terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A DIÁSPORA

Ilustração Marco Joel Santos
Trabalho escrito para a disciplina de História do Judaísmo, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião



No século VIII, na Alta Idade Média ou Idade das Trevas, dois factores haviam de moldar os espaços pelos quais a diáspora judaica se havia espalhado. Na Europa, o Império Romano havia-se cindido em dois, e por esta altura já o Império do Ocidente havia caído às mãos dos bárbaros, enquanto o Império Oriental se debatia em estertores que em breve dariam lugar a Bizâncio. Por outro lado, no Próximo Oriente e Norte de África, uma nova fé havia estendido o seu domínio pelas armas, desde a Pérsia até Cartago e, em breve, Marrocos. Assim sendo, o período da Idade Média foi passado pelo povo judeu, de uma forma geral, sob domínio bárbaro franco-germânico a norte e muçulmano a sul.

Apesar de o domínio secular e religioso das regiões onde habitavam os judeus não lhes pertencer, nunca as comunidades judaicas enjeitaram o seu próprio governo, sujeito, muito embora, ao poder vigente. Neste período, o governo destas comunidades espalhadas desde a Babilónia até à Península Ibérica foi assegurado, em termos espirituais, religiosos e éticos pelo chamado “governo dos Sábios”, também conhecido por Catedocracia. As academias, regra geral, exerciam esse poder, e uma dessas instâncias, o gaon de Babilónia, assumia particular importância para o mundo judaico. Paul Johnson, na sua História dos Judeus, assegura-nos: “Na Idade das Trevas, essa catedocracia babilónica era também um judiciário hereditário, a instância final de apelação para toda a diáspora. Falando estritamente, não lhe assistia qualquer poder físico. (…) Mas possuía o poder da excomunhão (…). Gozava também do poder do seu conhecimento”.

Como tal, o poder destes sábios, entre academias e indivíduos sábios, dos quais se vem a destacar Maimónides, cuja caracterização é importante e mais adiante será aflorada, não se prendia com qualquer tipo de poder temporal ou secular mas antes e apenas pela autoridade do seu conhecimento religioso, ou seja, pelo seu conhecimento da Lei. E a Lei judaica não é mais que o conjunto de escritos bem conhecido: a Torá, a Bíblia e o Talmude, este último não tão escrito, mas mais revestido de tradição oral. As academias – gaon – de onde emanava esse poder eram os sucedâneos do Sinédrio, o órgão legislativo supremo nos tempos do Templo de Herodes, o Grande. Eram, pois, constituídas por homens sábios na Lei. Espalharam-se, tal como a diáspora, sendo de assinalar a presença de grandes academias em regiões muçulmanas, como a cidade santa de Kairouan, na actual Tunísia, ou Granada e Córdova, durante o califado Al-Andaluz, em Espanha.

Não será demais referir que este poder era tão forte quanto o poder secular sob o qual existia. Exemplo disso foi o Al-Andaluz, aquando da invasão almóada, que acabou por expulsar os judeus do califado, até aí perfeitamente integrados na sociedade andaluza, mas sempre com o estatuto de dhimmi, ou seja, de não-muçulmano, algo discriminatório. Foi desta onda de refugiados, que extravasou em diversas direcções – desde a Espanha cristã, França e mesmo Norte de África e Egipto – que saiu Maimónides. A sua família refugiou-se em Fustat, a cidade velha do Cairo, e bem cedo revelou a sua faceta de estudioso e sábio.

 O povo judeu, fixado por toda a bacia mediterrânica e pelo norte europeu, depressa desenvolveu capacidades que faziam falta aos territórios onde se fixavam. A estas capacidades não será alheio a forma de encarar o estudo e as letras. Johnson, por exemplo, diz-nos: “Em resumo, como o formulou um historiador, a família era importante e o êxito comercial era útil, mas a erudição era essencial”. A erudição a que Johnson se refere é mais do que conhecimento geral, é o conhecimento da Lei. Os judeus desta época acreditavam ter maior capacidade de erudição que os restantes, e, de certa forma, estavam correctos. Advinha principalmente do estudo da Lei, pois para um judeu a Lei continha todas as respostas às questões da vida. Como tal, a vantagem judaica face aos demais baseava-se na sua capacidade de estudo e erudição, mas traduzia-se essencialmente no plano burocrático (financeiro e económico) e científico (os mais proeminentes eruditos judeus, como Maimónides, eram, além de mercadores e prestamistas, médicos), o que lhes permitia escalar facilmente a hierarquia vigente e aproximarem-se dos detentores de poder secular, quer no caso dos territórios árabes, quer nos cristãos. A Lei, por exemplo, não permitia a usura entre judeus, mas permitia a usura de judeus sobre membros de outros credos.

