Fábrica de Curtumes |
Fez, 21 de Setembro de 2010
Indescritível a visita à medina de Fez. Já tinha estado em medinas, como em Sousse ou Tunis, para não falar no Khalili. Mas esta é fabulosa. Claro que Fez tem um palácio imperial, com as suas sete portas de bronze maciço. Claro que tem uma muralha imensa, claro que tem um bairro judeu onde os velhos hebreus ainda hoje recitam o Talmude nas varandas de madeira de cedro.
Mas é dentro da muralha, na medina, que Fez encerra o seu imenso encanto. A cidade tem um milhão de habitantes, sendo que um terço destes vive no interior das muralhas da cidade. Podia dizer que estas pessoas moram na medina, mas não é disso que se trata. Elas não moram ali apenas, elas vivem inteiramente as suas vidas na medina. A maior parte nunca saiu das mesmas. Lá dentro está tudo o que necessitam, desde escolas até à mais antiga universidade do mundo.
No nosso grupo, existe uma senhora muito especial. É muda, resultado de um AVC aos trinta anos. Foi o único vestígio que a doença deixou. É muda, mas tem uma disposição magnifica. O grupo dividiu-se em dois, uma vez que portugueses e italianos tinham guias locais diferentes. Além do mais, para uma incursão na medina de Fez, é pouco prudente um grupo ter mais de 20 pessoas. Esta senhora ficou para trás, à entrada da medina. Ficou a comprar algo à entrada do bairro judeu. O grupo continuou a deslocar-se para a medina, no meio da confusão. Apercebi-me de que o marido da senhora ia lá à frente e voltei atrás. Não me pareceu que uma senhora pequena e ainda por cima muda tivesse alguma vez a hipótese de recolar ao grupo. Aguardei que acabasse a compra e recuei os últimos dez metros. Quando lá cheguei, a senhora olhava para todos os lados, com olhar assustado. Dei-lhe o meu braço e ofereci ajuda. De imediato aceitou e através dos seus trejeitos e sons, deu para ver que estava preocupada. Eu também já não via o grupo. Mas a minha experiência destes sítios ditou que seguisse o maior fluxo de pessoas e procurasse a maior porta da medina nas imediações. Em breve encontramos o grupo. A maior parte das pessoas não se apercebeu sequer da situação. Ganhei uma fã para o resto da viagem.
Terraços de Fez |
As ruas da medina têm, nos seus pontos mais largos, dois metros. Algumas não comportam a passagem de uma pessoa pela outra. No interior da medina, apenas é possível o tráfego humano e animal. Mulas e burros transportam nos lombos a sua carga incessantemente. Muitos andam sós, e conhecem os caminhos que têm de percorrer. Lojas de tudo o que se possa imaginar amontoam-se, porta sim, porta sim, ao longo das ruas estreitas, em espaços que por vezes não ultrapassam dois ou três metros quadrados. Os cheiros misturam-se no ar, cada bairro tem uma especialidade. O bairro da comida é extraordinário, pelos cheiros e pela aparência cuidada dos produtos, nomeadamente os famosos doces árabes. O bairro das especiarias é igualmente especial, pelos cheiros e pelos montes cónicos de diversas misturas de especiarias e ervas aromáticas.
Mas tudo muda quando chegamos ao bairro dos tintureiros, onde os processos são ainda os primitivos, para tingir as roupas. Ali logo ao lado, um dos ex-libris da cidade, o bairro dos curtumes. Entramos por uma porta pequena, subimos e descemos escadas que pareciam nunca acabar, por entre corredores estreitos onde já se fazia adivinhar um aroma especial. À entrada de uma sala, deram-nos ramos de hortelã e menta, que encostamos ao nariz de imediato. Todos os produtos em pele que possamos imaginar encontravam-se expostos, pousados em prateleiras ou pendurados do tecto decorado. Depois de várias salas, uma varanda onde o cheiro se tornou insuportável. Lá em baixo, vinte metros abaixo, estavam os tanques de curtição de peles. Uma visão familiar mas surpreendente, pelo cheiro a urina de vaca e bosta de pombo, pelo trabalho de escravo daqueles homens cobertos de cores, pela dimensão imensa do sítio.
