quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

PAPAS GREGAS E BOLOS EUROPEUS

Ilustração Marco Joel Santos

            Não adianta dizer que não sou daqueles que gostam de dizer “eu avisei”. Porque sou e quando tenho de cobrar normalmente não deixo passar a ocasião de “mandar a boca”. Bem, a verdade é que avisei da pouca seriedade e até uma alta taxa de desonestidade intelectual que rodeou a negociação havida entre o Eurogrupo e o novo governo grego.
            Tal como antes deste primeiro e insignificante desfecho, as conclusões que cada facção tirou desta novela grega está toldada pelo radicalismo político. O perigo não está naquilo que se diz, mas sim a quem se diz. E a verdade é que ninguém está a falar para os políticos, nem para comentadores mais ou menos políticos. Está-se a falar para o povo. E o povo, esse, e como bem sabemos, emprenha facilmente pelos ouvidos e dá à luz, regularmente, nados-mortos chamados governos. Adiante, basta de tristezas.
            A direita portuguesa congratula-se com o resultado das negociações porque tudo o que a Grécia estava obrigada a fazer se mantém com este novo governo. Alegam que apenas as palavras mudaram, de austeridade para reformas estruturais e de Troika para instituições. A esquerda portuguesa que se identifica com o Syriza reclama vitória porque este novo governo grego acabou com a austeridade e com a Troika.
            Nenhuma destas facções tem razões para ter ficado satisfeita, na verdade. E por razões óbvias que não custa referir e vislumbrar.
            A visão da manutenção da austeridade é parcialmente verdadeira, mas não de forma cabal e inegável. Antes de mais, porque uma das mais importantes imposições da Troika caiu mesmo, a meta do saldo primário, que teria de ser 3% este ano e 4,5% em 2016. Ficou-se por um valor de 1,5% para este ano e provavelmente manter a mesma meta indefinidamente. O que quer isto dizer? Simples, a Grécia obteve uma estagnação da austeridade, e alguma margem para medidas que vão no sentido do crescimento económico e não apenas da contracção do consumo com vista a pagamentos de dívida. Na prática, a Grécia fica obrigada a pagar a dívida com 1,5% do saldo primário, e não 3% nem 4,5%, como previsto anteriormente, ou seja, se conseguir crescer no futuro, a Grécia conseguirá folga para investimento. No fundo, atingiu, parcialmente, o seu grande objectivo, que, relembro, era o de pagar a dívida conforme o seu crescimento económico. Não conseguiu exactamente isso, mas o resultado líquido pode ser muito parecido.
            Por outro lado, as medidas de austeridade que se mantêm no acordo mudaram o alvo. Ao invés de incidir na descida de salários, passam a incidir na obtenção de impostos. Pode parecer uma medida simples, mas não é, face à postura omissa dos empresários gregos em termos fiscais. A supressão de empregos também passou à eficiência do aparelho de Estado. Tarefa ainda mais hercúlea, dada a corrupção que grassa no aparelho estatal grego. No papel, parece tudo bem. No papel.
            A visão do fim da austeridade é igualmente insuficiente. Há que lembrar que a Grécia se compromete a não parar as privatizações em curso – que são muitas e estratégicas, mormente nos transportes. O governo grego aquiesceu em implementar uma reforma do mercado laboral que siga as melhores práticas europeias, ou seja, vai efectivamente flexibilizar o mercado de trabalho. Eu não gosto destas expressões, porque o trabalho não é um mercado e não existe flexibilização. O que existe, segundo as melhores práticas europeias, é a precarização do emprego. Ponto.