No plano religioso, os judeus viveram em eterna dualidade. Por um lado, sábios havia, como o referido Maimónides, que defendia a racionalização da Lei, ou seja, conferia, através dos seus escritos e “governo”, uma base racional para uma Lei que não o parecia ser. Isto porque, principalmente no Talmude, a Lei se emaranhava em conceitos vagos que não permitiam que a razão prevalecesse na procura de respostas. Por outro lado, havia outros sábios, como Namânides, que defendiam um rigorismo legal baseado no estrito cumprimento da palavra da Lei.

Fosse como fosse, a função mais proeminente e pela qual mais eram conhecidos os judeus era o empréstimo de dinheiro a juro. Obviamente, este facto trazia-lhes inimizades consideráveis, e as perseguições iam-se sucedendo, quer na Europa quer nos territórios muçulmanos (como no caso de Al-Andaluz). No século XI, quando a Primeira Cruzada foi lançada, já o anti-semitismo estava instalado, muito por esta razão. E se a Cruzada foi terrível para todos os envolvidos directamente, não o foi menos para a diáspora judaica, que serviu como “corpo de treino” aos cruzados antes do embarque.

As coisas iriam piorar muito por acção de algumas figuras históricas como Eduardo de Inglaterra que, por cobiça dos bens dos judeus, permitiu não só que as maiores calúnias fossem sobre eles lançadas, como o libelo de sangue (assassínio ritual de crianças para expiar o pecado da morte de Cristo) ou o roubo de hóstias, que depois torturariam (Corpo de Cristo), como acabou por organizar enormes pogroms, acabando na expulsão definitiva de Inglaterra. Nos territórios árabes, as coisas corriam de forma mais pacífica, se bem que sempre que havia ondas fundamentalistas os judeus acabavam por pagar, com a vida ou com humilhações a nível social.

De uma forma ou de outra, as coisas nunca foram fáceis para os judeus nos territórios onde se fixaram. Mas sem dúvidas que o período mais negro para a diáspora judaica foram os séculos XIV e XV. Em Espanha, são criados os famosos “debates”, entre os eruditos cristãos e os judeus, que mais não eram que farsas organizadas para julgar a fé judaica em praça pública. Por outro lado, nunca esquecer que os próprios cristãos foram adquirindo as técnicas dos judeus, e chegaram ao ponto de dominarem perfeitamente a usura (por exemplo, os “bancos” Templários), fazendo dos judeus uma comunidade dispensável.

Por outro lado, o anti-semitismo primário começou a cavalgar as mentes cristãs de forma insistente, mais insistentemente que nos territórios muçulmanos. Em breve, por toda a Itália e França, se davam expulsões. Na Espanha, foi criada a Santa Inquisição, para aquilatar das qualidades dos marranos, conversos à força à fé cristã. A questão dos cristãos novos acabou por ser uma espada de dois gumes. Se, por um lado, os judeus escapavam à fogueira por professarem a sua fé, agora associada por dominicanos e franciscanos ao culto do diabo, por outro, tornavam-se alvo das maiores desconfianças e eram perseguidos novamente por suspeitas de professarem o judaísmo em segredo – o que, diga-se em abono da verdade, era certo na maior parte dos casos.

