura
visitamos a Jordânia. Para além das óbvias visitas a Petra, ao Wadi Rum, ao
Monte Nebo e Mar Morto, a Jordânia oferece muitos motivos de interesse. Amman é
uma cidade bonita, totalmente branca, antiga Filadélfia grega. Tivemos a
oportunidade, nas várias noites de permanência na capital, de passear pelas
ruas de uma cidade vibrante, cheia de vida, simpática num estilo despreocupado
e nada interessado naquele casal de estrangeiros que ali vai.
Dizia eu que há mais motivos de interesse. Desde
as imediações da fronteira com o Iraque até Jerash, a maior cidade greco-romana
que alguma vez vi na minha vida, em excelente estado de conservação, e toda a
zona envolvente, incluindo os castelos cruzados e islâmicos, frente a frente. Trata-se
de uma região aprazível, de sombras refrescantes, às margens do Jordão. E onde
nos foi servido o mais apetitoso e abundante repasto, ao lado do forno de pão ázimo
sempre a sair quente e à sombra das parreiras.
Pode dizer-se que é um risco um casal se
aventurar sozinho num país do Médio Oriente, na companhia de dois jordanos (um
guia e um motorista), mas a verdade é que o risco é mínimo e de outra forma teríamos
de andar de autocarro e não numa confortável berlina com ar condicionado só
para nós… Belas sestas. Contudo, apenas a uns 20-30 kms de Jerash (Gerassa em
latim – cidade dos velhos – uma história que poderei contar noutra altura),
ficam as fronteiras de Israel, Líbano e Síria, e, logo ali, a cidade de Daraa,
uma das primeiras que se sublevou ao regime de Assad, na Síria.
Se iria novamente a Jerash, hoje mesmo? Possivelmente
não, porque está muito frio por lá – nevou este fim-de-semana – mas apenas por
isso. Iria sim, e provavelmente faria as malas num ápice. A guerra civil que se
instalou na Síria não merece a nossa indiferença, e fugirmos da realidade não
nos leva ao seu conhecimento. Toda a chamada Primavera Árabe pode vir a
condicionar as minhas viagens, para os destinos que mais gosto, e que aprendi a
amar quase como se se tratasse do meu país. Talvez tenha a ver com a consciência
que tenho que foi naquela região que toda a nossa cultura nasceu.
Tenho esperado para ver no que dá esta
revolução árabe. Desde as escaramuças na Tunísia e Egipto, às guerras da Síria
e da Líbia, passando pela intervenção armada da Arábia Saudita no vizinho
Bahrein para prevenir o alastramento aos países do Golfo, tenho esperado. Não
teci comentários antes porque ainda não percebi quem e como vai mandar na Tunísia,
na Líbia, no próprio Cairo, a luz cultural de todo o mundo árabe. Não sei se
quem vai mandar vai ser a democracia ou um bando de milícias armadas em
senhores da guerra. Não sei ainda se substituímos ditadores facínoras por
regimes democráticos ou por regimes islâmicos.
Mas o que se passa na Síria, e, em boa
medida, o que se passou na Líbia, passa os limites de uma espera silenciosa – não
comprometida, mas de facto prudente. E deixa-me estupefacto a soberba humana de
meia dúzia de sujeitos que aceitam o fardo de serem enviados por uma qualquer
entidade superior, religiosa ou laica, para servirem de salvadores das suas pátrias.
Assad cabe nesta descrição de um mentecapto que não se apercebe da sua própria
mortalidade, da sua impotência para evitar que um dia passe à História como o
filho sanguinário de um ditador. Porque Assad nem sequer é um ditador. É apenas
o filho de um. E mais cruel que o pai.
Se Kadhafi já era um facínora, se Ben Ali
era um corrupto que se aproveitou da obra de Bourghiba, e o mesmo se passou com
Mubarak, a verdade é que todas estas personagens não são iguais. Kadhafi era um
ditador à moda antiga. Reprimia a oposição, mantinha o país com um nível de
vida invejável (para os padrões africanos, note-se) à custa do petróleo – e não, como por aí se diz, matava o povo
de fome, até porque a Líbia era destino de emigração de todos os países da África,
incluindo o vizinho Egipto – e via-se a si próprio como um semideus que nunca
poderia ser derrubado. Ben Ali era apenas um corrupto, que governava a Tunísia
de forma indolente e que tolerava uma oposição também ela indolente e pouco
expressiva. A crise de 2008 deitou tudo a perder. Mubarak era outro caso ainda.
Uma espécie de padrasto do povo, simultaneamente amado e odiado, alvo de
anedotas constantes pelas constantes operações plásticas que aos 80 anos o conservavam com uma imagem jovem. Mão de ferro? É certo, mas um ferro que raramente matava e
que acabou por abrir o Egipto ao Ocidente e conteve os ímpetos daqueles que
querem ver toda a região sob a lei corânica. Enquanto houve pão a bom preço, não
houve revolução. Mais uma vez, a crise de 2008 foi determinante.
Todos eles se arvoraram, no entanto, em
eternos governantes dos seus países. E aí está a soberba. Além do mais, a
soberba. E só pela soberba merecem ser destituídos. Mas não souberam sair, não
souberam reconhecer que os seus ciclos chegaram ao fim, não souberam
capitalizar aquilo que de bom fizeram pelos seus países para tentar encobrir
todo o mal terrível em que igualmente os mergulharam. Já diz a Bíblia que nem só
de pão vive o homem. É bem verdade – não há bem mais precioso ao espírito
humano que a liberdade. Só ainda não sei se é esse o caso que aqui se
prefigura. Sei que não é o caso da Bíblia.
Em todo o caso, Assad é pior que os outros
três juntos. E parecia que não fazia mal a uma mosca. Sabe-se – ou aventa-se –
das ligações sírias ao Irão e ao Hezbollah, das exportações de petróleo, do
turismo que começava a florescer, e relembra-se a pressão a que a Síria é
igualmente sujeita, desde muito cedo, pela presença da Nato a escassos kms da
fronteira norte, na imensa base de Adana. Em todo o caso, e apesar de tudo
isso, a Síria manteve-se um país esguio, muitas vezes neutral perante a opinião
internacional, longe dos fundamentalismos iranianos, sauditas, do Hezbollah ou
do Hamas – mas com ligações a todos eles. Agora, a verdadeira face do ditador
sanguinário é revelada em todo o seu horror. Não pela repressão religiosa, mas
sim pela força pura das armas. E ninguém faz nada. Porque ninguém sabe
verdadeiramente quem ou o quê pode vir a suceder a Assad. Há, como nas outras
revoluções árabes, fundamentalistas à espreita. E ninguém sabe, muito menos o
Ocidente, o que vai acontecer depois da deposição certa de Assad. E, importante
mesmo, ninguém sabe como vão ficar, no meio de tudo isto, Israel e o Irão. Só se
sabe uma coisa – o povo sírio está sofrer e a morrer – e nós sem saber o que
fazer.
Saio daqui bem mais elucidada sobre a situação no Médio Oriente toda!
ResponderEliminarObrigada pela partilha fundamentada Cirrus, e boa semana!
Boa semana! Obrigado.
ResponderEliminarEsse bigodinho do Assad é suspeito. Essa oposição do regime de Damasco ao liberalismo económico e político faz-me lembrar um certo nacional-socialismo...
ResponderEliminarQuem me dera também saber para onde caminham essas revoluções.
Dylan, não deve durar muito mais...
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