            Ainda no acordo aparecem os célebres cortes, disfarçados de “racionalização de custos”, em áreas como a saúde, a educação ou a justiça. Não é difícil, teoricamente, cortar custos no sistema grego, uma vez que a sua ineficiência é já de si garantia que a poupança é possível sem haver grandes mudanças estruturais. O problema é, lá como cá, a corrupção, grande e pequena, que grassa, e não será nada fácil mudar as mentalidades, mesmo que se controle a corrupção. Por isso, é provável que estas poupanças se possam vir a reflectir em medidas como a execrável perda de direito de acesso ao sistema de saúde por quem esteja desempregado há mais de três meses.
            É triste, por esta e muito mais razões, que de ambos os lados se assista ao espectáculo a que se assistiu nos últimos dias em Portugal. O país extremou-se, e devo dizer que nunca vi tantos bloquistas nem tantos defensores da austeridade como agora. A situação, como referi, não agradou nem a um lado nem a outro. Por razões igualmente simples.
            Este desenlace não agradou à direita porque, independentemente das conclusões económicas, o grande objectivo era ver uma Grécia esmagada em pleno Eurogrupo. Isso não aconteceu, e não aconteceu porque o povo pode ser estúpido, mas nem sempre é obtuso. O povo português viu um ministro grego negociar com o Eurogrupo, ou seja, com os seus pares, seus iguais, enquanto se lembra das tristes visitas de funcionários boys da Troika, a mandar e desmandar quando aterravam na Portela. Nem esquecerá tão cedo a postura de poodle abanando o rabo e com a língua de fora da nossa ministra das finanças, mostrada em montra de concurso canino pelo senhor Schauble. Isso conta muito, mas mesmo muito, e isso é uma coisa que a direita europeia não entende desde Churchill: o orgulho nacional consegue apagar muita fome. Por outro lado, a Grécia obteve algo. Se calhar, só obteve 5% do que inicialmente apregoava querer conseguir. Mas 1% de melhoria seria muito bem-vinda por qualquer português, nesta altura…
            A esquerda não se sentiu satisfeita porque simplesmente os seus sonhos ruíram por terra. Aquilo que o Bloco de Esquerda poderia capitalizar à custa da mudança radical na Europa e na sua relação com os Estados não se concretizará porque a Europa não mudou nada. O que mudou foi a Grécia, e não conseguiu tudo o que queria. Na verdade, vamos mesmo assistir ao ocaso destas correntes de esquerda nas próximas eleições. Por outro lado, muita gente desta esquerda mais ou menos caviar ainda não percebeu que a Europa não se rege minimamente pelos seus valores, nem por valores de esquerda, sejam eles quais forem. E que só poderá haver mudança nacional, nunca uma mudança europeia. A Europa não mudará, a menos que se acabe de vez. Entendam isso e facilmente passarão a viver de bem com os ideais de esquerda.
            A insignificância deste desenlace é óbvia. A Europa está convencida que a Grécia vai continuar a cumprir um grande programa de austeridade, que tem por objectivo único o eclipse de qualquer interesse geopolítico da Grécia como potencial económico nacional, mas antes transformar a Grécia numa pequena plataforma giratória e logística para as operações das grandes empresas e lobbys no leste da futura Europa que inclui as ex-Repúblicas Soviéticas. Como a Monsanto está a adquirir a Ucrânia, por exemplo. Por outro lado, a Grécia não vai cumprir com nada do que acordou, vai disfarçar e olhar para o lado, travar o mais que pode neste caminho de destruição da sua economia e ameaçar, as vezes que achar razoável, com a saída do Euro e o provável fim do mesmo.
            E toda a gente vai assobiar para o lado. Cá estaremos para ver, nós, os pacóvios do costume. Com papas e bolos se enganam os tolos.