A história judaica na diáspora é pontuada pelo contraste. Se, em determinada altura, tinham liberdade de culto e lhe eram toleradas as suas tradições, muito porque estavam na posição de credores (e sabiam estar nessa posição), outras houve em que a cobiça pelos seus bens e créditos lhes selava o destino (curiosa a associação ao Templários, aniquilados pela mesma razão). E finalmente, a desumanização progressiva do judeu, dada principalmente na Alemanha, havia de trazer as funestas consequências que todos conhecemos. Aliás, a expulsão da Península Ibérica e da Alemanha terão sido as piores fases da diáspora judaica antes do século XX. Johnson afirma: “A ideia de que o judeu conhecia a verdade [acerca de Cristo], mas a rejeitava, preferindo trabalhar com as forças da escuridão – e, portanto, não podia ser humano no sentido em que os cristãos o eram – já estava bem estabelecida”.

Por outro lado, os muçulmanos não parecem ter desenvolvido um sentimento análogo ao dos cristãos relativamente aos judeus. Religiosamente, os judeus eram uma religião do Livro e não aceitaram Maomé, mas também não lhe fizeram mal algum. Os cristãos apontavam-nos como os carrascos de Cristo.

 Bibliografia:

·         JOHNSON, Paul – História dos Judeus. RJ: Imago, 1995. 1ª Edição, ISBN 853-120-421-6

·         HOLTZ, Theo A História dos Judeus. São Paulo: Via Lettera, Janeiro de 2009. 1ªEdição, ISBN 978-85-7636-082-7

·         DELUMEAU, Jean – As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Presença, 1997. 2ª Edição, ISBN 972-23-2241-9

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O RETIDO

Depois de dar uma olhada na nova tabela de taxas de retenção na fonte em sede de IRS, e mais ou menos como a própria tabela de taxas de retenção na fonte, um punhado de frases me assaltaram à mão armada:


  1. Obrigado, portugueses que insistem em votar em merda!
  2. Ainda bem que posso contribuir para remendar as asneiras de outros compatriotas que insistem em votar em merda!
  3. A merda não tem culpa, quem a caga é que tem.
  4. Após tantos peidos, será que os cagões não sabiam que vinha merda?











Mas a que realmente me vai na mente é:

PORTUGUESES QUE VOTARAM EM MERDA, VÃO PARA A REAL PUTA QUE VOS CAGOU A TODOS! NEM PARIDOS MERECEM SER, SEUS CAGALHÕES DE MERDA!



E pronto, é mais ou menos isto. Mas isto passa, não deve passar de Maio ou Junho...

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O CAMINHO PARA O BURACO NEGRO


Estamos a chegar a um ponto de ruptura. Encostam-nos à parede cada vez mais com as costas a sentir cada rugosidade... Já não chegavam os pacotes orçamentais sucessivos, agora vem a lume o relatório do FMI, com recomendações que fazem lembrar os anos duros de Margareth Thatcher no Reino Unido , com a diferença que, aí, o Estado Social era de tal forma forte que no fim ainda havia um resquício dele. Neste país de brandos costumes, tudo é brando, até esse famoso Estado Social que tanto enche a boca dos nossos governantes como sendo o coveiro da economia. Assim sendo, nada restará, nem para os pobres que também o estão cada vez mais.
Mas os ataques não são apenas desse teor. Agora encarniçam-se contra os professores que, madraços, precisam de ser dispensados em grande número (50 000), deixando aos que ficam uma carga horária que os ensine a trabalhar como deve ser. Os médicos ganham em excesso. Os juízes são senhores de regalias em excesso e os militares e polícias não lhes ficam atrás. Não há funcionário público que mereça aquilo que ganha já que se propõem cortes de 3 a 7% nos vencimentos, para não referir os aposentados.
Já a banca é um mundo de bravos e intrépidos lutadores que não pode senão ser protegida e fonte de "investimento" a fundo perdido por parte do Estado.
A ideia de voltarmos aos mercados que tanto agita as hostes de ministros e secretários de estado passa por regressarmos a um jogo que nos transformou em carneiro para o sacrifício e nos levou ao buraco negro em que nos encontramos.


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Malena

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

AL-ANDALUZ



Trabalho escrito para a disciplina de História do Islamismo, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião


O Al-Andaluz é, sem dúvida, uma fonte primacial de cultura na península ibérica. Tal importância deve-se a inúmeros factores e às próprias características do califado. Algumas questões podem ser pertinentes, uma vez afloradas as respostas respectivas, para o entendimento sobre este período da história andaluza e ibérica.

