quarta-feira, 8 de abril de 2015

A PÁSCOA NO ANO DA MORTE DE J.C.

Ilustração Marco Joel Santos
Mesmo durante as festas da Páscoa, as ruas de Jerusalém encontravam-se, àquela hora, desertas. Já havia findado o burburinho das multidões que se arrastavam, em passo lento ou em longas filas, em direcção ao Templo. Às vozes cansadas juntavam-se os barulhos dos animais que acompanhavam os devotos, destinados ao holocausto. O povo de Deus acorria de todas as partes do mundo judaico à cidade santa para a maior festa religiosa de Israel. E desde que Herodes, o Grande, havia reconstruído o Templo, a festa havia ganho redobrada fé.
            Jerusalém não era um sítio grande para se percorrer, mas era uma cidade grande, a maior daquelas partes, repleta de becos e ruas estreitas, alçada na sua perene colina, brilhando com o Templo à vista de todos. Por isso, decidira pôr as mãos à obra bem cedo, logo após a última hora. Tinha muitas casas para visitar, muitos muros para transpor, e muita mercadoria na qual pôr as mãos.
            Decidira evitar as patrulhas romanas. Não que os romanos se interessassem pelo que andava a fazer. Tinham coisas mais prementes a tratar e tratavam delas com eficácia. Ainda poucos dias antes tinham posto as mãos ao Barrabás, um dos líderes dos revoltosos, e preparavam-se para o executar com requintes de crueldade. Aliás, como era hábito nos romanos. Eram extremamente tolerantes para com a religião e a sociedade que conquistavam, mas não toleravam minimamente afrontas à sua autoridade. Para além do mais, os romanos não tinham a sensação de que a Palestina fosse uma terra que verdadeiramente valesse a pena, apenas a conquistaram para completar a sua colecção de costas mediterrânicas. Em todo o caso, poderia topar com alguma patrulha com zelo mínimo e o fizesse passar uma temporada valente nos calabouços do Pretório.
            Decidira também evitar as patrulhas dos guardas do Templo e do Sinédrio, que eram bem mais zelosos que os romanos, particularmente em tempo de Páscoa. E, pelas suas contas, já pouco mais de uma hora faltaria para o nascer do sol. Já lhe doíam as mãos de tanto trabalho, doíam-lhe as pernas de tanto calcorrear e saltear. Mas tinha de o fazer, tinha de o fazer. Até ao nascer do sol.
            Esperava que aquela fosse a última casa a visitar naquela noite. Achava que já havia visitado todos os seus objectivos. Saltou um muro e, furtivamente, abeirou-se de um pequeno cercado onde dormiam os galináceos. Procurou, com o olhar já habituado àquela escuridão medonha, o maior volume e, num gesto rápido e eficaz, que lhe vinha já dos tempos de içar o peixe para o barco no Mar da Galileia, apertou o pescoço ao incauto guarda da capoeira. O enorme galo nem teve tempo de cacarejar como uma pobre galinha. O pescoço estalou imediatamente por entre os dedos de Simão.
            Nunca entendera por que raio o JC decidira mudar-lhe o nome. Gostava tanto do seu nome! Simão era um nome poderoso, que inspirava respeito. E ele era um homem de respeito! Um grande pescador, um bom homem. Rude, talvez, mas afável o suficiente para seguir Aquele que um dia o chamou para as aventuras dos últimos três anos! Ah, boas memórias, uma vida aventurosa que estava prestes a acabar! Nunca se queixou das agruras do caminho poeirento, ou das camas de pedras onde dormiu tantas vezes. Mas admitia que a sua situação actual era realmente deplorável. Um vulgar pilha-galinhas, cheio de dores no corpo, de roupas esfarrapadas de tanto roçar-se pelas paredes ásperas das ruas de Jerusalém, um fugitivo na noite, com uma meta quase impossível, mas que finalmente havia atingido. Não que o consolasse muito, mas pelo menos era prova da sua determinação.
            Transpôs novamente o muro, agora para o caminho poeirento e pedregoso que conduzia ao centro da cidade e às ruas pavimentadas. Dobrando uma esquina, foi abordado de surpresa por um grupo turbulento que, por milagre, havia escapado às patrulhas. Um dos homens, inebriado e com bafo de cerveja barata, atirou-lhe:
            - Tu és um dos que estava com o Nazareno ainda ontem, aqui no monte defronte da cidade!
Foi apanhado de surpresa, mas teve a presença de espírito para retorquir de imediato:
            - Não conheço tal homem, estás enganado. Vai curar a puta da bebedeira!
            Era já a terceira vez que era confrontado com aquela acusação naquela noite. E, no entanto, e de repente, um calafrio percorreu-lhe a espinha. Ficou paralisado de horror perante aquele som fantasmagórico, um som vindo de outra dimensão, um choque completo. O cantar de um galo!
            Foi atrás do som. Correu atrapalhadamente pelas ruas, já pouco importado com as patrulhas. Tinha a certeza de que havia matado todos os galos de Jerusalém! Como era possível que lhe tivesse escapado algum? Mais uma esquina, e vislumbra uma patrulha romana. No meio dos seis guardas, seguia uma figura vestida de branco, de longos cabelos e andar cansado. Ao lado dessa figura, seguia Jesus Cristo. E Jesus parou por um momento, virou-se para Pedro e sorriu-lhe, enquanto mostrava um garboso galo nas suas mãos.

            Pedro não evitou o pensamento: “Podes ser o Filho de Deus, mas agora foste foi um ganda filho da…!”