sábado, 23 de abril de 2016

A RIDÍCULA PROPOSTA DO BLOCO DE ESQUERDA



Ilustração Marco Joel Santos
            Muito se falou da proposta do Bloco de Esquerda de mudar a designação do Cartão de Cidadão para cartão de Cidadania. Na verdade, muitos homens falaram. E muitos homens escreveram. Ouvi e li o que tinham a dizer sobre o assunto poucas mulheres. O que não deixa de ser interessante quando a proposta visa, essencialmente, não discriminar as mulheres. Se calhar devíamos, neste caso, ouvir mais mulheres. Sei lá, se calhar até têm opinião e a gente não sabia disso…

            Seja como for, a proposta é ridícula. Mudar a designação de um cartão não protege a identidade feminina ou masculina do seu portador ou sua portadora. A culpa é da língua. O português é uma língua difícil, arcaica, descritiva. O português, ou língua portuguesa, não vá alguma deputada do BE sentir-se ofendida por falar português, discrimina género em quase tudo. O inglês, por exemplo, não tem esse problema, pois um citizen feminino é igual a uma citizen masculina, ou vice-versa, que este assunto dá para confundir. A mesma palavra aplica-se ao feminino e ao masculino e designa, no geral, os adeptos do Manchester City.

            Ora acontece que, em Portugal, cidadão é uma palavra que, para algumas pessoas do BE, não se aplica às mulheres. Claro, têm razão. As mulheres são cidadãs. São diferentes. São cidadãos, mas femininos. Não são portugueses, são portugueses femininos, o que, logo, os torna algo especiais. Mesmo assim, tenho arrepios quando relembro a forma cínica que cavaco utilizava para começar os discursos, “Portugueses e portuguesas”, em vez da solenidade rígida mas empática do General Eanes quando começava com “Portugueses” apenas.

            Isto pode ir longe. Logo, assim de repentemente, lembro-me das Lojas do Cidadão. Nunca percebi porque se chamam assim, já lá fui algumas vezes e nunca consegui comprar um cidadão. Se calhar fui ao local errado e devia ter ido a uma qualquer sociedade de advogados. As Lojas do Cidadão terão de se chamar Lojas de Cidadania. O que piora as coisas. Se nunca lá tinha comprado um cidadão (ou cidadã), muito dificilmente comprarei cidadania, a julgar pela falta dela da generalidade das pessoas que lá se amontoam. Mas nem só de cidadãos vive o homem. E os beneficiários e beneficiárias? Também teremos de ter um cartão de Beneficiária. E cuidado com os mais iletrados, porque aí a coisa piora. Não é pouco usual as pessoas mais iletradas se referirem aos homossexuais como “homens sexuais”. Piorou, porque nunca lhes ouviram a expressão “mulheres sexuais”. Primeiro, porque para grande parte dessas pessoas uma relação homossexual entre mulheres é impensável e segundo porque, para queles que assim não pensam, é mais fácil dizer que “batem pratos”. Que é uma expressão extraordinária que não quer dizer absolutamente nada.

            Se pensarmos ao contrário, as coisas também podem ir longe. Não devemos poder mais dever dinheiro às Finanças, se formos homens. Queremos o direito a dever também aos Finanços. E se forem finados, melhor, pode ser que esqueçam a dívida. Cuidado com a palavra “pessoa”. É feminina e os homens podem querer não ser tratados por pessoas, mas antes como indivíduos. Assim ficaria pessoas para as mulheres e indivíduos para os homens. Os homens podem querer também não serem incluídos na Humanidade, já que a palavra é feminina. Obviamente, as mulheres podem não querer igualmente pertencer ao Homem quando a palavra é utilizada para designar a raça humana.

            Os livros de História têm de ser todos mudados. Não pode haver mais a referência ao Homem de Cro-Magnon, pois também devia haver mulheres de Cro-Magnon. O Homem não apareceu em qualquer altura da pré-história, pois a mulher também deve ter aparecido mais ou menos na mesma altura. Considerando os atrasos mais típicos das senhoras, deve ter aparecido dez minutos depois. Cuidado com expressões paternalistas como “os putos”. Pode haver meninas no grupo e quererem ser tratadas por putas. Nos hipermercados, teremos de ser mais criteriosos e pedir no talho 1 kg de carne de porco ou de porca, de vaca ou de boi, de peru ou de perua, de frango ou de galinha.

            É óbvio que a proposta é ridícula. Mas há 150 anos, uma mulher ter direito a voto era ridículo. Na verdade, em Portugal, só votava quem, nessa altura, tivesse suficiente fortuna pessoal comprovada, o que hoje seria ridículo. Há 50 anos apenas, era ridículo um preto entrar pela mesma porta do autocarro que um branco, ou sentar-se nos mesmos bancos, em países tão diversos como a África do Sul, Portugal ultramarino ou os EUA. Era ridículo, há quinze anos atrás, pensar que poderíamos publicar detalhes da nossa vida privada para um público de milhões de pessoas. Tudo isto era ridículo. Era ridículo, em Portugal, noutros tempos, falar de política em público, e até em privado. Era ridículo uma mulher conduzir, era ridículo uma mulher ser sequer advogada ou militar.

            Por outro lado, era usual, em Portugal, até há bem pouco tempo, atirar lixo para o chão, fumar em locais públicos fechados, bater em crianças que não nos nossos filhos ou não colocar o cinto de segurança.

            A cidadania faz-se de pequenos ridículos. Tudo o que fazemos hoje numa sociedade avançada pareceria ridículo aos nossos antepassados. Trabalhar pareceria ridículo a um aborígene, ter eleições pareceria ridículo a D.Afonso Henriques. Na verdade, tudo é ridículo. Mas nós fazemos isso tudo. Mais um ridículo não nos faz mal nenhum. Mas que é ridículo, é. Principalmente ridículo. Ridícula não sei se é, não ouvi ainda nenhuma mulher pronunciar-se. Mas também é certo que nós, homens, é que sabemos o que é bom para as mulheres. E isso não nos parece ridículo.