Assim, há que perceber como o califado se constitui, ou seja, não propriamente o acto da invasão de 711, mas antes de onde vieram os homens que o perpetraram, e em que contexto histórico, tanto do lado europeu, como do lado árabe e norte-africano, isso aconteceu.

Por outro lado, a caracterização do califado é de suma importância, em todos os aspectos: social, cultural, económico e religioso. Provavelmente uma mescla de todos eles, pois cada um deles está intrinsecamente ligado aos outros.

Por fim, é importante perceber qual a herança do califado. O que nos deixou o califado, em todos estes aspectos? E pode parecer que não é verdade que todos eles tenham sido legados, mas quer a nível sociocultural, como económico, como religioso, a herança é vasta.

O expansionismo árabe em torno do Islão foi fulgurante, ainda que não sem dificuldades. Contudo, à data da morte de Maomé, no ano 632, os territórios circundantes de Meca e de Yathrib, mais tarde chamada de Medina, constituíam o califado original. No entanto, em apenas três anos, toda a península arábica estava sob domínio islâmico. Nos quinze anos seguintes, estendia-se já esse domínio por uma área geográfica imensa: desde a Pérsia até à actual Tunísia. Por volta do ano 700, já o Islão dominava toda a costa norte-africana, e estendia-se daí até locais tão longínquos como o Azerbaijão e o Afeganistão.

Em 711, e aproveitando as convulsões internas graves no reino visigótico, um berbere recém-convertido ao Islão, Jebel-al-Tariq (Gibraltar), atravessou o estreito que hoje tem o seu nome, em auxílio de uma das facções visigóticas beligerantes na guerra civil que assolava o reino godo ibérico. Não tardaram senão alguns meses até que Tariq derrotasse Rodrigo e precipitasse o desmembramento e queda do reino cristão, que se fragmentou em inúmeros territórios senhoriais que estavam incumbidos de resistir ao invasor. No entanto, muitos destes senhores viram na invasão uma oportunidade e pactuaram declaradamente com o invasor. Por essa razão, a invasão peninsular foi rápida e quase total, exceptuando-se a região asturiana.

Tal, no entanto, não queria dizer que o domínio muçulmano fosse total. Ao chegarem a acordo, mais do que pelas armas, com os senhores locais, o novo estado islâmico sujeitou-se a delegar poder nestes, o que, em certa medida, era quase uma declaração de independência, dada a desordem em que ainda se encontravam as fracas ou inexistentes instituições centrais de Al-Andaluz.

É certo que os primeiros emires de Al-Andaluz tenderam a centralizar o estado na sua capital Córdova. Mas alguns factores importantes impediam que tal acontecesse. Se, por um lado, a enorme diversidade populacional o dificultava, como diz Guillemain: “(…) coabitavam árabes, entre os quais se encontrava um forte elemento sírio atraído pelos Omíadas, berberes, mais inclinados à turbulência, cristãos — os Moçárabes — que tinham conservado os seus bispos, as suas igrejas e a sua liturgia, mas de que se destacavam numerosos renegados muitas vezes com postos elevados, escravos comprados nos mercados da Europa central ou capturados em incursões em território cristão, e também grandes colónias judaicas.”, também é certo que a família omíada que tomou o poder não era independente do califado com capital em Damasco, tanto em termos políticos como religiosos, o que, nesta altura do Islão, eram uma e a mesma coisa.

            Da afirmação anterior de Guillemain, resulta uma caracterização social perfeita de Al-Andaluz. Os cristãos mantinham o direito de culto, e eram, na sua maioria, elementos respeitados na sociedade. A aristocracia desenvolvia-se à volta dos árabes sírios omíadas e dos chefes berberes que haviam procedido à invasão. As colónias judaicas eram responsáveis por grande parte do comércio do novo estado que, apoiado numa agricultura que juntava as excelentes condições com novas técnicas muçulmanas e novos produtos introduzidos, e que assim prosperava, bem como pela particular posição geoestratégica de Al-Andaluz, tendia a crescer para níveis nunca vistos na península ibérica até então.