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

PANINHOS QUENTES EM COSTAS RASGADAS

Ilustração Marco Joel Santos

            A diferença entre um Junkers e um Juncker é um c e um s. Assim à vista desarmada. C de corrupto e s de salafrário. É evidente que um Junkers aquece água, trata-se de uma marca de esquentadores bastante conceituada, um “made in Germany”, como se quer nestes produtos industriais. Não acreditem em nada disto, um Junkers é apenas um Vulcano com outra etiqueta e são todos feitos ali em Cacia. Um Juncker é bem diferente, é um burocrata oriundo do Luxemburgo, aquele país que vive à custa do dinheiro dos outros países, neste particular bem acompanhado regionalmente, aliás. Quem me souber dizer qual o grande produto de exportação luxemburguesa leva um brinde.
            A semelhança entre os dois é mais que o nome. Um produz água quente, o outro produz paninhos quentes. Juncker parece ter tido uma epifania, depois de ter sido primeiro-ministro do Luxemburgo, acumulando a pasta das Finanças, ter presidido ao Conselho Europeu e ter tido grande influência no Eurogrupo. Evidentemente que o facto de ter perdido a oportunidade de prolongar o seu reinado no Luxemburgo nada terá tido que ver com o escândalo financeiro em que se viu envolvido, e nada o faz parar, sendo agora o Presidente da Comissão Europeia, lugar burocrático europeu sem influência legislativa mas com belo efeito de jarra, que se encontrava vago há dez anos. Este personagem veio afirmar que a Troika pecou contra a dignidade dos povos.
            Isto levava-me tão longe… mas adiante.
            Antes de mais, quem é a famosa Troika? É um grupo de instituições que integra a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. Ora, se assim é a Troika é, quando não mais, dois terços União Europeia. É por demais interessante verificar que um dos senhores que mandava na União Europeia venha agora falar dos excessos da Troika, quando ele próprio a terá orientado em grande medida. Do FMI estamos conversados, é aquele fundo que está a transformar a Ucrânia em duas regiões distintas, a República da Monsanto e o Donbass.
            Prosseguindo, imaginemos que a troika, de facto, atentou contra a dignidade dos povos. Qual a situação mais indigna que podemos imaginar? Muitas, com certeza, mas a mim ocorrem-me assim de repente, duas: a indignidade do Holocausto e a indignidade da Escravatura. Sim, já sei que as comparações são relativas, mas é apenas uma analogia. Imagino, por exemplo, o africano vergado sobre um tronco numa qualquer fazenda norte-americana, ou mina sul-americana, ou roça africana, a levar chicotadas nas costas. E agora imaginemos que, depois de ter as costas desfeitas pelos golpes de chicote, o senhor do escravo se lhe chega aos ouvidos e murmura-lhe: “Pequei contra a tua dignidade”.
            Mas agora imaginemos que o escravo se dirige ao amo e lhe refere que o seu amo deve estar doido e que está a ser muito infeliz nas suas palavras, pois nunca por nunca sentiu que a sua dignidade foi sequer ameaçada, e não é por ter as costelas à mostra e se estar a esvair em sangue que alguma vez duvidou da justeza do castigo. Não parece ter sido o que fez o nosso infeliz primeiro-ministro, mais o seu governo e o seu partido?
            Não, nem por sombras. As costelas à mostra por entre os rasgões na pele e na carne não são dele. São nossas. O nosso povo foi alvo dos pecados da Troika, mas todos nos devemos lembrar que os pecados deste governo são maiores do que os da troika, pois era para além dela que o governo queria ir e foi. Num país devastado, com um sistema de justiça destruído por uma louca, um sistema de saúde devastado por um monstro funcionário dos Seguros de Saúde (que muitos diziam ser o melhor ministro deste governo), em que a probabilidade de ser atendido numa urgência em tempo útil é tão remota como a de o Sporting ser campeão, um sistema educativo entregue à anarquia, à mercê de um mercenário que só quer entregar o ensino a privados, quem é que, afinal, tem as costas ensanguentadas?
            Não é o coelho, nem o seu pseudo-governo, nem o seu partido de extrema-direita que sofre. Esses estão bem. Até conseguem ser os únicos assalariados com aumentos reais de vencimento em três anos de misérias salariais. O escravo somos nós, não são eles. Eles são apenas os capatazes da fazenda, e a Troika é apenas o chicote. O senhor da fazenda é o Schauble. O gajo da cadeira de rodas, um deficiente rancoroso de merda, que para além de deficiente ainda é portador de deficiência, e que não se lembra que a Europa sempre perdeu com a presença do seu país xenófobo e racista no seu seio. O país que começou as guerras mais devastadoras que alguma vez o mundo já viu, o país que foi humilhado pelo resto do Mundo que, num gesto de magnanimidade, o ajudou a erguer-se das mais tenebrosas sombras ideológicas e das cinzas físicas. As feridas físicas desapareceram. O resto permanece. Não confundo, no entanto, a Alemanha com os alemães. Mas porque raio havemos nós de confundir a Grécia com os gregos? E porque razão hei-de eu dizer mal a torto e a direito dos gregos, que nunca fizeram mal a ninguém, e hei-de reverenciar os alemães, o povo mais genocida da História? Não faria mais sentido odiar os alemães? Bem, seja como for, não os odeio, apenas tenho asco pelo que o seu país representa.
             Quanto ao Junckers, os seus paninhos quentes a mim fazem pouco efeito. Mas pelo menos, não lhes ponha sal.
A Europa em contagem decrescente.

            

