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Ilustração Marco Joel Santos |
Uma noite, como qualquer outra. Fria, longa, aclarada pela refulgente lua de Fevereiro, lá em cima, qual moeda de prata aos pés de Judas, que brilha, que resplandece para a todos lembrar a derradeira traição. A noite, fria e clara, longa de Inverno, com uma luz macabra, mortiça, vinda das veredas que circundam a aldeia, cobertas de alva neve.
As árvores sem folhas ganham novas protuberâncias, pingentes de cristal, que mais ainda reflectem e fazem sentir a presença da lua, prenhe de vinte e oito dias. Esta não é terra cristã. As velhas vão à missa, bem cedo amanhã, proclamar uma Fé em que não acreditam. Porque esta terra não é cristã. Esta terra é da noite, desta e das imemoriais noites da história remota, que esquecida seria se a terra fosse cristã. Mas esta terra não é cristã.
Esta lua pressagia a desgraça, enquanto se vai pondo, quase tocando os cumes dos montes. E vai-se tornando vermelha, cada vez mais vermelha, até nos parecer esvair-se em sangue vivo e borbulhante, que cai sobre a terra e a contamina. É nestas noites, dizem as velhas que vão à missa amanhã bem cedinho, que os demónios descem à terra para a assolar, é nestas noites que o gáudio dos deuses substitui a quietude da montanha. É nestas noites, em que as deusas se ocupam dos vinte e oito dias de gestação de sua mãe, que os deuses descem à terra enquanto o seu pai não acorda e não desponta o seu esplendor pelos céus.
Sós, os deuses estão livres para demonstrar o seu poder. Numa noite como aquela, fria, longa de Inverno. Os seus passos ecoam pela neve, ao redor da aldeia. As janelas estão fechadas, as trancas estão postas a todas as portas, o povo jaz nos seus catres, incapaz de dormir, adivinhando a presença dos devastadores filhos do sol. Os lobos aproveitam a quietude geral para assaltar as ruas, espalhando a matilha pelas ruelas estreitas. Os deuses revolteiam agora em redor da igreja, símbolo da Fé que pretendeu substituí-los na memória dos homens. Mas os homens não esquecem. Não podem esquecer. Bastar olhar para cima para ver a mãe prenhe. Os seus filhos andam à solta na noite de fim de ciclo.
O lobo parou. Perscrutou o limite da rua. Elevou o focinho negro e farejou. E farejou. E viu. A figura subia a rua ao seu encontro, com passos lentos e seguros, pesados de confiança. O lobo estava quieto. O lobo não desviou os olhos daquela figura, ainda encoberta pelas sombras do casario alto. Pelas frestas de luar entre telhados, o lobo vislumbrou a figura, e apercebeu-se da sua hedionda compleição. Viu o vulto agigantar-se na rua, ao seu encontro, cada vez mais perto. O lobo sabia que era tarde demais para fugir. O fascínio dominava o medo. O vulto ia recolhendo, nesta e naquela porta, as ofertas que os aldeãos semeavam pelas ruas, tentando aplacar a sua ira. Era pelas ofertas que o lobo ali estava. Tinha-as farejado. Mas agora não, não tinha tempo para desviar o olhar do deus que subia a rua, recolhendo o sacrifício humano.
O deus vestia vermelho vivo, os seus gestos eram elegantes e lentos, majestosos como quem sabe ser aquela a sua noite, como quem sabe que o seu poder até pelos lobos é conhecido. E o lobo, parado, observava os movimentos, tentava estabelecer contacto com os olhos do deus. Quando lhe viu a face, deitou-se em sinal de medo e de respeito. Pois que a face do deus era de vermelho vivo, e seus olhos tão vivos que o lobo temeu o seu olhar. E o sangue que lhe escorria lânguido pela cara.
O deus parou em frente ao lobo. Olhou-o demoradamente. Observou aquela criatura, das mais temidas da terra, a prestar-lhe o seu tributo. Atirou-lhe uma oferenda, afagou-lhe o focinho, sentindo-lhe os caninos com um polegar gélido, e afastou-se.
O lobo esperou pelos primeiros raios de sol para abocanhar a oferenda e rumar aos montes onde a alcateia se reuniria e voltaria a reinar nos próximos vinte e sete dias e noites. Ainda conseguiu aterrorizar as velhas que iam para a missa, bem cedinho.
Porque esta terra não é cristã, esta terra é dos mitos que a povoam. Quase lhes sentimos a presença, quase vislumbramos as suas faces vermelhas e os seus movimentos lânguidos. Porque esta terra não é cristã. É terra de Deuses e Lobos.
que bonito...
ResponderEliminaronde raio estás afinal para estar 1 grau? já vi que a terra tem umas lendas interessantes (assumo eu)
Anne, obrigado. Tenho de estar fora para escrever estas coisas... Estou perto da terra desta lenda, vê lá.
ResponderEliminarDizem que ali no Planalto estão 3 negativos, para aqui estar 1...