            Desde os tempos do emirado de Abderramão, primeiro emir, que o território foi dividido em unidades administrativas, as Kuras, à frente das quais era colocado uma espécie de governador, ou wali. Por outro lado, o acesso fácil ao ouro norte-africano instituiu o dinar de ouro como moeda padrão, que valia 10 dirham em prata. Foi nesta altura que aqueles que tinham assinado os pactos de capitulação se tentaram sublevar, mas depressa foram dominados pela criação de um exército regular central. A centralização do estado estava em marcha. Sinal evidente disso era a cobrança centralizada de impostos, conceito até aí esquivo aos cristãos, aliás, como bem refere Guillemain: “Neste grande Estado muçulmano que os textos árabes denominavam de Al-Andaluz e a que a divisão em governos, e o recebimento de impostos davam uma receita que os reinos da Europa cristã ignoravam, (…)”. Estes impostos eram pagos apenas por não muçulmanos, o que provavelmente terá levado à revolta moçárabe nos tempos de Abderramão II, que este dominou com mais ou menos dificuldade. Aliás, terá sido este emir que dotou o estado de uma estrutura central moderna, baseado no exemplo do califado abássida.

            A fundação do califado representa, provavelmente, a idade de ouro de Al-Andaluz. O feito deve-se a Abderramão III que, em 929, toma o título de califa e assim se torna, efectivamente, independente do califado de Damasco/Bagdade. Curioso é o facto de os cristãos terem, por esta altura, um ímpeto renovado no seu esforço de reconquista. O facto é que, por mais algum considerável tempo, o califado permaneceu na península ibérica.

            Destas características, muitas heranças se podem inferir do califado Al-Andaluz. Do ponto de vista económico, ainda hoje as grandes culturas andaluzas permanecem as mesmas daqueles tempos, bem como o comércio mediterrânico, um dos seus trunfos. Culturalmente, as línguas, quer castelhana, quer portuguesa quer valenciana ou mesmo a catalã, conservam testemunhos preciosos de vocábulos árabes. A dimensão artística da herança de Al-Andaluz é impressionante e não pode ser negada: basta olhar para a última capital, Granada, e o seu extraordinário palácio Alhambra, para a imensa catedral de Córdova, antes sua mesquita, ou para a traça antiga de Sevilha e a sua enorme torre Giralda. Isto para não falar em todo o manancial de lendas, poemas e canções que felizmente por este califado nos foi deixado.

            Mas outras heranças subsistiram. A luta da Reconquista cristã tomou muitas formas, mas uma delas foi a consolidação territorial através de Ordens religiosas, em tudo semelhantes às Kuras árabes, mais tarde as célebres taifas. A ideia de guerra santa foi uma das mais persistentes, não só na península, mas em toda a Europa e todo o mundo árabe. Essa é a sua herança religiosa. Por outro lado, ambos os lados usaram os judeus para a administração de recursos financeiros (quer as taifas, quer as ordens religiosas), o que veio a conferir a esta etnia uma áurea de excelente negociante.

            No fundo, e como refere Amine Maalouf, na sua entrevista à Euronews, a sã convivência neste encontro de culturas – não confronto de culturas – devia ter-nos legado algo mais que a guerra santa movida por ambos os lados. O califado Al-Andaluz é prova histórica de que, na maior parte das vezes, as três confissões, cristã, judaica e árabe, conviveram mais do que se guerrearam.



Bibliografia:

·         Delumeau, Jean – As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Presença, 1997. 2ª Edição, ISBN 972-23-2241-9

·         Riché, Pierre – As Grandes Invasões e Impérios, séculos V a X, in História Universal, vol. 5, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1980

·         Ruiz Domenec, José Henrique – O Islão na Península Ibérica, in José Pijoan, História do Mundo, vol. 5, Lisboa, Publicações Alfa, 1973

·         Vázquez Borau, José Luís – As religiões do Livro, Lisboa, Ed. Paulus, 2008


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A AMBIGUIDADE HINDU




 Trabalho escrito para a disciplina de Antropologia das Religiões, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião


É um facto que uma observação casual da religião hindu induz imediatamente a sensação inquietante de uma idolatria quase sem limites e de um politeísmo absolutamente explícito. Aliás, a Índia encerra, em si mesma, um excesso evidente. Um excesso demográfico, por certo, mas, mais importante, um excesso social. E, como veremos, nada disto é alheio à religião, ao Hinduísmo. É um país imenso, não só demográfica ou geograficamente, mas antes e principalmente nos seus contrastes evidentes, do ponto de vista social e ético.

