terça-feira, 15 de dezembro de 2015

COUNTDOWN

O Banco de Portugal afirma a pés juntos que está atento à questão do BANIF e os depósitos no banco estão seguros. Confio em Carlos Costa, é daquelas personagens que me inspira confiança e que me assegura que este tipo de questão será com toda a certeza tratada da melhor forma.
Outra certeza que tenho é que o cavaco ainda não se pronunciou sobre a situação, e ainda não disse que podemos confiar no BANIF. Portanto, e à partida, tudo correrá pelo melhor.

Só não sei para quem.

Entretanto, e só pelo sim, pelo não, façamos a contagem decrescente para o fecho do Banco e mais uma carrada de gente enganada constituir mais um movimento de lesados.

10... 9... 8...

P.S.: o gajo da Guiné não tinha salvo o banco aqui há um anito? Ou tirou tudo de lá para fora para pagar o ordenado ao JJ?

terça-feira, 20 de outubro de 2015

A CAVAQUEIRA

Ilustração Marco Joel Santos
O que retenho da noite das eleições legislativas são já apenas fogachos com uma intensidade pouco moderada, confesso. Lembro-me de todos se congratularem com a baixa abstenção, nas eleições legislativas mais abstencionistas de sempre. Lembro-me da festa amarela na sede da coligação, e derrota imensa de António Costa. São já sensações passadas que se apagam perante os resultados e, sobretudo, acontecimentos pós-eleitorais.
            Confesso que o meu nível de desencanto com os resultados eleitorais foi tal que me mantive apenas dormente e sem dar grandes opiniões sobre as deambulações de Passos e Costa para formarem um governo. Mas tenho uma opinião. E é apenas uma opinião e é minha.
            Enquadrando a opinião, tenho de começar por dizer que sou comunista. Sou marxista, embora pouco leninista. Votei nesta eleição como já votei em muitas eleições, na Coligação Democrática Unitária, liderada, como se sabe, pelo Partido Comunista Português. Não sou comunista porque é moda, nem porque me convém nem porque sou “comodista e não comunista”, como dizem algumas bestas fascistas que por aí andam. Sou marxista porque li Smith, li Landes, li Marx. E preferi, de longe, Marx. Por isso, sou comunista por convicção ideológica e não por qualquer capricho momentâneo da política portuguesa ou comportamento de cata-vento. Este é o enquadramento pessoal.
            Quanto ao enquadramento institucional, lembrem-se das palavras de Cavaco. Só daria posse a um governo maioritário. São palavras dele, não estou a inventar nada. SÓ dá posse a um governo estável e maioritário – relembro. Tudo o resto é o que conhecemos.
            Antes de mais, quem ganhou as eleições foi quem teve mais votos. A coligação Portugal à Frente, que deve ser chamada a formar governo (se consegue ou não formar governo maioritário, logo se verá). Quem perdeu as eleições foram todos os outros. Claro que isto dito desta forma parece a coisa mais simples do mundo. Mas não é. Na verdade, a coligação Portugal à Frente perdeu uma maioria clara que detinha antes das eleições (52%) e detém agora cerca de 38% dos votos e menos uma catrefada de deputados. O PS foi o principal derrotado das eleições, que seriam as mais fáceis de vencer desde sempre em Portugal. Não conseguiu vencer nem chegar perto sequer e, aliás, perderia para o PSD se este concorresse isoladamente. Mesmo assim, ganhou votos e deputados face às eleições de há quatro anos e meio. O BE perdeu as eleições mas duplicou tudo o que tinha ganho (ou perdido) há quatro anos. Ameaça tornar-se um partido de verdadeira vocação governativa. O partido em que votei manteve os deputados que já tinha e ganhou meia dúzia de votos.
            Perante este cenário, o que fazer? Bem, Cavaco não pode dar posse a um governo PaF. Devemos lembrar-nos que para se ser mais honesto que Cavaco tem de se nascer duas vezes. Se der posse a um governo PaF, fica afinal provado que Cavaco é apenas mais um desonesto, um mentiroso como muitos que grassam no seu partido, o BPN, ou outros partidos. Mas pode Cavaco dar posse a um governo de esquerda? Na minha opinião, pode. A um GOVERNO de esquerda, não a um governo do PS com acordos à esquerda. Isso seria o mesmo que dizer que hoje temos governo, amanhã pode ser que não. Lembram-se do irrevogável Portas? Pois, pode acontecer de novo, mas desta vez quem roer a corda não precisa de não ser irrevogável, pois não precisa, se não estiver no Governo, de ter um cargo mais importante do que o “daquela vaca loura arrogante de merda”. E neste caso pode não ser nem uma vaca nem loura nem arrogante de merda. Basta uma das três.
            O que vai acontecer? Na minha opinião, Cavaco vai dar posse ao governo minoritário de Passos Coelho. O quê? Faltar com a palavra? Quem, Cavaco? Pois, isso da palavra era antes das eleições e antes de saber que o Costa afinal é um bocado de esquerda a mais para os gostos cavaquistas. É que a ideia cavacóide era a de empossar um governo PSD/CDS/PS. Que é lá isso de BE e CDU?! A seguir, o governo cai no Parlamento, por força da maioria contra de toda a esquerda. Marcam-se novas eleições, ou agora ou daqui a seis meses, sem problemas. E Cavaco espera dar a maioria absoluta a Passos, com a conivência do burro povo português, que sempre teve e sempre vai ter peninha dos “que querem fazer mas não os deixam”. Vide Sá Carneiro, o próprio Cavaco ou até, em larga medida, Guterres e Sócrates…
            Ora, a esquerda, perante este caminho de destruição da validade eleitoral por parte da presidência da República, só pode avançar com a sua proposta de governo, não com uma proposta de governo PS apoiado pela esquerda, como já disse. Isto porque sabe que o eleitorado premeia quem cai com maiorias absolutas, principalmente o eleitorado mais idoso. E, adivinhe-se, há bué de idosos em Portugal. Só que Cavaco não dará nunca posse a um governo de esquerda que integre elementos do PCP. Do BE, ainda vá que não vá… Agora do PCP, que é lá isso?
            Os argumentos da direita portuguesa contra a presença do PCP num governo de esquerda são do mais engraçado que há. Primeiro, não são um partido democrático! Claro que não, são comunistas. Aliás, devem lembrar-se dessa grande comunista Manuela Ferreira Leite, a que ameaçou suspender a democracia por seis meses. Provado. Depois, os comunistas querem é o poleiro! Estranho, para um partido que foi acusado vezes sem conta de nunca assumir responsabilidades de governação… Aliás, acho peregrino que se diga que “o que Costa quer é ser Primeiro-Ministro”. Passos não quer ser Primeiro-Ministro. Nem sequer concorreram às eleições, nem nada. Além disso, os comunistas dão injecções atrás das orelhas aos velhinhos para eles morrerem. Os comunistas, toda a gente sabe, comem criancinhas ao pequeno-almoço! Ao almoço comem as mães das criancinhas e ao jantar, para não ser indigesto, comem os pais. Depois, se os comunistas estiverem no governo, com quem vão protestar os sindicatos? Ora, a preocupação com os direitos sindicais e laborais dos trabalhadores portugueses, por parte da direita, toca-me profundamente. Descobriram que afinal há sindicatos em Portugal!
            Sabem que mais? O Cavaco vai ter de engolir o sapo. Faça o que fizer, vai ter ou de voltar com a palavra atrás ou simplesmente empossar os inimigos de estado do Cavaquistão no governo. Ou simplesmente, terceira opção, fazer o que faz melhor, ou seja, uma ponta de um corno e o Marcelo que feche a porta, pois depois de ter assassinado o Rio, não lhe falta coragem. Quanto a mim, chega de cavaqueira. Já tenho uma criancinha no bucho, comi uma mãe pelo lanche e agora vou para a sobremesa comer um avô a quem injectei creolina por baixo do sovaco.



quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O PORTUGAL DESCONHECIDO

Ilustração Marco Joel Santos
           A mais que previsível crise de refugiados que varre as imediações do Mare Nostrum deixou-me, devo confessar, em estado de choque. Não pela dimensão, ou pela intensidade de chegada de navios à Europa. Os refugiados sírios, cerca de quatro milhões e meio deles, enchem desde há muito as ruas de Amman, do Cairo ou de Istanbul. A pequena minoria deles que ousa atravessar o Mediterrâneo ou o Bósforo para se aventurarem na Europa são isso mesmo, uma pequena minoria. A juntar aos sírios, há os nigerianos, somalis, sudaneses do sul ou malianos.
            Só no Cairo, e antes desta vaga de refugiados acontecer, já vivem, na Cidade dos Mortos e arredores, cerca de seis milhões de refugiados, entre palestinianos, iraquianos ou libaneses. Convenhamos que numa cidade com vinte e dois milhões, é obra. Na Jordânia, e antes da guerra na vizinha Síria, já viviam um milhão e meio de refugiados iraquianos e palestinianos. Num país com sete milhões de habitantes. De Jerash vi Deerah, a cidade que viu começar a guerra civil síria. Um ano antes desta começar.
            Por tudo isto, a ideia de ter duzentos ou trezentos ou até meio milhão de pessoas a chegar à Europa não me choca muito. Como dizia Harrison Ford nos Salteadores, sou um cientista, nada me choca. Mas é mentira. Há coisas que me chocam profundamente, não amiudadamente, mas assim como que de vez em quando. E choca-me profundamente a enorme campanha feita pelos defensores e pelos detractores dos refugiados. Distancio-me de ambas as posições, porque sou o que sou: um agnóstico que apenas reconhece pessoas – boas e más – e não religiões ou “raças”.
            A Europa, principal culpada e instigadora de uma guerra fraticida que destruiu por completo a parte oriental da Síria e aparenta vir a destruir o resto, não pode sacudir a água do capote. Tem culpas, enormes culpas, como tem culpas, enormes culpas, no que se passa na Ucrânia, na Líbia, na Tunísia e por esse mundo fora. Colhe agora o que semeou, na sua ganância por mercados e produtos. Mas também não pode, neste momento, deixar de filtrar os que nela querem entrar. É bem-vindo quem vem por bem. E o que é isto de vir por bem? Bem, para mim, é qualquer muçulmano que entenda que me estou literalmente cagando para o que disse Maomé. Pronto, é assim, simples e direitinho. Estou-me cagando para o que diz o Corão, como me estou cagando para qualquer fantasia que envolva naves espaciais, ressurreições do mundo dos mortos e demais contos da carochinha – sim, também essas historinhas de fadas que vêm na Bíblia. E conheço-as muito bem, foram a minha escolha para finalizar o curso – Religião e Cultura. Ora assim se evitam problemas futuros. Lembrem-se do local onde estão e tudo correrá bem. Comecem a querer viver de acordo com a Sharia e a coisa corre muito mal.
            Os defensores dos refugiados não entendem que basta que no meio de meio milhão de boas pessoas apareçam meia dúzia de radicais para que a segurança de todos nós esteja em risco. Se já com os nossos é o que é (lembram-se do alto e loiro Brejvik?), não precisamos de mais problemas com maluquinhos que acreditam em homenzinhos verdes como o do TGV de França. É preciso registar, é preciso investigar, é preciso despistar. E temo que nada disto venha a ser feito. Para os defensores dos refugiados, apenas interessa o lado humano. Mas esquecem-se que eu também tenho um lado humano, a minha família tem um lado humano e bem, até eles próprios, apesar de nunca terem precisado de distinções dessas (bom sinal), também têm um lado humano. E estes lados humanos são para preservar na nossa santinha paz de cantinho à beira mar plantado.
            Já os detractores dos refugiados são outra história. Há-os, pelo que me foi dado ver, de dois tipos, que se aliaram numa causa perigosamente comum. Uns são os extremistas religiosos, mormente evangelistas e demais protestantes, mas também bons chefes de família católicos. E há os de extrema-direita – uma fatia considerável da nossa população, cerca de 40%, embora ninguém queira admitir tal facto. Apareceram as mais díspares notícias sobre os refugiados, a maior parte deles vindas de sites religiosos, anti-semitas (os árabes são semitas) ou de extrema-direita. E tudo foi comprado como verdadeiro, quando na realidade nem 10% seja verdade. Até a notícia de que os refugiados traziam telemóveis – como se o telemóvel fosse um aparelho do demo vindo de outro mundo ou simplesmente um artigo de luxo que seria impensável encontrar num país árabe. Desiludam-se, os árabes são malucos por tecnologia, particularmente por telemóveis. Estranhamente parecidos com os portugueses.
            Vêm também com uma conversa de que se não ajudamos os nossos sem-abrigo não podemos ajudar os refugiados. Até percebo a lógica. Se não há para os nossos, não há para os outros. Aparentemente tudo correcto. O problema é quando vemos pessoas que nunca fizeram uma ponta de um corno para ajudar fosse quem fosse, quanto mais um sem-abrigo, falar assim à boca cheia. Se se enchessem de moscas elas não notariam diferença em relação ao que em que costumam pousar.
Depois a conversa de que aqui querem mesquitas e lá não deixam construir igrejas e outras do género. Porra, é-me indiferente ser acordado pela vozinha irritante do muezin a chamar para a oração ou pela merda dos sinos das igrejas que não se calam (e aquelas aldeias que têm o hino de Fátima a tocar a cada hora?). Por mim, era tudo arrasado, e bem razão tinha o velho Karl quando disse que a religião é o ópio do povo. Mas devo dizer que nos países árabes onde estive, os maiores edifícios das grandes cidades são igrejas (cristãs, também católicas, como em Tunis, mas essencialmente coptas, como na Jordânia, Síria ou Egipto). Aqui em Portugal é que só há uma mesquita. Salvo erro.
            No fundo, o que quero dizer com esta lengalenga toda é que quem vier para a Europa deve adoptar plenamente os valores europeus. Conheço mulheres que na Jordânia nunca usaram sequer um véu e que quando foram morar para os EUA começaram a usar burqa. Por outro lado, não são 3500 refugiados que vos vão tirar empregos (para isso temos um milhão de desempregados prontinhos) ou o pão da boca ou até as vossas ridículas crenças em fantasmas e espíritos do além. Quando acabou a guerra colonial levamos com dois milhões de retornados, uns mais esclavagistas que outros, e não se passou nada. Esta gente é mesmo de um Portugal desconhecido…
            Por fim, dizer o seguinte: se a merda que governa a Europa fosse decente, nada disto estaria a acontecer. Como ninguém se mexe para correr com a merda da banheira, agora aguentem que é serviço.
            PS: e sim, a foto do miúdo afogado chocou-me. Podia ser o meu filho ali. Podia ser o vosso. Pensem nisso e não digam mais merda a esse respeito, por favor. Deixem, pelo menos, as pessoas sofrer em paz.