Os edifícios ultrapassam facilmente os 20 metros de altura, e não há prédios propriamente ditos, antes aglomerados de casas, umas em cima das outras. Com o exterior tosco, muitas das vezes suportadas por estacas de madeira, nada deixa antever o interior destas casas, pois não têm janelas exteriores. As janelas estão viradas para o pátio interior, onde as decorações e jardins são muitas vezes pouco menos que sumptuosos. O restaurante onde almoçamos ou uma das lojas de tapetes seriam dignos de pertencer ao Alhambra, embora, para lá se chegar, muitas vezes tenhamos de andar de lado.
Madrassa na medina de Fez |
A medina é fresca, tem imensa sombra. No pico do sol, muitas ruas são iluminadas artificialmente, pois a luz natural não consegue chegar ao solo. Admirei, surpreendentemente, o estado das ruas estreitas, bastante mais limpas que esperava. Os cheiros são intensos, a madeira, a especiarias, a perfumes exóticos, a mulas e burros, a peles acabadas de arrancar que seguem para a fábrica de curtumes, que opera como no séc. XIV.
Fez é uma imensa colmeia, a sua medina é atravessada por miríades de veias pulsando de gente. A universidade que se encontra no seu interior é a mais antiga do mundo, e apenas pudemos admirar as suas portas abertas, que ostentavam o sinal de passagem proibida a não islâmicos. Fez é sofrida, um luxo para os sentidos, um deleite para quem aprecia o Homem no seu melhor e pior.
Muitas lojas são de judeus ortodoxos, que conversam, tomam chá e jogam xadrez com os seus vizinhos muçulmanos. Fez não confirmou o que eu mais temia. Vêem-se muitos véus, mas muito menos que em Casablanca ou Rabat. O que é, obviamente, mau. Pois se é onde o progresso económico é maior que a regressão humana se faz sentir com mais força...
Adorava ver mais fotos, a narrativa é excelente, prende... mais fotos? Sim??? :D
ResponderEliminarohhhh que tu és tão boa pessoa... sim senhor, gostei de ler... mt bom texto, a viagem deve ter sido maravilhosa...
ResponderEliminarmas tb quero mais fotos...
não tens das pessoas? do mercado? =D
Gostei da descrição... transporta-nos aos locais. Tanto, tanto, que dispensava a visita aos curtumes... mesmo com a hortelã e a menta, tenho quase a certeza que o meu nariz não aguentava.
ResponderEliminarMenina Ção, prende?! Bem, antes de começar aqui a cogitar cenários... Obrigado.
ResponderEliminar;)
Sim, há mais fotos. Mas devo relembrar que este blog não é de fotos. E eu nunca acreditei que uma imagem valha mil palavras. Mas sim, há mais duas ou três...
Anne, não é questão de ser ou não boa pessoa. Mas penso que para uma pessoa normal, perder-se numa medina daquela dimensão é muito complicado. Bem os via a pagarem fortunas a moradores só para os guiarem à saída mais próxima, de mapazinho na mão. E não é que os mapas estejam errados, mas a medina não tem pontos de referência. Todas as portas são iguais, o interior é que é diferente.
ResponderEliminarAgora imagina uma senhora baixinha e muda... Além do mais, possivelmente seria eu a única pessoa naquele grupo com alguma experiência naquela situação. O que devemos fazer nesta situação é simples: movermo-nos o menos possível, apenas o necessário para estarmos junto a um ponto de referência perto do local onde nos perdemos. Alguém no grupo saberá mais ou menos onde nos perdeu e voltará ao local.
Pronúncia, visitar Fez e não ver a fábrica de curtumes... É o mesmo que ir a Roma e não ver o Coliseu ou ir a Lisboa e não ver a Catedral da Luz.
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