O Hinduísmo deriva dos conceitos religiosos trazidos pela invasão ariana do subcontinente indiano, algures entre os séculos X e XIV antes da nossa era. É um facto que antes disso, muito antes disso, já os indianos cultivavam e floresciam civilizações grandiosas, como a de Harappa (ou Mohenjo Daro), no vale fértil do Indo, civilizações contemporâneas das primeiras cidades do mundo. Mas dessa realidade ficaram os testemunhos arqueológicos e pouco mais, pois perdeu-se todo o contacto com essas sociedades. A invasão ariana trouxe o sânscrito, a língua sagrada, bem como os primeiros textos sagrados, os Veda.

A interrogação de Carmo faz todo o sentido. Nada na Índia é aquilo que parece, e muito menos a fonte de todo o sistema social indiano, o Hinduísmo. Na verdade, e passado o espanto perante o imenso panteão indiano, semelhante apenas ao do Egipto faraónico, a questão do politeísmo hindu permanece mal resolvida. Quando Carmo diz: “ (…), somos de imediato tentados a classificar as tradições hindus como idólatras e “politeístas”. (…)”, é de frisar a palavra “tentados”. A verdade, como o próprio autor inquire, é algo mais complexa que aquilo que parece.

Há várias dimensões que podem ser analisadas no que se refere à ambiguidade extrema da religião hindu. A primeira prende-se com as suas principais divindades. E a principal, quiçá o princípio das coisas, é o Brahman. Este pode ser considerado como um deus, mas a verdade é que não é apenas mais um deus. Brahman é, antes de mais, um conceito, e é o mais importante conceito hindu. É, tão só, e apenas, Deus. Um ser que não é um ser, mas sim um Uno, uma unidade de todos os seres – unidade onde, aliás, se diluem aqueles que atingem finalmente, e depois de várias transmigrações, o direito de se fundirem a Brahman.

Emanando de Brahman, há três figuras principais. Não são diversas de Brahman, mas estão abaixo dele e são diversas entre si: Brama, Vishnu e Siva, os deuses da criação, da conservação e da destruição. É, antes de mais, uma contradição em si própria. Brahman é absoluto e absolutamente transcendental, para lá de qualquer representação que a mente humana possa imaginar. É uno, é Deus. Mas depois, e dele emanados, aparecem Brama, Vishnu e Siva. Há, então, politeísmo ou não? Na verdade, o conceito politeísta não pode ser aplicado correctamente ao Hinduísmo. Hulin e Kapani, na obra coordenada por Delumeau, “As Grandes Religiões do Mundo”, afirmam: “Politeísmo, é certo, mas de carácter fluido. As múltiplas entidades [veneradas] (…) possuem uma individualidade tão débil e tão indefinida que se fundem facilmente ou se transformam umas nas outras. São sentidas (…) como modalidades locais e temporárias da presença entre nós de um divino em si mesmo informe e, por isso mesmo, capaz de todas as metamorfoses.”.

Ou seja, o politeísmo hindu não é referente ao nosso conceito de politeísmo, pois os vários deuses, embora distintos entre si, não são mais que diversas formas de Deus, de Brahman, que, estando para além da compreensão humana, concede forma aos seus avatares. E pode inclusivamente multiplicar-se, como no caso de Vishnu, o deus mais venerado entre as castas superiores, que se multiplica em formas como Rama, Krshna, Buddah ou Kalkin, para falar apenas dos quatro últimos.