quinta-feira, 23 de julho de 2015

EU, TERRORISTA, ME CONFESSO

Ilustração Marco Joel Santos
            Por vezes, a ideia que nutrimos acerca de determinadas pessoas não é a mais correcta. Isso já sabia e não é necessário recorrer demasiado à capacidade de memória para me lembrar de exemplos. Daqueles que conhecemos pessoalmente, é relativamente fácil discriminar os que são genuinamente como os pensamos ou não. Fazemos a seriação naturalmente, baseada no jogo da confiança ganha ou perdida. Já daqueles que só conhecemos pelos media ou pela sua actividade, é mais difícil distinguir os que nos agradam ou não.
            Durante muitos anos, Miguel Esteves Cardoso foi para mim um referencial de fina ironia no tratamento das mais diversas questões, o que só me fez nutrir uma sincera admiração pela sua forma de estar e de, aparentemente, ser. Tanto que, vendo num qualquer escaparate um dos seus últimos livros, o comprei sem grandes hesitações. O palavrão na capa, admito, fez-me aguçar um pouco mais a curiosidade. Li o livro de forma interessada, sempre esperando aquele registo de humor fino e inteligente, de pura ironia roçando o elegante sarcasmo, com que tantas vezes havia identificado o autor nas saudosas Noites da Má Língua. Em vão. Deparei-me com um livro introspectivo, sim, mas pouco interessante e com um tratamento pouco imaginativo dos pensamentos e alusões do autor. Pensei eu que era apenas uma fase má e que tinha tido o azar de o apanhar num mau momento – e ainda penso assim, pois o momento do livro não era dado a grandes lirismos.
            Os artigos de opinião de Miguel Esteves Cardoso sempre me passaram ao lado. Ou por irrelevância quanto ao que se passa neste mundo ou simplesmente, acredito, por irrelevância para aquilo que eu penso. São coisas diferentes que convém distinguir, e provavelmente a menor das culpas será do autor visado. No entanto, este artigo é diferente. E é diferente não porque me vise particularmente, mas antes pelo exercício de boçalidade estéril a que se entrega MEC. Deixo ao critério de cada um procurar saber se está certo ou errado, pois nem isso é o mais importante.
            O importante é como estas figuras, que amiudadamente nos entram pela vida dentro com as suas opiniões, são seguidas acolitamente por muitos outros seres humanos por aí espalhados, que também eles fazem das palavras de um MEC as suas próprias, que apregoam aos quatro ventos como a mais pura das verdades. Ora, no caso vertente, MEC compara os fumadores e utilizadores de telemóvel das esplanadas com terroristas. É o meu caso, e para muitos milhares de acólitos da igreja Mecana, não só para o MEC.
            Aqui estou, então, para assumir a minha culpa como terrorista. Eu, terrorista, me confesso. É verdade que sou pessoa dada a algum recato e aprecio a calma e pacatez do passar dos dias. Por essa razão, vejo sempre como dúbia a possibilidade de descansar ou descontrair numa esplanada de Verão. Mas MEC, quando quer descontrair, quando quer paz e sossego, vai para uma esplanada de Verão. Note-se, de Verão. Não de Inverno ou de Outono, quando estes sítios são de facto aprazivelmente sossegados e contemplativos – pelo menos os que permanecem abertos – mas sim de Verão, quando estão pejados de locais, turistas, emigrantes veraneantes, moscas, cães abandonados que farejam uma magra refeição e ainda de fumadores e portadores de telemóveis.
            Não sou portador de telemóvel nestas ocasiões. O telemóvel é ferramenta de trabalho e pouco mais. À família não se fala pelo telemóvel, visita-se. Aos amigos não se fala pelo telemóvel, convive-se. Se bem que pode dar jeito para combinar qualquer uma das coisas. Falar ao telemóvel em público, no entanto, não é mais prejudicial que falar simplesmente. Ou seja, se estiver numa esplanada posso estar acompanhado – o mais certo - e naturalmente falo. Por que razão MEC se sente intimidado ou incomodado pelas conversas de telemóvel dos outros é para mim um mistério. Logo se juntou uma trupe por essas redes sociais fora a aventar a possibilidade de se legislar o silêncio em esplanadas de Verão e (não sei bem porquê) transportes públicos. Ou seja, passaram estes locais a ser equiparados, por muita gente, a igrejas, hospitais e tanatórios.
            Quanto a fumar, sim, sou terrorista. Porque fumo. E fumo quando muito raramente me sento numa esplanada. Dantes podia-se fumar em todo o lado, agora não se pode fumar em lado algum que tenha tecto e seja de acesso público. Percebo a lógica e ainda bem que assim é. Quando me perguntam à porta do restaurante se quero ir para “fumadores” ou “não-fumadores”, e onde existe essa possibilidade, escolho sempre “não-fumadores”. Porque estou ali para comer e não para fumar. Para fumar, posso sempre ir à esplanada do restaurante – se a tiver. A menos que o MEC lá esteja. Caso contrário tenho de passar de fininho para não incomodar o silêncio sepulcral requerido pelo senhor e ir fumar para o distrito adjacente, pois a distância entre mesas é insuficiente para o olfacto apurado dos buscadores de paz e sossego.
            É caso para dizer que têm tristes casas, estes buscadores. Pois é lá que encontro, normalmente, a minha paz e o meu sossego. Mas somos todos diferentes, e eu até sou terrorista. Não me preocupa estas pessoas me apelidarem de terrorista. É para o lado que durmo melhor. Preocupa-me a febre restritiva que paira nestas cabeças. Preocupa-me o facto de um dia, querer sair de casa e não conseguir fazê-lo sem infringir meia dúzia de leis. Preocupa-me a saúde financeira das operadoras de redes móveis, quando não se puder falar ao telemóvel. Preocupa-me que as pessoas que não querem um fumador na mesa adjacente vão para as esplanadas de Verão de carro, mas não eléctrico.

            Enfim, preocupa-me que estas pessoas vão para o raio que as parta, porque eu não quero que vão. Porque elas são iguais a mim, e eu igual a elas. Com a diferença de elas não serem terroristas.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

A SUL DO PARAÍSO

Ilustração de Marco Joel Santos
Quando o “não” ganhou no referendo que se realizou na Grécia li e ouvi algumas reacções que me pareceram caídas de um qualquer paraíso cuja percepção se me escapou por um qualquer lapso de raciocínio. Dizia-se que era a vitória da liberdade e da democracia, logo ali, onde ela nasceu.
 Deixem-me esclarecer uma coisa sobre a democracia ateniense (não era democracia em toda a Grécia Clássica, mas sim em Atenas). A democracia ateniense era uma democracia pouco democrática. Votavam apenas homens livres e nascidos em Atenas. Todos os outros – mulheres, estrangeiros e escravos – não votavam. Ou seja, só dez por cento da população de Atenas tinha direito de voto. E mesmo assim, aquilo que se passou na Grécia naquele domingo dia 5 de Julho já havia acontecido em Atenas em tempos muito remotos. Também Dracon, strategos de Atenas, depois de ser eleito, impôs a maior onda de austeridade vista até então, não só em Atenas como em toda a Grécia (o que equivalia a dizer em toda a Europa, pois a Grécia era a Europa, o resto nem paisagem era). Daí o chavão político “medidas draconianas”. Por isso, nada de novo.
Uma semana depois, o próprio governo grego apresenta uma proposta que parecia, depois do não no referendo, absolutamente irreal. Afinal, Tsipras conseguiu transformar uma demonstração de força do povo grego numa demonstração de alinhamento em tudo e mais algum par de botas que Schauble lhe quis enfiar pelo rabo acima. Como sempre disse que iria acontecer inequivocamente. E daqui para a frente, tudo vai correr como é habitual: os gregos a fingir que fazem e a Europa a fingir que não sabe que os gregos não fazem. Tudo na paz dos anjos e mais 82 mil milhões de euros para deitar à fogueira.
Ao contrário de quase toda a gente que escreveu sobre isto, vou focar-me naquilo que ninguém quer saber, mas que toda a gente sabe.
Tsipras e o Syriza são um bando de covardes. Ao contrário do que os seus defensores dizem, ao considerarem aquela malta com os tomates no sítio por enfrentarem Schauble. Não, enfrentar Schauble com a certeza de que vão perder mais uma vez não é coragem, é apenas falta de inteligência. A covardia desta gente consiste numa coisa muito simples: ainda acreditam no Pai Natal. Acreditar que esta UE admite que um governo de esquerda possa governar no Euro é simplesmente ingénuo. Não pode. Apenas dois partidos podem ter governos na UE e esses são a extrema-direita e neoliberalismo. Em que se enquadram os três partidos do arco da governação em Portugal. Não são bons nem são maus, nem os estou a acusar de serem isto ou aquilo. É a realidade.
O Syriza comete o pecado último contra a esquerda europeia, que é o de enfrentar toda esta crise sem a coragem de dar o murro na mesa de forma definitiva e bater com a porta. Sair do Euro e quiçá da UE. Mas isso requer a preparação de um plano B que, por sua vez e manifestamente, requer coragem efectiva. A coragem que, em Portugal, só vejo um partido ter. Não que seja a favor ou contra a permanência de Portugal no Euro. Isso não está em causa (a propósito, sou contra, e sair é quanto antes). O que está em causa é parar de fingir que tudo está bem quando está tudo mal. E isso, nem Syriza nem partido nenhum tem feito. A saída do euro pode ser catastrófica. Ou não. Ninguém sabe, porque nunca aconteceu.
Ora, como pode a saída do euro ser catastrófica para países como Portugal e Grécia, se o próprio Schauble propôs que a Grécia saísse do euro, pusesse as suas contas em ordem e voltasse daqui a uns cinco anos? Bem, se Schauble pensa que um país pode pôr as contas em ordem fora do euro, depois de ter lá estado… se calhar está-nos a escapar alguma coisa aqui. Por outro lado, a proposta de Schauble só pode ser uma de duas coisas: absolutamente revanchista e o supremo castigo para os gregos, se pensa no descalabro financeiro e económico que a saída do euro pode representar. Ou então, o homem é estúpido como uma porta e provavelmente perdeu mais que a capacidade de locomoção no acidente, pois se a Grécia conseguisse melhorar fora do euro, por que razão iria voltar mais tarde…?
Uma saída do euro era a cartada suprema da Grécia, e só poderia ir por aí, se tivesse coragem. Não teve. Nada que me admire muito nestes pseudo-partidos saídos de plataformas disto e daquilo, desde os insatisfeitos aos defensores do caracol. Uma coisa é discutir as coisas entre croquetes e imitações de caviar e outra é pegar o touro pelos cornos. Por isso, a minha opinião é que o Syriza está infestado de uma data de covardes.
O futuro da UE? Não sei. Sei que a Europa é continente da Guerra e do Sangue. Foi aqui que os mais sangrentos conflitos mundiais tiveram lugar. É abusivo pensar que se podem repetir. Mas devemos não esquecer que o principal objectivo da UE foi o de garantir a paz na Europa, ao “orientar” a Alemanha. Com a unificação alemã, passou a ser a Alemanha a “orientar” a UE. Quando a Prússia passou a orientar a Europa, deu-se a segunda guerra continental, a Franco-Prussiana. Quando a Alemanha passou a orientar os eixos coloniais europeus, deu-se a primeira guerra mundial. Quando a Alemanha passou a orientar o “espaço vital” europeu, deu-se a segunda guerra mundial.

