quarta-feira, 1 de abril de 2009

Outros costumes


Tínhamos acordado no Cairo, no magnífico Hotel Movenpick Media City, onde tínhamos assistido a um espantoso espectáculo, um grande casamento árabe, durante parte da noite anterior. Conhecemos duas turistas portuguesas, a quem nos propusemos mostrar um pouco da baixa do Cairo. Um passeio pelo grande bazar, o Khan al Khalili, e uma visita ao museu.

Havia uns dias que tínhamos assistido e sido convidados para um outro casamento, em Edfu, este muito pobre, sem as limusinas do Movenpick, apenas com duas carrinhas de caixa aberta muito barulhentas.

Chamamos o Farahat para as nove horas e às nove menos cinco, lá entrou o sorridente taxista pela porta do hotel, gritando "My frriend" e fazendo razoável alarido, o que, no Egipto, mesmo num hotel de 5 estrelas executivo, nada era mais que costumeiro. Não via Farahat havia quatro anos. Estava mais magro, o que me levou a pensar se não andaria a abusar dos charros. Fomos andando para o carro, depois de profusos cumprimentos às meninas e à minha mulher, "beautiful Claudia Nefertiti".

Já não era uma Peugeot 504! Farahat monta agora um belo Carisma cinzento, novo. Surpreendido, afirmo que o negócio lhe corre bem. Escusado - a um árabe, o negócio corre sempre bem. Então e a Peugeot, onde ele me costumava levar a Saqqarah? Estava tudo bem, ainda a tinha, mas só fazia com ela viagens a Sivah, Tripoli, Suez ou Jerusalém. "Tem muito mais arrumação!" dizia ele no seu inglês duro como uma pedra, característico do Cairo. Atrás, vendo-se claramente através do vidro traseiro da viatura, um cachecol orgulhosamente exposto, com cinco quinas a verde e vermelho! O carro mudava, mas o adereço que lhe tinha oferecido mantinha-se!

Entrei para a frente, enquanto Farahat segurava a porta para as meninas entrarem. Simpático, mas inconsciente. Durante a viagem, segreda-me que se tinha divorciado. Não me mostrei surpreendido. Há quatro anos a coisa já não prometia. Por alguma razão, Farahat não podia ter filhos e a mulher culpava-o do facto. Olha se fosse há 50 anos atrás... Mandou o Farahat passear de vez. Este deixou-lhe o apartamento de Guizah e comprou um em Zamalek. Fiz-lhe notar que ele estava bem melhor em Zamalek que ela em Guizah... Ele sorriu e piscou-me um olho.

Farahat deixou-nos no parque por baixo do viaduto, em frente ao Museu. Mas ainda era cedo, e a temperatura estava ainda razoável, apenas a 35 graus. Decidimos passear pelo Khan primeiro. Sempre a abarrotar de gente, e a mesquita Khalili tinha cuspido cá para fora mais uns milhares, mesmo à entrada do bazar. Mesmo assim, reconheci uma cara na multidão. Um rapazola, de dez ou onze anos, que tinha conhecido quatro anos antes, quando arranhava portunhol suficientemente bem para me impingir uma tonelada de colares baratos. Reconheceu-me a custo. Demasiados turistas. Perguntei-lhe pelo pai, ajudando-o a lembrar-se de mim, o que aconteceu com um brilhar de olhos. Estava tudo bem, apontava para a porta da loja do pai, ali três portas mais abaixo na rua, à direita. E a escola? "Hoje não, é Sexta". Pois. É Sexta para a escola mas para ganhar uns cobres na rua, está tudo bem. Riu-se e chamou o pai. Reconheceu-nos pela dificuldade que havia quatro anos tínhamos tido em escolher uma escrava em prata.

Do outro lado da rua, mais abaixo, uma cena capta a atenção das nossas novas amigas, que, qual japonesas, desatam a tirar fotos. Uma senhora, à qual já nos tínhamos habituado, estava estendida num tapete. Dormia profundamente. À sua frente, cuidadosamente dispostos em pilhas, centenas de maços de tabaco. As pessoas que apinhavam a rua principal do Khan passavam alheadas, mas ninguém pisava o tapete. Um jovem árabe baixa-se. As câmaras desatam num ritmo frenético, por entre a multidão. O rapaz tira um maço de tabaco de uma pilha. As câmaras quase derretem, testemunhando o crime iminente. Com o mesmo indicador esticado, o rapaz premiu o ombro da senhora gentilmente. Um olho aberto, um sorriso, e uma voz rouca, mantendo a imobilidade: "Cinco!" "Três" responde o rapaz. "Quatro" remata a senhora. O rapaz deixa quatro notas de libra em cima do tapete e vai-se embora, deixando a senhora a dormir tranquilamente de novo. As notas ainda em cima do tapete, que ninguém pisa. E os dedos atónitos deixam de carregar nos botões das câmaras. Khan Al Khalili, Cairo, Egipto. É assim.

