Eram umas seis horas da tarde. Saímos do autocarro sabendo aquilo que íamos enfrentar. De novo. As sandálias grossas que trazia forneciam protecção apenas por alguns segundos. Os meus pés, outrora tão resistentes e calejados, eram agora vítimas fáceis. Às seis da tarde, a avenida da estação estava frenética. Começava um novo dia, que havia de durar nas ruas de Assuão até às três ou quatro da manhã. Horas mais frescas. Mas havia preparativos a fazer, havia comboios a partir. Apesar dos 52ºC daquele fim de tarde de Setembro. Era impensável para um habitante daquela cidade trabalhar durante o dia na rua. Aliás, uns dias antes, do convés do barco que subia placidamente o mais longo e belo rio do mundo, vislumbrei, em Esna, trabalhadores que tentavam montar uma gigantesca eclusa na barragem. Vociferei contra aquela violência, a de obrigarem alguém a trabalhar às três da tarde com 50ºC. Depois vi o letreiro do empreiteiro e calei-me. Podia ler-se "Soares da Costa"... Outras histórias.
Saí, pois, do autocarro, para o asfalto impiedoso. Rapidamente me dirigi para o interior fresco da Estação de Assuão, onde estavam uns agradáveis 41ºC, a julgar pelos mostradores dos termómetros. Estranho este orgulho misturado com resignação que têm estes habitantes na sua cidade. Orgulho no facto de ser a cidade mais quente do planeta. Não só por ser quente, mas por ser cidade. Naquela altura, Assuão era uma das cinco cidades egípcias. Luxor, que hoje também o é, era então uma pequena vila de trezentos mil habitantes. Olhei o comboio que nos levaria ao Cairo, numa viagem de doze horas, ao longo do Nilo, durante toda a noite que já caía. Não tinha grande aspecto. Era um comboio imenso, com um número de carruagens que me parecia impossível ser puxado por uma locomotiva a diesel. Disseram-me que a viagem seria feita a uma velocidade constante de 100 kms/hora. Mas, mesmo sendo um comboio de longo curso, pararia em todas as estações do seu percurso, o que me assustou. Mas eram apenas seis ou sete, afinal. Conduziram-nos amavelmente à nossa cabine. Não muito espaçosa, mas com o essencial, incluindo um polibã para os duches e um beliche com duas confortáveis camas dotadas de protecção. Assim que nos levaram as malas, o comboio pôs-se em andamento.
Depois de servido o jantar na cabine, decidimos ir ao bar. Este era uma carruagem ampla, com mesas de café pregadas ao chão, mesas de café iguais às que podem ver-se em qualquer esplanada egípcia. Uma espécie de reminiscência da Belle Époque, mas com um toque british, tal qual os "cabs" puxados a cavalo nas ruas de Luxor, mas com o jeito árabe de arrumar as coisas. Sentados a uma mesa, assistimos durante duas ou três horas ao espectáculo que proporcionava o barman, que serviu todas as bebidas aos clientes equilibrando-as miraculosamente no topo da sua cabeça, ao mesmo tempo de girava furiosamente ao som da música árabe que enchia o espaço. Isto apesar de o comboio se sacudir consideravelmente.
Pela janela, demos pela chegada a Luxor, já noite posta. O Egipto, durante o dia, é um país bonito. À noite, é fascinante. Porque é à noite que a vida se vive no Egipto. As ruas cheias de gente, ladeadas por tendas e lojas de ocasião, os minaretes das mesquitas iluminados para o último dia de Ramadão, com luzes de cores branca e verde, erguendo-se acima dos frondosos bosques de árvores de fruto que se estendiam por todo o vale do rio, numa largura máxima de dois kms. Por cima, um céu absolutamente fantástico, sem nuvens, brilhante. As estrelas parecem faróis, pois à noite a constante neblina que aprendi ser pó do deserto assenta perante a ausência de vento. Há 60 anos que não chove em Luxor. O céu é sempre limpo e o rio é sempre fresco e fonte de vida. Cansados, fomos dormir. E nunca pensei que dormir num comboio descendo o Nilo fosse tão retemperador e tranquilo. Ou então o cansaço era mesmo muito.