E sim, acho que quem deve tem de pagar, mas também quem empresta tem de saber a quem empresta. A Grécia não vai pagar, porque vai desaparecer o pouco que resta da sua economia, e dentro de três anos estaremos todos a assistir a mais uma bancarrota. Dizem que sair do euro agora seria catastrófico para a Grécia. E daqui a três anos? Seria catastrófico porque a dívida está toda em euros, e a moeda que entretanto se arranjaria para circular iria desvalorizar face ao euro, aumentando a dívida todos os anos. Claro que se a Grécia e Portugal e mais alguns que por aí andam saíssem, o Euro iria manter-se forte, não desvalorizaria… Sim, o Pai Natal outra vez… E nós, crentes, sempre dizemos “mas sair era pior”… Pior em quê? Acham que o euro sobrevivia? A forma de reestruturar a dívida é acabar com o euro. Vão ver como as dívidas, de repente, se aligeiram…

terça-feira, 26 de maio de 2015

PROGRAMAÇÃO EM PS++

Ilustração Marco Joel Santos
2015 em Portugal. Quatro anos depois, o resultado que todos sabíamos que teríamos se o país seguisse os caminhos dos “credores”. Um aparte sobre os credores. Quem são os credores? São fundos. Essencialmente, são fundos. Fundos de investimento. Que pagam reformas a pessoas, por exemplo. Entre outras coisas, é verdade, mas uma das coisas que os fundos fazem é pagar reformas a pessoas. Quais pessoas? Essencialmente pessoas que vivem em países sem sistemas que paguem reformas. Simples e eficaz. E assim se explica como alguns andam a trabalhar para outros.
            Quatro anos volvidos, estamos à espera das Legislativas e, naturalmente, do que os partidos têm para nos dizer. Chamam a isso Programas Eleitorais. A arte da programação nunca foi o meu forte. Sempre detestei programar, quer fosse em Pascal, em C++ ou SQL. Nunca percebi para que é que um gestor industrial precisava de aprender a programar. E confirmei que não era necessário, mas – há sempre um mas – a arte de fazer algoritmos por vezes dá jeito. Em teoria, pelo menos.
            O PS apresentou o seu algoritmo. Ainda não é um programa, é apenas um rudimento de um programa. O que lá vem é da responsabilidade exclusiva do PS, não da esquerda. Coisa que dificilmente está a ser entendida. Confundir o PS com a esquerda é como confundir o Mosteiro dos Jerónimos com o Centro Cultural de Belém só porque aparentemente partilham o mesmo espaço. As aparências iludem e as iludências aparudem.
            As iniciativas que o PS decidiu apresentar são de atroz desilusão para quem olhava o partido como uma alternativa à coligação que agora ocupa o lugar de governo do país. As políticas são exactamente as mesmas, e dificilmente um socialista qualquer que o seja pelos ideais reconhecerá qualquer das iniciativas como de cariz socialista. Duas destas iniciativas (acabem lá com a palavra medidas, está mal empregue) são particularmente significativas. A obrigatoriedade de obter uma maioria qualificada de dois terços na AR para aprovar obras públicas (qual o limite do valor da obra que determina esta aprovação?) não passa de uma ponte para um primeiro pacto de regime com a coligação, um dos tais “consensos” de que fala o presidente da República. PS com um olho no burro e outro no cigano, e deixo à imaginação de cada um decidir quem será o burro e quem será o cigano, mas penso que nem burros nem ciganos mereciam tal sorte.
            A segunda iniciativa que destaco é a intenção do PS, caso venha a ser governo, de utilizar 1400 milhões do Fundo de Estabilização da Segurança Social para a reabilitação urbana. Ora, estou farto disto, sinceramente! Já há muitos anos, desde os malfadados governos do actual presidente da República, que não há respeito pelo beneficiário. Mexe-se nos dinheiros descontados por entidades patronais e trabalhadores para assegurar prestações sociais para os mais diversos fins como se fosse dinheiro de impostos. Ainda recentemente, e pela mão da actual ministra das Finanças, foram estes dinheiros absolutamente depenados em perdas com Credit Default Swaps. Outros governos lançaram estes fundos na bolsa para salvar empresas e fundear aquisições de empresas por outras empresas. Aquilo que foi criado para apenas ser movimentado para pagar reformas e subsídios de desemprego, de forma redistributiva, parece ser agora o dinheiro de bolso de qualquer governo. E se fossem brincar com as pilinhas deles, era bem melhor. Com o meu dinheiro é que acho mal. E se o PS acha muito bem mexer no último dos últimos dos dinheiros dos reformados deste país, presentes e futuros, para novamente financiar meia dúzia de amigos de grandes construtoras… Olhem, eu acho mal.
            Muito mais diz o programa do PS. Liberaliza ainda mais, à boa maneira liberal, o “mercado” de trabalho, ignorando totalmente que desde que as leis do trabalho se começaram a liberalizar, ainda no tempo do actual presidente da República, nunca o desemprego parou de subir. Mas como o PS pretende mais emprego, penso que deve querer seguir a política da coligação e arranjar emprego aos portugueses, desde que seja no estrangeiro. Os cortes são para repor, mas de forma gradual e se calhar. Eu até penso que devemos levar a expressão à letra e que o PS deve querer repor cortes e não salários.
            Por sua vez, o PSD vai reagindo com a indignação habitual das suas gentes, sempre ao lado dos bons usos e costumes, e dos pobrezinhos mas honrados. Quer o PSD que o PS sujeite o seu programa à Unidade Técnica para que o povo português saiba que o PS está a prometer flores e vai dar espinhos. Para um partido que foi eleito com as promessas com que foi eleito, nenhuma delas cumpridas, e que nunca teve um programa sujeito a qualquer escrutínio, digamos que é preciso ter não lata, mas um grande bidão na cara. Talvez até um contentor do Porto de Leixões na tromba não seja mal pensado. Mas o PSD aprende, e a coligação também… não é que a ministra das Finanças até já adiou a apresentação de grande parte do programa da coligação para… depois das eleições? Sim, é melhor não prometer nada, é até melhor que nos passem um cheque em branco, porque o nosso trabalho fala por nós. E fala. Não fala é o que imaginam. Mas a capacidade de muita gente de descer à terra e ver a realidade miserável, ao nível do terceiro mundo, em que se encontra este país não é existente. Até a Isabel Jonet, prevendo mudança de ares por S.Bento, agora diz que se calhar a fome em Portugal é alarmante… Pensem nisto.
            Outro sinal do mais puro desnorte que grassa no governo (que já vi que partilham com o PS) é o facto de pôr a ministra das Finanças a falar de um assunto com que nada tem a ver: Segurança Social. A esfera de decisão de uma ministra das Finanças, em Portugal, pode incidir sobre tudo e mais alguma coisa nas decisões do Governo, menos numa: Segurança Social. Os fundos da Segurança Social não fazem tecnicamente e deviam nunca fazer parte do que gere qualquer ministério. A Segurança Social gere os fundos de forma redistributiva, nada mais. Mas sabemos que, tristemente, se faltar dinheiro em qualquer lado, a Segurança Social cobre. Além de imoral é, pela Lei vigente, ilegal. Mas ninguém vai preso, e quem se arrisca a perder milhões da Segurança Social no casino financeiro arrisca-se também a ser ministra das Finanças.