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A TRAGÉDIA GREGA

Ilustração Marco Joel Santos

Desgostam-me estes actos a que estamos sujeitos, por parte de uma certa comunicação social nojenta que temos de tolerar, que mais não procura que denegrir aqueles que eles próprios acham nojentos. O governo grego está entre os nojentos eleitos pelas comunicações sociais neo-liberal e fascista que, num dado momento no tempo, que é agora, acharam os seus objectivos alinhados. Igualmente me desgosta a comunicação social de alguns sectores esquerdistas que encaram o mesmo governo grego como o salvador de uma Europa moribunda.
            Na realidade, penso que nenhuma destas correntes tem sequer razão para existir.
            Os comentadores de direita sentem-se ameaçados por algo que não conhecem, mas que também não desejam conhecer. Os comentadores de esquerda passam por cima de um facto que deviam conhecer, mas que fazem por esquecer, quando tanto se esforçaram por o recordar: a Grécia está de rastos, não só e apenas pelo resultado da austeridade cega a que foi sujeita, mas também pelas irresponsáveis políticas anteriores por parte dos principais actores políticos de então, os socialistas e os de centro-direita (já não sei que nome hei-de chamar a estes bois, pois sociais-democratas já há muito não são).
            Não há milagres, penso que todos já percebemos isso. A única proposta realista que vejo por aí a circular é mesmo a do nosso PCP, que quer discutir e preparar uma possível saída de Portugal da zona euro. É um cenário que, agrade ou não a quem quer que seja, é possível e, em face dos acontecimentos mais ou menos graves que se podem vir a desenrolar nos próximos dias e semanas, tem um grau de probabilidade que não pode ser menosprezado. Tudo o resto ou são tresloucados ataques à memória grega e ao seu papel na Europa ou então radicalizações que só fazem sentido como ponto de partida para as cedências durante uma negociação.
            O problema parece ser que todos têm medo do que possa acontecer com a Grécia. Os acólitos do Governo Alemão (e por conseguinte, de Passos Coelho) têm um imenso medo que o Syriza consiga melhorar a condição grega porque isso desautoriza – em absolutamente TUDO – o governo português (aliás, como o espanhol, o italiano e outros mais, mormente o alemão). Além disso, seria a esquerda portuguesa (a extrema esquerda, o BE e o PCP) a capitalizar nas urnas os possíveis sucessos do Syriza, o que poderia inviabilizar aquele que agora parece ser o grande sonho dos socialistas e dos de centro-direita e extrema-direita (PS, PSD e CDS), um gigantesco “consenso” chamado Bloco Central.
            Por outro lado, muita gente dentro de uma certa esquerda pouco popular mas bastante instruída teme o fracasso do Syriza pelas mesmas razões, ou pelas razões inversas: a legitimidade cada vez maior das políticas de austeridade e a impossibilidade de deter o seu próprio ocaso eleitoral.
            No meio disto tudo, está, afinal, a Grécia. Um país. Não é um continente, nem uma federação de países, é apenas um país. Mas que faz parte de um projecto maior, o europeu. É triste vermos alguns tristes comentadores politiqueiros denegrirem todo um povo apenas porque os seus interesses materiais e políticos estão em causa. A esses, devíamos apenas ignorar, porque a liberdade de expressão lhes dá o poder de opinar.
            A Grécia é o berço da civilização europeia. Foi quem deu nome à Europa. Esqueçam a Democracia, isso só surgiu depois, em Atenas. Primeiro surgiu a própria designação do continente, e foram os gregos que a inventaram.
            Conta a lenda que Europa era uma princesa de rara beleza oriunda do Levante, da cidade de Tiro, que era, à altura, governada por seu pai, Agenor. A moça seria tão bela que Zeus lhe apareceu sob a forma de touro branco e a terá iludido a montar o seu dorso, após o que a terá raptado, levando-a para a ilha de Creta, terra natal de Zeus. Europa terá ficado tão apaixonada por Zeus que terá esquecido a sua forma de touro e, ainda antes de este ter assumido a sua forma natural, se lhe teria entregado, daí surgindo o famoso Minotauro. Mais tarde, teriam tido mais dois filhos, um dos quais Minos, o lendário rei de Creta.
            Esta lenda era contada na tradição oral grega ainda os outros europeus nem sequer existiam. Relembremos que a Europa como a conhecemos foi formada essencialmente depois das Invasões Bárbaras, mormente o centro da Europa. Apenas romanos, etruscos e algumas tribos celtas por aqui andavam e já os gregos tinham escrito a Odisseia, a Ilíada e mais obras literárias de fino recorte poético. Também inventaram a tragédia e a comédia. E a sátira.
            Independentemente das raízes culturais gregas, muito ligadas ao que os Dórios encontraram das civilizações egípcia, minóica e micénica, a questão é que não se pode, não se deve, nunca, menosprezar o contributo de um povo para a História universal. Seja qual for o povo, pois todos eles foram importantes, em dada altura, para o desenrolar dos acontecimentos. Desprezar a herança grega não é só desprezar um povo e sua história, é desprezar a História Universal e em particular a História Europeia. Que isso aconteça pelo mais fútil dos motivos, como o de ser director de um jornal de extrema-direita, é ainda pior.

            Pelo enorme respeito que me merece o povo grego e a sua extraordinária herança histórica com que nem portugueses nem espanhóis nem italianos sequer, e muito menos franceses ou alemães, podem sequer sonhar, desejo apenas que o Syriza consiga com que esse extraordinário povo saia da sua miséria actual. Porque, se é bem verdade que devem ser os gregos que devem pagar as consequências do seu acto político de escolher o Syriza para governar, e essas consequências podem ser impostas pela Europa… o que mais lhes podem fazer? Enviá-los para Auschwitz e Birkenau?