A afirmação de von Stietencron induz mais variedade de conceitos que apenas o politeísmo. Aliás, a própria existência de Brahman induz a um outro conceito: o panteísmo – pois se é informe, transcendental e para lá da compreensão, ele é tudo. E é certo que uma das representações de Krshna, no Bhagavad-Gîtâ, mescla claramente a figura antropomórfica do deus com o que dele emana: a representação de toda a existência. Assim, é um conceito também ele fluido, não exacto, pouco explicável. Ou seja, como conceito, é imperfeito. O panteísmo indiano é uma sensação, uma espécie de constatação lógica subjacente à confusão aparente.

É neste contexto que faz todo o sentido a afirmação de von Stietencron: “somos finalmente confrontados com expressões de fé que vão desde a utilização de poderes mágicos nos ritos de fertilidade e nos cultos sacrificiais até à concepção de um absoluto não antropomórfico, que escapa às categorias do pessoal e do impessoal, que transcende toda a representação humana, passando por todos as cambiantes de crenças politeístas, dualistas e monoteístas.”. Hulin e Kapani vão mais longe: “(…) a própria noção de panteísmo parece ambígua (…) [mais] sob a forma de um sentimento, quase de uma sensação, que de um conceito.”.

A religião hindu é uma religião cheia de dualismos. E um desses é o dualismo politeísmo/monoteísmo. Mas, para o hindu, um conceito não anula o outro. Ao nível teosófico, Brahman é o Uno, é Deus, é o Todo. Mas não pode negar-se a existência de outros deuses, distintos entre si, ainda que emanados de Brahman. Por outro lado, um hindu pode ter, em fases diferentes da sua vida, diversos deuses merecedores da sua veneração máxima, se bem que normalmente apenas venere um de cada vez. Ou seja, também o conceito de monoteísmo é extremamente fluido. Como dizem Hulin e Kapani: “Este “monoteísmo alternativo” (…) é absolutamente característico da sociedade hindu.”.

E falar de fluidez religiosa numa sociedade rigidamente estratificada em castas não é mais que um outro dualismo hindu, já que é a própria religião que determina, até aos dias de hoje e apesar de banido pela Lei, o sistema de castas. Através das Leis de Manu, por exemplo.

E não se ficam por aqui os dualismos e ambiguidades hindus. De tudo isto decorre uma representação bissexuada do sagrado. Pois é certo que se ao processo de recolhimento de Brahman na sua forma indefinida e fechada em si mesma, inatingível e transcendental corresponde uma dimensão masculina, o processo inverso, o das milhentas representações induz uma dimensão feminina. Hulin e Kapani afirmam: “Daí a ideia de imaginar a via divina das espécies de como que um jogo amoroso entre um princípio masculino (o absoluto recolhido em si mesmo) e um princípio feminino de movimento e de expansão na multiplicidade.”.

Aliás, esta dualidade masculino/feminino na religião hindu é por demais evidente na própria tríade celebrada pelos três movimentos: criação (Brama), normalmente associado ao sexo feminino, conservação (Vishnu) como o equilíbrio entre os sexos, e a destruição (Siva), claramente identificável como um elemento masculino.

Por fim, mais um exemplo de dualidade, ligada ao que afirmou von Stietencron, reproduzido acima. Os deuses hindus têm, na verdade, dois aspectos: o universal e longínquo e outro, mais próximo e, portanto, mais protector. Ou seja, independentemente de a morada dos deuses ser uma espécie de paraíso, os seus avatares (de avatâra – lit. “descida”) multiplicam a sua existência ligada a determinadas regiões, locais ou até famílias, passando a funcionar como uma espécie de protectores quase pessoais dos fiéis – tal como von Stietencron afirma – tomando estes cultos a forma de ritos mágicos ou de sacrifício (não confundir com os sacrifícios primordiais descritos nos Veda).

Em suma, a ambiguidade é uma característica indiana, indelevelmente marcada por uma religião dominante e prescritora, mas simultaneamente tão ambígua que quase cada fiel pode desenvolver a sua forma de culto e entendimento sobre o divino.


Bibliografia:

·         Carmo, António – Antropologia das Religiões. Lisboa, Universidade Aberta, 2001. 1ª Edição, ISBN 978-972-674-359-0

·         Delumeau, Jean – As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Presença, 1997. 2ª Edição, ISBN 972-23-2241-9