             Em suma: mais do mesmo. Entre PS e PSD a diferença é uma letra, o D. O que quer dizer o D? Não sei, quer-me parecer que PSD deve querer dizer Partido do Seu Dinheiro e PS deve querer dizer Partido dos Seus. Quanto ao CDS, bem, já há muito que não existe, ou pensavam de outra forma? A extrema direita portuguesa foi englobada pelo PSD, nem faz sentido haver um partido de extrema direita em Portugal… Extrema direita no sentido parlamentar, bem entendido…

quarta-feira, 8 de abril de 2015

A PÁSCOA NO ANO DA MORTE DE J.C.

Ilustração Marco Joel Santos
Mesmo durante as festas da Páscoa, as ruas de Jerusalém encontravam-se, àquela hora, desertas. Já havia findado o burburinho das multidões que se arrastavam, em passo lento ou em longas filas, em direcção ao Templo. Às vozes cansadas juntavam-se os barulhos dos animais que acompanhavam os devotos, destinados ao holocausto. O povo de Deus acorria de todas as partes do mundo judaico à cidade santa para a maior festa religiosa de Israel. E desde que Herodes, o Grande, havia reconstruído o Templo, a festa havia ganho redobrada fé.
            Jerusalém não era um sítio grande para se percorrer, mas era uma cidade grande, a maior daquelas partes, repleta de becos e ruas estreitas, alçada na sua perene colina, brilhando com o Templo à vista de todos. Por isso, decidira pôr as mãos à obra bem cedo, logo após a última hora. Tinha muitas casas para visitar, muitos muros para transpor, e muita mercadoria na qual pôr as mãos.
            Decidira evitar as patrulhas romanas. Não que os romanos se interessassem pelo que andava a fazer. Tinham coisas mais prementes a tratar e tratavam delas com eficácia. Ainda poucos dias antes tinham posto as mãos ao Barrabás, um dos líderes dos revoltosos, e preparavam-se para o executar com requintes de crueldade. Aliás, como era hábito nos romanos. Eram extremamente tolerantes para com a religião e a sociedade que conquistavam, mas não toleravam minimamente afrontas à sua autoridade. Para além do mais, os romanos não tinham a sensação de que a Palestina fosse uma terra que verdadeiramente valesse a pena, apenas a conquistaram para completar a sua colecção de costas mediterrânicas. Em todo o caso, poderia topar com alguma patrulha com zelo mínimo e o fizesse passar uma temporada valente nos calabouços do Pretório.
            Decidira também evitar as patrulhas dos guardas do Templo e do Sinédrio, que eram bem mais zelosos que os romanos, particularmente em tempo de Páscoa. E, pelas suas contas, já pouco mais de uma hora faltaria para o nascer do sol. Já lhe doíam as mãos de tanto trabalho, doíam-lhe as pernas de tanto calcorrear e saltear. Mas tinha de o fazer, tinha de o fazer. Até ao nascer do sol.
            Esperava que aquela fosse a última casa a visitar naquela noite. Achava que já havia visitado todos os seus objectivos. Saltou um muro e, furtivamente, abeirou-se de um pequeno cercado onde dormiam os galináceos. Procurou, com o olhar já habituado àquela escuridão medonha, o maior volume e, num gesto rápido e eficaz, que lhe vinha já dos tempos de içar o peixe para o barco no Mar da Galileia, apertou o pescoço ao incauto guarda da capoeira. O enorme galo nem teve tempo de cacarejar como uma pobre galinha. O pescoço estalou imediatamente por entre os dedos de Simão.
            Nunca entendera por que raio o JC decidira mudar-lhe o nome. Gostava tanto do seu nome! Simão era um nome poderoso, que inspirava respeito. E ele era um homem de respeito! Um grande pescador, um bom homem. Rude, talvez, mas afável o suficiente para seguir Aquele que um dia o chamou para as aventuras dos últimos três anos! Ah, boas memórias, uma vida aventurosa que estava prestes a acabar! Nunca se queixou das agruras do caminho poeirento, ou das camas de pedras onde dormiu tantas vezes. Mas admitia que a sua situação actual era realmente deplorável. Um vulgar pilha-galinhas, cheio de dores no corpo, de roupas esfarrapadas de tanto roçar-se pelas paredes ásperas das ruas de Jerusalém, um fugitivo na noite, com uma meta quase impossível, mas que finalmente havia atingido. Não que o consolasse muito, mas pelo menos era prova da sua determinação.
            Transpôs novamente o muro, agora para o caminho poeirento e pedregoso que conduzia ao centro da cidade e às ruas pavimentadas. Dobrando uma esquina, foi abordado de surpresa por um grupo turbulento que, por milagre, havia escapado às patrulhas. Um dos homens, inebriado e com bafo de cerveja barata, atirou-lhe:
            - Tu és um dos que estava com o Nazareno ainda ontem, aqui no monte defronte da cidade!
Foi apanhado de surpresa, mas teve a presença de espírito para retorquir de imediato:
            - Não conheço tal homem, estás enganado. Vai curar a puta da bebedeira!
            Era já a terceira vez que era confrontado com aquela acusação naquela noite. E, no entanto, e de repente, um calafrio percorreu-lhe a espinha. Ficou paralisado de horror perante aquele som fantasmagórico, um som vindo de outra dimensão, um choque completo. O cantar de um galo!
            Foi atrás do som. Correu atrapalhadamente pelas ruas, já pouco importado com as patrulhas. Tinha a certeza de que havia matado todos os galos de Jerusalém! Como era possível que lhe tivesse escapado algum? Mais uma esquina, e vislumbra uma patrulha romana. No meio dos seis guardas, seguia uma figura vestida de branco, de longos cabelos e andar cansado. Ao lado dessa figura, seguia Jesus Cristo. E Jesus parou por um momento, virou-se para Pedro e sorriu-lhe, enquanto mostrava um garboso galo nas suas mãos.

            Pedro não evitou o pensamento: “Podes ser o Filho de Deus, mas agora foste foi um ganda filho da…!”