O pequeno almoço foi de novo na cabine. O nosso mestre de carruagem era um cinquentão de aspecto bonacheirão, mas prestável, discreto e rápido. Apresentava, lembro-me, o mesmo sorriso que qualquer egípcio apresenta, mas com mais dentes. Devia ganhar o suficiente para os arranjar. Uma gorjeta no Egipto não é encarada como um favor, mas antes como parte do pagamento. Dar gorjetas no Egipto é mais fácil para quem tem libras egípcias. O Egipto não tem moedas nem as troca. E uma gorjeta de 10 libras (1,5 €) é muito boa. E melhor para quem a dá que dar uma nota de conto ou de 5 euros. Enrolei dois cigarros e dei-os ao simpático camareiro, que acendeu um imediatamente, assim que me enfiou um Cleópatra nos queixos e mo acendeu também. Depois, fez o mesmo à minha companheira, tendo o cuidado de não a tocar fosse de que maneira fosse. Afinal, era um funcionário público e responsável pela segurança na sua carruagem , como fez questão de salientar. "Is good, too, no? But yours are special, I will keep the other for the evening! Now we can smoke at daylight, Ramadan is over!". O sotaque tipicamente egípcio, num inglês correcto mas duro como uma rocha.
Desembarcamos as malas. Tínhamos chegado à imensa plataforma da Estação de Gizah, nos arredores do Cairo, e a mais perto do Movenpick Media City, onde ficaríamos hospedados. E eram apenas seis da manhã. Aquelas primeiras horas de luz eram de novo horas de azáfama intensa. No exterior da Estação, víamos que algo havia mudado. As pessoas já não andavam devagar e com contenção de movimentos. Ali tudo se movia. Ali todos faziam alguma coisa. Excepto os Polícias Turísticos, com a sua característica farda branca, que se limitavam a sentar-se no seu posto de trabalho, quer fosse perto das bilheteiras ou a guardar uma caixa MB (quase todas têm um polícia de serviço), bebendo chá de menta em doses industriais e empilhando beatas entre as botas. Algumas vezes amarelas, outras brancas, mais finas. O haxixe não é incomum no Egipto. O Cairo, lar de 22 milhões de pessoas, acordava para um novo dia.
E, entanto, mesmo depois de sair da Estação e me deparar com tudo aquilo, ainda tive tempo de alertar quem estava ao meu lado: "Já viste que temos companhia?". Um arrepio quase gelado percorreu-nos aos dois. À nossa frente, a uma distância que não pareciam ser mais que umas centenas de metros, encontravam-se os edifícios mais majestosos que já vi na minha vida. E assim seguimos esmagados para dentro de novo autocarro. Com ar condicionado.
Foto Google: plataforma da Estação de Gizé
Cirrus isto é MUITO bom, bolas que quando cheguei ao fim apetecia-me reclamar por não haver mais, cordinha aos dedos, vá :)
ResponderEliminarRecordar uma viagem é quase como fazê-la outra vez...
ResponderEliminarGosto de ler crónicas de viagens, quase que viajo também sem sair do sofá! :)
Tens jeito... podes escrever mais algumas.
(52ºC?! A mim dava-me um abafo... morria de certeza) :)
Menina Ção, obrigado. Haverá mais, com certeza. Provavelmente recomeçarei onde fiquei agora. Esta visita à necrópole foi uma aventura que me custou digerir...
ResponderEliminarPronúncia, obrigado igualmente. As viagens, no fundo, são eternas, pois aquilo que ficaste a saber e aquilo que viste não esqueces. E recordar é mesmo viver, pois a nossa vida não passa de recordação. Tudo o resto é efémero demais.
