Em voga está a corrente que afoitamente classifica este
governo que agora temos de liberal, ou, na melhor das hipóteses, de
neo-liberal. Mas será que quem assim advoga realmente sabe o que é o
liberalismo? Será ajustado ideologicamente classificar assim o governo de
Portugal?
As origens do Liberalismo remontam ao autor e filósofo
inglês John Locke (1632-1704), que, para além de numerosos tratados
filosóficos, escreveu dois Tratados Sobre o Governo Civil. A ele,
essencialmente, se devem algumas das noções do Liberalismo, como o de
propriedade privada e o questionar do direito divino dos soberanos.
Filosoficamente, Locke defendia que o ser humano nasce sem ideias inatas, sendo
uma tábua rasa pronta a ser preenchida. Por tal razão, defende a igualdade de
todos os seres humanos. Até aqui tudo bem, mas Locke procura filosoficamente
sustentar a escravatura e defende que o poder político apenas pode ser exercido
por uns quantos esclarecidos – e quanto a igualdade dos seres humanos estamos
conversados. Para Locke, todos somos iguais, ainda que uns poucos possam ser
mais iguais que uns poucos mais outros, e o resto são escravos.
Com Adam Smith (1723-1790), o Liberalismo como ideologia
político-económica alcança contornos mais bem definidos. Smith defende, na sua
obra maior, “Uma Investigação Sobre a Natureza e a Causa da Riqueza das
Nações”, que a economia é impulsionada exclusivamente por esforços individuais
com vista a satisfazer o auto-interesse de cada indivíduo. Por seu lado, Stuart
Mill (1806-1873) admite governos déspotas em países atrasados, entre outras coisas.
O Liberalismo, como corpo doutrinário político, social e
económico inteiramente formado, defende essencialmente:
·
A liberdade individual, conducente
à livre iniciativa económica; o Liberalismo rejeita a noção de grupo ou equipa,
e a sua máxima “trata uma pessoa como um indivíduo e não como parte de um
grupo” é disso elucidativa;
·
Exclusivo da propriedade privada
face à propriedade pública e/ou comunitária;
·
Individualismo económico – é visto
como uma forma de alcançar objectivos – mesmo os mais desfavorecidos são
beneficiados porque se esforçam para melhorar a sua condição;
·
A entrega da condução do Estado
Constitucional aos detentores dos meios de produção;
·
Completa exclusão do Estado da
economia, sendo para este reservado apenas o papel legislativo, sendo que o
regulador económico é representado apenas pelas leis de mercado;
·
Sufrágio reservado às elites
financeiras e económicas, detentoras do exclusivo político;
Quando se dá a Revolução Francesa, em 1789, o Liberalismo
tem a sua primeira grande oportunidade de expansão fora do mundo anglo-saxónico.
Mas Rousseau não defende o Liberalismo político. Os ideais da Revolução
aproximam-se dos ideais liberais, mas rejeitam o seu primado político. Para os
revolucionários franceses, todos são cidadãos e todos, sem excepção, devem
participar politicamente – o sufrágio torna-se universal. Interessante será que
a condição de igualdade entre todos os cidadãos agradaria, por certo, muito
mais a Marx do que a Locke ou Mill.
Isto é o Liberalismo. Isto é o que os portugueses que
referem tantas vezes a perspectiva liberal deste governo, estejam a favor ou
contra essa perspectiva, deviam saber. Podemos, num exercício puramente
académico e altamente especulativo, verificar a situação, ponto a ponto, do
governo português face às premissas principais do Liberalismo.
Assim, em Portugal tem-se apelado, cada vez mais, ao empreendedorismo.
Mas não esqueçamos que, basicamente, essa dimensão económica esconde, por vezes
e das mais das vezes, arriscaria eu, o individualismo ou mesmo o egoísmo
económico. Face aos valores comunitários que sempre imperaram na sociedade
portuguesa, em que a identificação de um indivíduo no seio do seu grupo sempre
foi essencial, pode vislumbrar-se uma mudança de paradigma do social-democrata
para o liberal, de facto.
No que respeita à propriedade, o Liberalismo defende que esta
deve ser exclusivamente privada e não pública. A que assistimos na actuação
deste governo? À alienação, onerosa ou não de grandes partes do património do
Estado. As privatizações, aliás, têm sido catastróficas para a economia
nacional, uma vez que o estado tem feito investimentos avultados para
desenvolver negócios lucrativos (mormente na energia e água), para depois os
entregar a privados. Mais um ponto liberal deste governo e dos que o
antecederam? Até certo ponto. Mas há uma inversão de papéis quando se assiste
ao grosso do investimento por parte do Estado em empresas vendidas depois em
ponto de pleno funcionamento, ou seja, o investimento privado não é estrutural,
mas conjuntural, ao contrário do que defende a doutrina liberal.