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

PAPAS GREGAS E BOLOS EUROPEUS

Ilustração Marco Joel Santos

            Não adianta dizer que não sou daqueles que gostam de dizer “eu avisei”. Porque sou e quando tenho de cobrar normalmente não deixo passar a ocasião de “mandar a boca”. Bem, a verdade é que avisei da pouca seriedade e até uma alta taxa de desonestidade intelectual que rodeou a negociação havida entre o Eurogrupo e o novo governo grego.
            Tal como antes deste primeiro e insignificante desfecho, as conclusões que cada facção tirou desta novela grega está toldada pelo radicalismo político. O perigo não está naquilo que se diz, mas sim a quem se diz. E a verdade é que ninguém está a falar para os políticos, nem para comentadores mais ou menos políticos. Está-se a falar para o povo. E o povo, esse, e como bem sabemos, emprenha facilmente pelos ouvidos e dá à luz, regularmente, nados-mortos chamados governos. Adiante, basta de tristezas.
            A direita portuguesa congratula-se com o resultado das negociações porque tudo o que a Grécia estava obrigada a fazer se mantém com este novo governo. Alegam que apenas as palavras mudaram, de austeridade para reformas estruturais e de Troika para instituições. A esquerda portuguesa que se identifica com o Syriza reclama vitória porque este novo governo grego acabou com a austeridade e com a Troika.
            Nenhuma destas facções tem razões para ter ficado satisfeita, na verdade. E por razões óbvias que não custa referir e vislumbrar.
            A visão da manutenção da austeridade é parcialmente verdadeira, mas não de forma cabal e inegável. Antes de mais, porque uma das mais importantes imposições da Troika caiu mesmo, a meta do saldo primário, que teria de ser 3% este ano e 4,5% em 2016. Ficou-se por um valor de 1,5% para este ano e provavelmente manter a mesma meta indefinidamente. O que quer isto dizer? Simples, a Grécia obteve uma estagnação da austeridade, e alguma margem para medidas que vão no sentido do crescimento económico e não apenas da contracção do consumo com vista a pagamentos de dívida. Na prática, a Grécia fica obrigada a pagar a dívida com 1,5% do saldo primário, e não 3% nem 4,5%, como previsto anteriormente, ou seja, se conseguir crescer no futuro, a Grécia conseguirá folga para investimento. No fundo, atingiu, parcialmente, o seu grande objectivo, que, relembro, era o de pagar a dívida conforme o seu crescimento económico. Não conseguiu exactamente isso, mas o resultado líquido pode ser muito parecido.
            Por outro lado, as medidas de austeridade que se mantêm no acordo mudaram o alvo. Ao invés de incidir na descida de salários, passam a incidir na obtenção de impostos. Pode parecer uma medida simples, mas não é, face à postura omissa dos empresários gregos em termos fiscais. A supressão de empregos também passou à eficiência do aparelho de Estado. Tarefa ainda mais hercúlea, dada a corrupção que grassa no aparelho estatal grego. No papel, parece tudo bem. No papel.
            A visão do fim da austeridade é igualmente insuficiente. Há que lembrar que a Grécia se compromete a não parar as privatizações em curso – que são muitas e estratégicas, mormente nos transportes. O governo grego aquiesceu em implementar uma reforma do mercado laboral que siga as melhores práticas europeias, ou seja, vai efectivamente flexibilizar o mercado de trabalho. Eu não gosto destas expressões, porque o trabalho não é um mercado e não existe flexibilização. O que existe, segundo as melhores práticas europeias, é a precarização do emprego. Ponto.
            Ainda no acordo aparecem os célebres cortes, disfarçados de “racionalização de custos”, em áreas como a saúde, a educação ou a justiça. Não é difícil, teoricamente, cortar custos no sistema grego, uma vez que a sua ineficiência é já de si garantia que a poupança é possível sem haver grandes mudanças estruturais. O problema é, lá como cá, a corrupção, grande e pequena, que grassa, e não será nada fácil mudar as mentalidades, mesmo que se controle a corrupção. Por isso, é provável que estas poupanças se possam vir a reflectir em medidas como a execrável perda de direito de acesso ao sistema de saúde por quem esteja desempregado há mais de três meses.
            É triste, por esta e muito mais razões, que de ambos os lados se assista ao espectáculo a que se assistiu nos últimos dias em Portugal. O país extremou-se, e devo dizer que nunca vi tantos bloquistas nem tantos defensores da austeridade como agora. A situação, como referi, não agradou nem a um lado nem a outro. Por razões igualmente simples.
            Este desenlace não agradou à direita porque, independentemente das conclusões económicas, o grande objectivo era ver uma Grécia esmagada em pleno Eurogrupo. Isso não aconteceu, e não aconteceu porque o povo pode ser estúpido, mas nem sempre é obtuso. O povo português viu um ministro grego negociar com o Eurogrupo, ou seja, com os seus pares, seus iguais, enquanto se lembra das tristes visitas de funcionários boys da Troika, a mandar e desmandar quando aterravam na Portela. Nem esquecerá tão cedo a postura de poodle abanando o rabo e com a língua de fora da nossa ministra das finanças, mostrada em montra de concurso canino pelo senhor Schauble. Isso conta muito, mas mesmo muito, e isso é uma coisa que a direita europeia não entende desde Churchill: o orgulho nacional consegue apagar muita fome. Por outro lado, a Grécia obteve algo. Se calhar, só obteve 5% do que inicialmente apregoava querer conseguir. Mas 1% de melhoria seria muito bem-vinda por qualquer português, nesta altura…
            A esquerda não se sentiu satisfeita porque simplesmente os seus sonhos ruíram por terra. Aquilo que o Bloco de Esquerda poderia capitalizar à custa da mudança radical na Europa e na sua relação com os Estados não se concretizará porque a Europa não mudou nada. O que mudou foi a Grécia, e não conseguiu tudo o que queria. Na verdade, vamos mesmo assistir ao ocaso destas correntes de esquerda nas próximas eleições. Por outro lado, muita gente desta esquerda mais ou menos caviar ainda não percebeu que a Europa não se rege minimamente pelos seus valores, nem por valores de esquerda, sejam eles quais forem. E que só poderá haver mudança nacional, nunca uma mudança europeia. A Europa não mudará, a menos que se acabe de vez. Entendam isso e facilmente passarão a viver de bem com os ideais de esquerda.
            A insignificância deste desenlace é óbvia. A Europa está convencida que a Grécia vai continuar a cumprir um grande programa de austeridade, que tem por objectivo único o eclipse de qualquer interesse geopolítico da Grécia como potencial económico nacional, mas antes transformar a Grécia numa pequena plataforma giratória e logística para as operações das grandes empresas e lobbys no leste da futura Europa que inclui as ex-Repúblicas Soviéticas. Como a Monsanto está a adquirir a Ucrânia, por exemplo. Por outro lado, a Grécia não vai cumprir com nada do que acordou, vai disfarçar e olhar para o lado, travar o mais que pode neste caminho de destruição da sua economia e ameaçar, as vezes que achar razoável, com a saída do Euro e o provável fim do mesmo.
            E toda a gente vai assobiar para o lado. Cá estaremos para ver, nós, os pacóvios do costume. Com papas e bolos se enganam os tolos.


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

PANINHOS QUENTES EM COSTAS RASGADAS

Ilustração Marco Joel Santos

            A diferença entre um Junkers e um Juncker é um c e um s. Assim à vista desarmada. C de corrupto e s de salafrário. É evidente que um Junkers aquece água, trata-se de uma marca de esquentadores bastante conceituada, um “made in Germany”, como se quer nestes produtos industriais. Não acreditem em nada disto, um Junkers é apenas um Vulcano com outra etiqueta e são todos feitos ali em Cacia. Um Juncker é bem diferente, é um burocrata oriundo do Luxemburgo, aquele país que vive à custa do dinheiro dos outros países, neste particular bem acompanhado regionalmente, aliás. Quem me souber dizer qual o grande produto de exportação luxemburguesa leva um brinde.
            A semelhança entre os dois é mais que o nome. Um produz água quente, o outro produz paninhos quentes. Juncker parece ter tido uma epifania, depois de ter sido primeiro-ministro do Luxemburgo, acumulando a pasta das Finanças, ter presidido ao Conselho Europeu e ter tido grande influência no Eurogrupo. Evidentemente que o facto de ter perdido a oportunidade de prolongar o seu reinado no Luxemburgo nada terá tido que ver com o escândalo financeiro em que se viu envolvido, e nada o faz parar, sendo agora o Presidente da Comissão Europeia, lugar burocrático europeu sem influência legislativa mas com belo efeito de jarra, que se encontrava vago há dez anos. Este personagem veio afirmar que a Troika pecou contra a dignidade dos povos.
            Isto levava-me tão longe… mas adiante.
            Antes de mais, quem é a famosa Troika? É um grupo de instituições que integra a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. Ora, se assim é a Troika é, quando não mais, dois terços União Europeia. É por demais interessante verificar que um dos senhores que mandava na União Europeia venha agora falar dos excessos da Troika, quando ele próprio a terá orientado em grande medida. Do FMI estamos conversados, é aquele fundo que está a transformar a Ucrânia em duas regiões distintas, a República da Monsanto e o Donbass.
            Prosseguindo, imaginemos que a troika, de facto, atentou contra a dignidade dos povos. Qual a situação mais indigna que podemos imaginar? Muitas, com certeza, mas a mim ocorrem-me assim de repente, duas: a indignidade do Holocausto e a indignidade da Escravatura. Sim, já sei que as comparações são relativas, mas é apenas uma analogia. Imagino, por exemplo, o africano vergado sobre um tronco numa qualquer fazenda norte-americana, ou mina sul-americana, ou roça africana, a levar chicotadas nas costas. E agora imaginemos que, depois de ter as costas desfeitas pelos golpes de chicote, o senhor do escravo se lhe chega aos ouvidos e murmura-lhe: “Pequei contra a tua dignidade”.
            Mas agora imaginemos que o escravo se dirige ao amo e lhe refere que o seu amo deve estar doido e que está a ser muito infeliz nas suas palavras, pois nunca por nunca sentiu que a sua dignidade foi sequer ameaçada, e não é por ter as costelas à mostra e se estar a esvair em sangue que alguma vez duvidou da justeza do castigo. Não parece ter sido o que fez o nosso infeliz primeiro-ministro, mais o seu governo e o seu partido?
            Não, nem por sombras. As costelas à mostra por entre os rasgões na pele e na carne não são dele. São nossas. O nosso povo foi alvo dos pecados da Troika, mas todos nos devemos lembrar que os pecados deste governo são maiores do que os da troika, pois era para além dela que o governo queria ir e foi. Num país devastado, com um sistema de justiça destruído por uma louca, um sistema de saúde devastado por um monstro funcionário dos Seguros de Saúde (que muitos diziam ser o melhor ministro deste governo), em que a probabilidade de ser atendido numa urgência em tempo útil é tão remota como a de o Sporting ser campeão, um sistema educativo entregue à anarquia, à mercê de um mercenário que só quer entregar o ensino a privados, quem é que, afinal, tem as costas ensanguentadas?
            Não é o coelho, nem o seu pseudo-governo, nem o seu partido de extrema-direita que sofre. Esses estão bem. Até conseguem ser os únicos assalariados com aumentos reais de vencimento em três anos de misérias salariais. O escravo somos nós, não são eles. Eles são apenas os capatazes da fazenda, e a Troika é apenas o chicote. O senhor da fazenda é o Schauble. O gajo da cadeira de rodas, um deficiente rancoroso de merda, que para além de deficiente ainda é portador de deficiência, e que não se lembra que a Europa sempre perdeu com a presença do seu país xenófobo e racista no seu seio. O país que começou as guerras mais devastadoras que alguma vez o mundo já viu, o país que foi humilhado pelo resto do Mundo que, num gesto de magnanimidade, o ajudou a erguer-se das mais tenebrosas sombras ideológicas e das cinzas físicas. As feridas físicas desapareceram. O resto permanece. Não confundo, no entanto, a Alemanha com os alemães. Mas porque raio havemos nós de confundir a Grécia com os gregos? E porque razão hei-de eu dizer mal a torto e a direito dos gregos, que nunca fizeram mal a ninguém, e hei-de reverenciar os alemães, o povo mais genocida da História? Não faria mais sentido odiar os alemães? Bem, seja como for, não os odeio, apenas tenho asco pelo que o seu país representa.
             Quanto ao Junckers, os seus paninhos quentes a mim fazem pouco efeito. Mas pelo menos, não lhes ponha sal.
A Europa em contagem decrescente.