ResponderEliminar52ºC, mas com 0% de humidade. Não transpiras e aguenta-se muito bem. À sombra. Ao sol a temperatura pode chegar facilmente aos 56ºC e apanhas uma insolação em poucos minutos.
Cirrus: já há bocado que tinha lido este lindo texto: Não fui nunca ao EGIPTO, mas ao ler as suas palavras até dá a sensação que lá estamos, tal é o realismo da descrição...
ResponderEliminarMas ,vim por outro motivo: é bom sentir que alguém está do "outro lado".Então, peguei uma cadeira , os meus cigarritos "marlboro Lights 100' e vim até aqui, ao pé de si... Se não quiser que aqui fume, também não faz mal... fico a adivinhar o que está a pensar...
o que é perigoso!... pois pode sair-me tudo ao contrário....
Quer um cafézinho NESPRESSO? Eu posso levar...
ABRAÇO amigo de Mª ELISA
Maria, ainda bem que gostou. Penso que poderia ter saído bem melhor o texto...
ResponderEliminarSente-se aí a fumar um cigarrinho que eu faço-lhe companhia, só tem de esperar que eu enrole. Porque eu enrolo. Quanto ao café, e se for um Delta ali da máquina mais-que-normal-de-trazer-por casa-que-eu-recuso-comprar-maquinetas-de-cápsulas-cujo-resultado-até-arrepia?
PODE ser mesmo desse, amigo...
ResponderEliminar^Mª ELISA
Cirrus, explica lá o que tens contra as maquinetas-de-cápsulas-cujo-resultado-até-arrepia... são bem práticas e o café é bem bom! :)
ResponderEliminarPronúncia, para já, tenho o preço que é exorbitante. Além disso, o café não é nada, mas nadinha de especial. São máquinas boas para quem não sabe tirar nem saborear café e até o bebe com açúcar...
ResponderEliminarA mais básica não é assim tão cara, já os modelos todos estilosos esses sim, têm preços exorbitantes...
ResponderEliminarTambém era uma maquineta que eu há partida nunca compraria, mas ofereceram-me uma e confesso que fiquei rendida... e há vários tipos de café, alguns concordo contigo não são grande espada, mas outros são bem bons (e eu tomo-o sem açúcar).
E são daqueles que compras em qualquer lado ou tens de ir à loja xpto?
ResponderEliminarTens que ir à loja xpto.
ResponderEliminarEra uma das coisas que eu tinha contra a maquineta, e como na altura a única loja até era em Lisboa, fazia as minhas encomendas de café pela net... um descanso. Entregavam no dia marcado e à hora marcada e pagava por multibanco!
Agora compro o café no Porto, ou posso continuar a encomendá-lo via net... e um destes dias vou poder comprá-lo cá em Braga, ou continuar a encomendá-lo pela net... o que é bem mais prático.
Como te digo... tinha montes de coisas contra a maquineta, mas acabei por me render e ser fã incondicional da mesma. E o engraçado é que já converti algumas almas que por gostarem do café cá de casa acabaram a comprar uma igual.
A mim não me convences. Ninguém me tira o prazer de moer café e inalar aquele cheiro inebriante. Também contam, os pequenos prazeres da vida... Além disso, não quero que me caia um piano em cima, mesmo sendo o Malkovich a mandar-mo à cabeça...
ResponderEliminar;)
Cirrus,
ResponderEliminaraí está uma viagem interessante. Sobretudo Cairo, que gostava de conhecer mais do que as próprias pirâmides. Adoro cidades com história.
Garcia, para dizer a verdade, ia precisamente com essa ideia em mente. Mas depois de as vislumbrar ( e de longe, por esta altura), esqueci o resto da viagem. Exercem um tal poder sobre a nossa mente que é impossível escapar-lhes. Mas isso é já um novo capítulo...
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