Já me debrucei sobre o individualismo, mas convém referir
que a visão liberal de individualismo, que pode, de certa forma, ser ligado à
de liberdade (não no sentido colectivo mas estritamente individual) não implica
a liberdade política ou social. Apenas a económica. Para se ser um cidadão de
pleno direito, num estado puramente liberal (coisa que nunca existiu e
facilmente se provará nunca poder existir), tem de se ter propriedade
considerada suficiente para tal. Ou seja, a liberdade política e social só se
atinge depois de ultrapassadas as barreiras censitárias. Neste aspecto, estamos
longe, em Portugal, de tal situação. Pelo menos para já. O sistema social e
político liberal assemelha-se, em certos aspectos, às monarquias feudais da
Idade Média, nos termos estritamente políticos e sociais – não no económico.
A entrega da condução do Estado aos detentores dos meios
de produção (no sistema económico denominado por capitalismo, os
“capitalistas”) é uma realidade portuguesa desde há longos anos. Sócrates
funcionou ao serviço de um conjunto de lobbies empresariais. Passos, como toda
a gente sabe e finge que desconhece, é um pupilo de um dos homens com mais
ramificações empresariais em Portugal, Ângelo Correia, um homem cujos negócios
principais, não por acaso, talvez, estão na esfera dos negócios inteiramente
subsidiados pelo Estado (Lixo, Água, Energia renovável, etc.). Não é um grande
exercício de imaginação supor que Passos esteja efectivamente ao serviço dos
detentores dos meios de produção, ou pelo menos alguns deles.
A completa exclusão do Estado da economia é uma utopia.
Nenhum país o conseguiu até agora e nunca o irá conseguir, por razões demasiado
óbvias que não interessa aqui escalpelizar. Mas ideologicamente, podem fazer-se
aproximações razoáveis a esse objectivo, e exemplos desses Estados são, por
exemplo, os EUA e a Inglaterra. Nos antípodas deste estado de coisas, temos
países socialistas moderados, como a Suécia e restantes nórdicos, com um peso
enorme do Estado na economia. A questão da aproximação desse objectivo é
inequívoca no que respeita aos princípios ideológicos e sociais –
particularmente estes – deste governo. Os cortes sociais são muitos e variados
e adivinham-se movimentações para a privatização da Educação e Saúde.
O sufrágio, em Portugal, é universal. Até mais que isso,
pois até alguns mortos e enterrados têm direito a voto. Não será fácil, seja a
quem for que ocupe um governo em Portugal, revogar esse direito, em nome de
seja que imperativo seja. Mas temos de convir que a nossa tradição democrática
tem poucos anos. Uns poucos de República em que até Sidónio Pais revogou esse
direito e desde o 25 de Abril de 1974. Estaremos assim tão preparados para
resistir, se esse for um objectivo de um governo – em abstracto, não especificamente
este – revogar o sufrágio universal? Se calhar vai depender de alguns factores
mais ou menos exógenos, mas vale a pena pensar e acautelar essa situação. Digo
eu…
Portanto, será este governo liberal? No sentido clássico
do Liberalismo, sim, quereria ser. É liberal, o mais que pode. Só penso é que devemos
todos saber porquê e não atirar chavões para o ar. Aqui expus as razões pelas
quais este governo – e atenção, os anteriores igualmente, mormente o de
Sócrates – é uma aproximação ao liberalismo. A ausência de estímulos
governamentais ao crescimento económico e combate ao desemprego é a maior marca
de um governo liberal. E essa é indelevelmente a marca do nosso governo.
Resistirá muito tempo a rejeitar o liberalismo? Provavelmente não. Esperemos,
na minha singela opinião, que não.
Empreendedorismo é o quê? Ter um recanto numa sala para coser paninhos de cozinha?
ResponderEliminarJá ninguém aguenta a conversa do "seja o seu próprio patrão"!!
Liberalismo ou aproximação ao mesmo, o que vale é a situação em que nos meteram! E não é nada boa!
P.S. Texto excelente, como é teu hábito!
Conheço um sem abrigo que agora vende livros a 50 centimos...enveredou pelo empreendorismo?quanto à recessão é simples: só com uma recessão durante anos se destroi o estado social, e esse é o objectivo dos senhores do dinheiro, governo, e UE que tb tem essa meta!