            

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A TRAGÉDIA GREGA

Ilustração Marco Joel Santos

Desgostam-me estes actos a que estamos sujeitos, por parte de uma certa comunicação social nojenta que temos de tolerar, que mais não procura que denegrir aqueles que eles próprios acham nojentos. O governo grego está entre os nojentos eleitos pelas comunicações sociais neo-liberal e fascista que, num dado momento no tempo, que é agora, acharam os seus objectivos alinhados. Igualmente me desgosta a comunicação social de alguns sectores esquerdistas que encaram o mesmo governo grego como o salvador de uma Europa moribunda.
            Na realidade, penso que nenhuma destas correntes tem sequer razão para existir.
            Os comentadores de direita sentem-se ameaçados por algo que não conhecem, mas que também não desejam conhecer. Os comentadores de esquerda passam por cima de um facto que deviam conhecer, mas que fazem por esquecer, quando tanto se esforçaram por o recordar: a Grécia está de rastos, não só e apenas pelo resultado da austeridade cega a que foi sujeita, mas também pelas irresponsáveis políticas anteriores por parte dos principais actores políticos de então, os socialistas e os de centro-direita (já não sei que nome hei-de chamar a estes bois, pois sociais-democratas já há muito não são).
            Não há milagres, penso que todos já percebemos isso. A única proposta realista que vejo por aí a circular é mesmo a do nosso PCP, que quer discutir e preparar uma possível saída de Portugal da zona euro. É um cenário que, agrade ou não a quem quer que seja, é possível e, em face dos acontecimentos mais ou menos graves que se podem vir a desenrolar nos próximos dias e semanas, tem um grau de probabilidade que não pode ser menosprezado. Tudo o resto ou são tresloucados ataques à memória grega e ao seu papel na Europa ou então radicalizações que só fazem sentido como ponto de partida para as cedências durante uma negociação.
            O problema parece ser que todos têm medo do que possa acontecer com a Grécia. Os acólitos do Governo Alemão (e por conseguinte, de Passos Coelho) têm um imenso medo que o Syriza consiga melhorar a condição grega porque isso desautoriza – em absolutamente TUDO – o governo português (aliás, como o espanhol, o italiano e outros mais, mormente o alemão). Além disso, seria a esquerda portuguesa (a extrema esquerda, o BE e o PCP) a capitalizar nas urnas os possíveis sucessos do Syriza, o que poderia inviabilizar aquele que agora parece ser o grande sonho dos socialistas e dos de centro-direita e extrema-direita (PS, PSD e CDS), um gigantesco “consenso” chamado Bloco Central.
            Por outro lado, muita gente dentro de uma certa esquerda pouco popular mas bastante instruída teme o fracasso do Syriza pelas mesmas razões, ou pelas razões inversas: a legitimidade cada vez maior das políticas de austeridade e a impossibilidade de deter o seu próprio ocaso eleitoral.
            No meio disto tudo, está, afinal, a Grécia. Um país. Não é um continente, nem uma federação de países, é apenas um país. Mas que faz parte de um projecto maior, o europeu. É triste vermos alguns tristes comentadores politiqueiros denegrirem todo um povo apenas porque os seus interesses materiais e políticos estão em causa. A esses, devíamos apenas ignorar, porque a liberdade de expressão lhes dá o poder de opinar.
            A Grécia é o berço da civilização europeia. Foi quem deu nome à Europa. Esqueçam a Democracia, isso só surgiu depois, em Atenas. Primeiro surgiu a própria designação do continente, e foram os gregos que a inventaram.
            Conta a lenda que Europa era uma princesa de rara beleza oriunda do Levante, da cidade de Tiro, que era, à altura, governada por seu pai, Agenor. A moça seria tão bela que Zeus lhe apareceu sob a forma de touro branco e a terá iludido a montar o seu dorso, após o que a terá raptado, levando-a para a ilha de Creta, terra natal de Zeus. Europa terá ficado tão apaixonada por Zeus que terá esquecido a sua forma de touro e, ainda antes de este ter assumido a sua forma natural, se lhe teria entregado, daí surgindo o famoso Minotauro. Mais tarde, teriam tido mais dois filhos, um dos quais Minos, o lendário rei de Creta.
            Esta lenda era contada na tradição oral grega ainda os outros europeus nem sequer existiam. Relembremos que a Europa como a conhecemos foi formada essencialmente depois das Invasões Bárbaras, mormente o centro da Europa. Apenas romanos, etruscos e algumas tribos celtas por aqui andavam e já os gregos tinham escrito a Odisseia, a Ilíada e mais obras literárias de fino recorte poético. Também inventaram a tragédia e a comédia. E a sátira.
            Independentemente das raízes culturais gregas, muito ligadas ao que os Dórios encontraram das civilizações egípcia, minóica e micénica, a questão é que não se pode, não se deve, nunca, menosprezar o contributo de um povo para a História universal. Seja qual for o povo, pois todos eles foram importantes, em dada altura, para o desenrolar dos acontecimentos. Desprezar a herança grega não é só desprezar um povo e sua história, é desprezar a História Universal e em particular a História Europeia. Que isso aconteça pelo mais fútil dos motivos, como o de ser director de um jornal de extrema-direita, é ainda pior.

            Pelo enorme respeito que me merece o povo grego e a sua extraordinária herança histórica com que nem portugueses nem espanhóis nem italianos sequer, e muito menos franceses ou alemães, podem sequer sonhar, desejo apenas que o Syriza consiga com que esse extraordinário povo saia da sua miséria actual. Porque, se é bem verdade que devem ser os gregos que devem pagar as consequências do seu acto político de escolher o Syriza para governar, e essas consequências podem ser impostas pela Europa… o que mais lhes podem fazer? Enviá-los para Auschwitz e Birkenau?