10 comentários:

  1. Cirrus, esta descrição está fantástica. Consigo visualizar perfeitamente o cenário, imaginar as cores, os cheiros e o barulho.

    Tu vibras, quando falas destas paragens, e isso nota-se na escrita...

    Só uma pergunta. Isto também era para dizeres que afinal o Cairo até é mais seguro que o Porto?! Sorry! Mas tinha que perguntar... ;)

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  2. Pronúncia, são cidades completamente diferentes, de tipos diferentes e de mundos diferentes. É óbvio que há vantagens numa e noutra. A nível de segurança, o Cairo é muitíssimo mais seguro que qualquer cidade portuguesa. E lembra-te, são 22 milhões de pessoas.

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  3. Cirrus, só perguntei para pegar contigo!

    Claro que são cidades completamente diferentes... 22milhões é muita gente!!!

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  4. Mas sabes, as cidades árabes, regra geral (não incluindo Marrocos, que é um país estranho), são muito amigáveis. Podes caminhar à noite nas ruas do Cairo ou Alexandria, Tripoli ou Tunes, sem problemas, sem qualquer sobressalto. E podes entrar num café cheio de homens, beber o teu café turco e ser bem tratada.
    Não estou a descrever o paraíso, isso não existe. Por exemplo, no Cairo, a pequena corrupção é notória. As gorjetas andam sempre à frente, incluindo com a Polícia. Mas é mais maneira de ser que propriamente maldade. São mesmo assim. Os árabes são extremamente alegres nos piropos às mulheres estrangeiras, mas raramente se dirigem directamente à mulher. Preferem atirar o piropo ao homem que a acompanha. Já as mulheres a atirar piropos e olhares são expressivas e completamente insinuantes, chegando a ser incómodas. Se apanham a nossa mulher sozinha, estamos feitos, há conversa para uma hora e só param quando sabem se temos sinais de nascença nas nádegas!!

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  5. Boa "estória". A única coisa que terei que chamar a atenção é o artefacto exibido orgulhosamente na viatura do egípcio - deveria ter outro emblema e ser mais vermelho...

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  6. O texto está muito bom. E eu que nunca fui para essas paragens e que não me sentia tentado até agora. Deu-me assim uma vontade de conhecer o Egipto.
    Fizeste um texto espectacular,cores vida, estórias, certezas e incertezas. E voltaste a um sitio que presumo já tinhas sido feliz. Normalmente não dá resultado, mas não foi este o caso.

    Abraço

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  7. Dylan

    Não é estória, é a realidade, vi mesmo isto acontecer. Da primeira vez que entrei no Khan, também entrei desconfiado - ruas estreitas, muita gente, apertos - depois, apercebi-me que é um dos sítios em que me senti melhor na minha vida. Quando vi a senhora deitada pela primeira vez, também eu me pus à espera do roubo. Mas aconteceu sempre o mesmo.
    Curiosamente, umas horas depois, comprei-lhe tabaco, mas não foi preciso acordá-la.

    O cachecol de Portugal, na altura, era muitíssimo valorizado por todo o Médio Oriente. Viam-se muita camisolas da selecção com os nomes do Figo e do Rui Costa, principalmente. Mas também do Nuno Gomes, Fernando Couto... Foi por alturas do Euro2004, salvo erro.

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  8. Fortifeio,

    De certeza voltarei lá. Este ano, provavelmente em Maio, talvez tire uns dias para conhecer Alexandria, que, confesso, não conheço. Mas noutra altura qualquer, quando me apetecer, vou ao Cairo e a Luxor, acariciar as minhas pedras de estimação e constatar o progresso lento do Egipto em direcção ao futuro. Em algumas coisas estão bem à frente de nós, como por exemplo no turismo. Sim, já lá fui muito feliz e sou sempre que aterro em Luxor ou no Cairo.

    Se nunca te deu vontade de visitar, aproveita o meu incentivo. São férias em que pouco mais gastas que a viagem, uma vez que o custo de vida no Egipto é muitíssimo baixo para nós. Mas se fores, opta sempre pelo cruzeiro no Nilo. É a única forma cómoda de conhecer grande parte do país. E vai sempre em 5 estrelas! Os hotéis de 5 são mais caros 100 euros por semana, mas fazem muita diferença para os de 4. Nos barcos, desde que navegue, as acomodações são sempre razoáveis.

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  9. A foto remete-nos para filmes míticos ou para Jon and vangelis "The FRiends of Mr cairo"

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  10. Tem um ambiente fantástico e induz ao regresso ao Egipto... Talvez daqui a um mês e meio...

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