ResponderEliminarInfelizmente as ideologias há muito que deixaram de existir (apesar de cada vez mais precisarmos delas), e pelo rumo que o Mundo levou, estou convicta que tanto uma como a outra deram muito mau resultado e estão condenadas ao fracasso, com tudo de mau que daí já resultou e continuará a resultar.
ResponderEliminarTenho para mim que o ideal (e esta talvez seja a minha ideologia) seria aproveitar o que uma e outra tem de melhor e esquecer os extremos... afinal "no meio é que está a virtude", já dizia a sábia da minha avó Luísa.
Ainda que mal pergunte... socialismo moderado na Suécia?!...
Malena, empreendedorismo é a arte de saber falar bem sem fazer a ponta de um corno. É desse empreendedorismo de que se fala.
ResponderEliminarTripalio, é óbvio que o objectivo principal é ideológico, sim, e não deve andar longe do que disseste, não...
ResponderEliminarPronúncia, nunca como agora a luta foi tão ideológica. E apenas porque sim. Porque convém. A Europa é governada por um directório ultra-liberal, e disso já ninguém tem quaisquer dúvidas.
ResponderEliminarQuanto à Suécia, um país com o nível do seu Estado, que detém mais de 50% da riqueza, que atenuou discrepâncias sociais da forma como atenuou, um país onde praticamente não há pobres, mas onde também não há ricos... A que chamas esse regime? Uma Terceira Via? Talvez. Em todo o caso o ideal sueco (de todos os governos que para lá vão) é eminentemente social. Logo, socialista. Penso que não há muitas dúvidas relativamente a isso...
Pois, o que não deixa de ser interessante é que é um socialismo que foi implementado por um estadista social democrata e que tem sido mantido por consecutivos governos conservadores de centro-direita onde, nas últimas eleições (2010), até a extrema direita tem lugar.
ResponderEliminarApelidar Olof Palme de social democrata é correcto. O incorrecto é dizer que Olof Palme era de direita. Deixo-te esta citação, que podes encontrar na wikipédia, que mostra bem o que era Palme: "Palme was said to have had a profound impact on people's emotions; he was very popular among most left-wing sympathizers, although an outspoken anti-communist, but harshly detested by most liberals and conservatives.[9] This was due in part to his international activities, especially those directed against the US foreign policy, and in part to his aggressive and outspoken debating style."
ResponderEliminarComo vês, aquilo que disse não está tão longe da verdade como alguns desejam que estivesse... Palme podia ser social-democrata, mas era odiado pelos conservadores, e não um, como dizes ou queres dizer.
Mais do que ser ou não governada por conservadores, lembro-te que a Suécia é um país inteiramente socialista nas suas bases - que Palme fundou - pois advoga o mais alto nível de apoios sociais do Mundo e é, actualmente, das democracias ocidentais, o país com mais alto grau de estatização. Ou seja, o país em que o Estado possui mais da economia, incluindo emprego. Ora, por exclusão de partes, não pode ser um país governado à direita, nem que te torças toda. Isto são marcas de socialismo puro, e só não de comunismo porque têm uma economia de mercado não planeada. Por outro lado, praticamente erradicaram a pobreza mas também a riqueza. Não há ricos na Suécia. E o mais rico sueco de todos teve de sair da Suécia para o ser, não esqueças.
Apenas pretendi ilustrar o meu primeiro comentário em que disse, e reafirmo, que as questões ideológicas puras não fazem de todo sentido, o que para mim faz sentido é aproveitar-se o que de bom cada ideologia tem.
ResponderEliminarNão me torço nem vou torcer toda, nem sequer achei, e muito menos insinuei, que o que disseste estava longe da verdade... mas interpretaste assim, tudo bem.
Não discordo do que dizes. Como já por muitas vezes afirmei, não há sistemas maus. Há pessoas más. Provavelmente também não há sistemas bons, apenas pessoas boas. No entanto, continuo a afirmar que a Suécia e, de um modo geral, as democracias nórdicas, são norteadas por soluções socialistas - estruturais, não conjunturais. Basta vermos a discrepância entre os direitos sociais suecos e os que agora nos propõe este governo. Basta compararmos o peso do Estado na Suécia com aquele que nos querem fazer crer ser o ideal para Portugal.
ResponderEliminarQuanto ao torcer... Eh pá, bem te podias torcer um bocado. Às vezes torcer é fixe...
;D