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O CAVALO DO MAOMÉ VOAVA

Ilustração Marco Joel Santos

            Decorrendo do atentado ao Charlie Hebdo, nunca por nunca se terá falado tanto de religião como nestes últimos tempos. Exceptuando talvez a Idade Média, bem entendido. Interesso-me desde há muito pelo fenómeno religioso, o que me levou a estudar o assunto e concluir a licenciatura em História com o “major” em Religião e Cultura. E se há quem não entenda a relação entre as duas vertentes, então não vive neste mundo.
            Há quem diga que tudo o que se faz é política. Eu digo que se faz por causa da religião. Ou ausência dela, o que estranhamente se assemelha cada vez mais a uma nova religião que, antes de atingir o zénite, já decaiu. Vivemos na nova era religiosa, a era das experiências religiosas pessoais, a era das fés não organizadas que tanto horroriza tanto os ateus como os religiosos. Contudo, o meu interesse pela religião é puramente académico e de alguma forma social, pois rejeito a religião organizada e sinceramente não quero gastar dinheiro em drogas de segunda para ter uma epifania religiosa universo-pessoal ao estilo americano nativo.
            Tendo estas premissas desde já aclaradas, escrevo agora sobre a religião organizada. As pessoas são livres, nesta sociedade a que convencionamos chamar “ocidental”, mas que no fundo não passa da condescendente, vetusta e levemente passada de prazo cultura europeia de cariz judaico-cristão, de professar a religião que muito bem entenderem. Para os agnósticos, laicos ou ateus, seja de que forma se refiram aos que se estão defecando para as religiões, no entanto, não deixa de ser estranha a experiência religiosa, particularmente entender os mitos cosmológicos ou os factos fundadores da Fé.
            A nossa sociedade europeia é, como já referi, de cariz judaico-cristão. Convenhamos que, sendo provavelmente a religião mais numerosa do mundo inteiro, desde que os chineses não se tornem hindus ou os indianos se tornem confucionistas, é também a religião ou continuum religioso mais difícil de compreender. Isto porque acreditar que uma senhora engravidou num sonho de um anjinho e se manteve virgem, e com isto tudo o marido ainda aguentou a família, que uma estrelinha no céu estava por cima do local onde estava o puto daí nascido, puto esse que depois de inspirar Marx e Engels se deixou crucificar para ressuscitar ao terceiro dia e melhor ainda, ascender aos céus quarenta dias depois… Nada mau.
            É verdade que muitas figuras fundadoras de diversas religiões são figuras reais da História. Buda, Jina, Confúcio, Zoroastro, Abraão, José (não o pai de Jesus) e provavelmente Moisés, ou Maomé, por exemplo, são pessoas que existiram efectivamente. Já Cristo, apesar das imensas pressões para que se diga o contrário, não tem uma existência documentada historicamente, a não ser a palavra de honra de uns três ou quatro supostos apóstolos cujos testemunhos foram transcritos entre cem a trezentos anos depois da suposta crucificação. Método de execução que, ao contrário do que se quer fazer crer, era extremamente comum nas províncias romanas e mesmo no Lácio e Roma. A beleza do mito cristão é, no entanto, indescritivelmente prática. Como não há registos independentes que documentem a existência de Cristo, a veracidade da história provar-se-ia se descobríssemos um corpo. Mas o facto de ninguém ter descoberto um corpo prova que a história é verdadeira, pois Cristo subiu aos céus com o corpo. É a chamada pescadinha de rabo no corpo.
            O islamismo aceita tudo o que vem do judaísmo e do cristianismo, mas acrescenta-lhe Maomé e os seus delírios esquizofrénicos. Bem, assim seriam consideradas as famosas conversas com Deus, ou Allah, assim chamado nos tempos idos de Moisés, quando Deus se terá anunciado ao profeta como “Eu sou Aquele que é”, ou seja, Allah. Como todos somos porque somos o que somos, Deus assume aqui a sua faceta de La Palisse em grande estilo de sarça ardente e voz grossa. Maomé sonhava tantas vezes com Allah que temo que o pobre coitado tenha inventado a SPA e os direitos de autor em consequência. E Maomé, apesar de ser uma pessoa efectivamente real, pregava a paz mas fazia a guerra e foi mais um que subiu aos céus com corpo e tudo, e se Cristo o teria feito em Jerusalém, Maomé não era homem para menos e fez o mesmo no mesmo local. Apesar de ter morrido em Medina, uns bons kms a sul.
            O islamismo prega a paz, mas não é menos verdade que em cem anos conquistou à lei da espada meio mundo conhecido. E se é bem verdade que períodos houve em que a liberdade religiosa era garantida pelo Califado, e não será demais lembrar os tempos da Catedocracia judaica, de Maimónides e das Academias, precisamente sediadas nas Babilónias – Bagdade, sede do Califado e Cairo, um pólo islâmico importante, onde fixou capital, mais tarde, o próprio Saladino, também é verdade que a tradição oral veio endurecer paulatinamente as posições políticas do Islão, e a imposição islâmica não é nenhuma ficção na actualidade.
            Ao patrocinarmos (Ocidente) o abate dos regimes laicos de alguns países islâmicos, como a Líbia, a Tunísia, o Egipto e a Síria, antes já precedidos por Líbano e Turquia, patrocinamos igualmente a prévia fuga de clérigos radicais destes países, onde eram perseguidos ou ignorados (para eles é igualmente atroz) para a tal Europa cândida e multiculturalista, tão segura da sua identidade que ingenuamente recebeu todos estes asilados políticos que subterraneamente exercem a sua influência junto das comunidades emigrantes. Ao mesmo tempo, com a eclosão da Primavera Árabe, que na realidade não passou de um gigantesco conjunto de golpes de Estado perpetrados pelo tal Islão radical, deixamos que se instalassem no poder desses países os tão famigerados fundamentalistas. Com os resultados óbvios, como se vê pelo Estado Islâmico.
            A verdade é que todos dizem que não devemos confundir o fundamentalismo com o radicalismo, não devemos confundir islâmicos com islamitas. Obviamente, o politicamente correcto que ninguém em seu perfeito juízo pensa e muito menos pratica. As Cruzadas não foram feitas por todos os cristãos, mas foram feitas pelos Cristãos. Os judeus europeus não foram aniquilados por todos os alemães, mas foram sujeitos ao holocausto pelos Alemães. A Ibéria não foi invadida por todos os árabes, mas foi invadida pelos Árabes. Os arménios não foram massacrados por todos os turcos, mas foram-no pelos Turcos. Os sérvios não foram aniquilados por todos os croatas, mas foram aniquilados pelos Croatas. Por isso, é ingénuo quem diz que isto não é uma guerra motivada pela religião, ou pelo choque de culturas, porque é. E não tenham dúvidas que provavelmente, em caso de guerra aberta, as populações seguem quem conhecem, não seguem os inimigos do outro lado da fronteira.
            Quanto ao Charlie Hebdo, é um pasquim de extrema-direita que nunca me foi particularmente simpático. Não me chocou a reacção, chocou-me a execução. Eu não sou Charlie Hebdo, porque sou pela liberdade de expressão, e liberdade de expressão é dizer o que se passa, no caso da imprensa, em todas as direcções. Quando é só numa, além de tudo, é monótono.

            Por fim, a figura ou símbolo de Maomé inspira-me, como a de Cristo ou Buda, todo o respeito, apesar das brincadeiras acima retratadas. Mas estou-me literalmente cagando para o que pensam os islâmicos ou islamitas ou o que quiserem chamar a parte da sociedade dos países islâmicos, por quem tenho uma enorme ternura e afecto, acerca do seu sagrado Maomé, e eles deviam estar a cagar-se para o que eu penso – mas não estão. Para mim é apenas mais uma figura histórica, o primeiro Califa que não se sabe muito bem em que genro delegou o poder à hora da morte – e possivelmente antes do delírio final da elevação do corpo aos céus e da fantástica viagem de Medina a Jerusalém num cavalo voador que lerpou depois de lá chegar, uma história inspiradora (porra, nós também temos o Adamastor e o D.Sebastião). Naquele tempo, está já provado que o ópio era da pesada e não devia ser fumado conjuntamente com o consumo de bebidas alcoólicas…