Meu amigo, deiza-me dizer-te que acabei de ler a tua melhor obra. Nao so deste blog. Fizeste o melhor post que ja vi na blogosfera. Nao tenho mais nada a acrescentar.
ResponderEliminarBoa noite para ti
Francisco, obrigado. Apesar de não estar a contar com elogios, deixaste-me quase de lágrima ao canto do olho.
ResponderEliminarEstou em dívida para contigo. Rosa é um nome que me diz demasiado, porém.
Lagrima ao canto do olho...eh eh eh tens ca uma labia :-)
ResponderEliminarOlha deixa-te mas e de mariquices e ve la se te sai algo assim para o desafio que tenho la no blog, va!
Vou nanar que se faz tarde.
Causaste-me arrepios!
ResponderEliminarAplaudo-te com vigor! E mais não digo... fiquei como o lobo!
Saevium
Venus,obrigado. Espero que os arrepios não sejam de frio...
ResponderEliminar;)
1º não me afectou por aí além... ;)
ResponderEliminarVenus é uma deusa forte e resistente a temperaturas hostis... contudo, vulnerável a descrições como esta...
Parabéns!
Basium
Bom dia!
ResponderEliminarTao? E assim? Faz-se "ouvidos de mercador"?
Ja so tens 10 dias, meu menino :-)
Ahhh e ignorar o convite nao serve para ir a concurso eh eh eh olha a ver se tenho que mandar isso por carta registada.
Abraco
e ser menos evasivo sim? :)
ResponderEliminarok, ok, não precisas de dizer onde estás... :)
Olha, quando puderes passa pelo Vale dos Sentidos
ResponderEliminarVenus, Vénus é muitas vezes referida no panteão primordial como a deusa mãe, associada a Astarte, Cíbele e Ísis. Mas nos cultos antigos, a Lua toma muitas vezes esse papel.
ResponderEliminarFrancisco, está descansado. Deixa-me só pôr as coisas em dia.
ResponderEliminarAnne, como sabes, a terra dos Caretos é Podence. E daí a Bragança é um pulinho.
ResponderEliminarspeechless... :)
ResponderEliminarPronúncia, o quê?
ResponderEliminarCirrus, silenciosa...
ResponderEliminarPois, está bem, já me tinha esquecido!!
ResponderEliminarCirrus: ainda não tinha lido... honestamente!Adorei; é um registo diferente do seu habitual, mas é uma lenda lindíssima!
ResponderEliminarTemos , por isso, uma visão muito paralela, da VIDA da lua(elemento feminino) e do SOL (elemento masculino).
Se bem se lembra, porque o Cirrus até os comentou, já publiquei poemas com esta temática, porque o elemento Lua me fascina. Foi deste modo que sempre ensinei os meus alunos a interpretarem a presença do satélite da Terra nos poemas ,de qualquer autor.
Gosto da nova apresentação do seu espaço!
Mas tenho andado tão em baixo que não tenho tido vontade de pegar no computador, como fazia ...
Obrigada por me ter permitido ver e ler esta coisa linda!
BEIJO AMIGO DE
Mª ELISA
Maria, agradeço as suas palavras amáveis.
ResponderEliminarO facto é que a religião primordial (se é que podemos falar de religião), sempre atribuiu o factor feminino a duas divindades: a Lua e a Terra-Mãe. Vemos estas deusas fundirem-se em diversos panteões, como o sumério (Astarte), palestiniano (Cíbele), egípcio (Ísis) e mesmo lusitano/celta (Atégina). Esta última tem a sua imagem espalhada por toda a Península ibérica, com os diversos santuários "marianos".
no imaginário moderno, houve pessoas que elevaram a Lua a referência de inspiração, e sabe bem de quem falo...
Espero que não seja nada de grave!
Cirrus:agradeço todas essas valiosíssimas informações; gosto de o ler, porque é uma pessoa muito culta. Não é "graxa", acredite.
ResponderEliminarQuanto ao resto de que me fala, SEMPRE associei a LUA à figura feminina e à TERRA-MÃE...
ABRAÇO AMIGO
LUSIBERO
Abraço, Maria.
ResponderEliminarObrigado pela amizade.
Assim , a festa dos rapazes ainda continua preservada em Trás os Montes ( se me refiro à foto ) ?
ResponderEliminarSe sim , antropologicamente ( falando ) , é uma boa novidade.
Uma boa que tradições ancestrais persistam.
Nuno
Nuno, sim, é a mais antiga ou das mais antigas e bonitas festas portuguesas, ou melhor, lusitanas, pois antecede em muito a nossa fundação. As raízes são demasiado antigas para se vislumbrarem. Mas trata-se de uma personificação do panteão celta-lusitano, pensa-se.
ResponderEliminarUma jóia que poucos portugueses conhecem. Os caretos de Podence ou de Lazarim.
Lindíssimo! Tu sabes como ...
ResponderEliminarAh sim?? Sei o quê?
EliminarSabes como escrever coisas fantásticas! :)
EliminarAh, isso...! Sei sim. Nos melhores pesadelos.
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