sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

ATON, O CORPO DE RÁ

Ilustração Marco Joel Santos


Trabalho escrito para a disciplina de Cultura e Mitologias na Antiguidade, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião

A reforma atoniana prefigura, de facto, uma viragem no rumo religioso egípcio. Tida por muitos como um delírio mais ou menos consciente de um jovem rei – Amen-Hotep IV, que mudou o seu nome para Akhenaton, precisamente em honra do deus Aton, terá, no entanto, tido consequências políticas, religiosas e artísticas para além do seio do faraó, sua família e sua corte. O Hino a Aton é, sem dúvida, uma descrição viva e pungente de um deus que, ao contrário de outros deuses egípcios, parecia ter exclusivamente qualidades vivificantes, sendo o deus da luz, o Disco Solar.

O Hino começa com um parágrafo quase completamente descritivo acerca da essência de Aton, “Apareceste belo no horizonte do céu, Ó Aton vivo, princípio da vida!”. A frase é mais explícita que ambígua, afirma a beleza do disco solar, mas também a sua vida aparentemente eterna, usada, por sua vez, para criar a vida. É o princípio criador, que até aí era premissa de Amon, o Escondido, o todo-poderoso deus de Tebas. Segundo diversas cosmogonias, incluindo a de Heliópolis e de Mênfis, esta teria sido a missão de Atum, o deus primordial, transmutado frequentemente em Rê, divindade suprema da adoração solar, associado mais tarde a Amon. Uma frase importante é: “Como és Ré, chegas até ao extremo de todos os países; une-los para o teu filho amado.”. Inequivocamente, o Hino associa, desde logo, Aton a Rê. Christian Jacq, por exemplo, defende que esta associação é primordial para a compreensão do pensamento de Akhenaton. Este não se limitou a inventar uma nova divindade, antes a transmutou. Na verdade, tanto Aton como Rê eram deuses adorados no Egipto desde os primórdios, e ambos associados ao Sol. Jacq acredita que Akhenaton adorava Aton como o Corpo de Rê, que permanecia abstracto como Deus-Sol, enquanto Aton era a face visível desse princípio abstracto (embora Rê fosse representado frequentemente em formas antropomórficas diversas – Rê Horaktli, Rê-Hórus, Khepra – com forma de escaravelho). Por outro lado, a união de Aton ao seu filho (Akhenaton, ele próprio Aton encarnado) revela-nos o carácter quase pessoal deste culto, o que ajuda a perceber o seu desaparecimento após a morte de Akhenaton.

Prosseguindo no Hino, a evocação da noite revela-nos a vida sem Aton. Que não mais é vida, mas antes a morte:”Quando desapareces no horizonte ocidental, a terra fica como morta, nas trevas.”. Como culto de luz, de cor e vida, o culto de Aton previa a noite como um período de morte. Aliás, o próprio Rê, ou o seu disco, Aton, não tinha uma passagem pelo firmamento plena de poderes. Começava tímido, pela manhã, apresentava-se pujante ao meio-dia, e envelhecia e morria todos os dias no crepúsculo. Apesar de toda a alegria em volta do culto solar, não conseguiu Akhenaton descartar a ideia da morte egípcia, seguida de ressurreição cósmica. Aliás, uma ideia recorrente nas cosmogonias egípcias, sendo Osíris o seu representante máximo. Só que Osíris era o deus do mundo subterrâneo, Aton era o gerador de vida.

Mais à frente no Hino, são explicitadas as capacidades criadoras de Aton, que não se ficam pela natureza exterior ao homem: “Criador da semente na mulher, tu que produzes o sémen no homem, (…)”. É evidente a exaltação do carácter criador, não só do princípio dos tempos, mas também da continuação dos mesmos, de Aton. Aliás, a criação primordial é imediatamente relevada de seguida: “Criaste a terra segundo o teu desejo, quando estavas só, (…)”. Esta é uma das mais controversas afirmações do Hino. Se é certo que remete à ideia de monoteísmo, a verdade pode ser diversa. Já referi que, por exemplo, Jacq não considera o Atonismo um monoteísmo. É certo que Aton estava só no princípio da criação – tomando o lugar de Atum, o criador primordial até aí. Mas não se deve depreender que tenha, segundo a cosmogonia atoniana, permanecido só. Mais não fosse, a afirmação anterior “Como és Ré, chegas até ao extremo de todos os países;” remete-nos igualmente para a adoração de Rê através do seu disco solar, expressão da sua glória. Aliás, partir do princípio que os egípcios eram politeístas era também errado, uma vez que o egípcio não distinguia o sagrado sob essa dimensão. Deus era uno, e no entanto, Conjunto. Deus era representado por diversas formas, e não se pode falar verdadeiramente de uma diversidade enorme de deuses, mas antes de um conhecimento de Deus sob diversas formas. Conhecimento e não Fé. O egípcio experimentava o sagrado, não se limitava a acreditar nele. Por isso a questão do politeísmo é uma falsa questão, como tão bem refere Jacq. Tal como a do monoteísmo no culto de Aton. Basta atentar nos nomes das filhas de Akhenaton, como Ankh-sun-Amon (relativa a Amon) ou Neferneferurê, relativa a Rê. O próprio Akhenaton tinha como título inscrito em tijolos para sua protecção após a morte Osíris-Nefer-khepuré-Ré, ou seja, Osíris associado a Rê, o que, segundo Jacq, não tem nada de herético, já que Akhenaton assim demonstra a sua apetência de um deus ressuscitado (Osíris), ao mesmo tempo que é o próprio deus-sol encarnada (Aton, mas também Rê), mas mostra inequivocamente o carácter flexível do Atonismo e não a imposição do Deus Único Solar.

Como é sabido, o Nilo representa a vida do Egipto. Ele próprio foi divinizado. O Hino a Aton acrescenta: “Criaste um Nilo no mundo inferior.”. Nada da religião antiga é descartado, ou seja, o próprio Nilo passa a ser criação de Aton. Isto demonstra também a dinâmica política do atonismo, ao associar definitivamente os símbolos nacionais ao seu culto. Nada foi deixado ao acaso. A não ser o carácter iniciático do atonismo, o que nada tem de extraordinário – o culto osírico era, nesta altura, também iniciático e não de massas – o que inexoravelmente o fez desaparecer. Dependia do Aton encarnado, e esse era indubitavelmente Akhenaton, na sua cidade de Akhentaton:”Estás no meu coração e não existe outro que te conheça, à excepção do teu filho Neferkheperuré Uaenré. (atente-se no título e na devoção extrema de Akhenaton a Ré). Akhenaton era doente, acabou por morrer relativamente jovem. E Aton não voltou a encarnar.


Bibliografia:

JACQ, Christian – Nefertiti e Akhenaton. Lisboa: Bertrand Editora, imp. Março 2001. 2ª Edição, ISBN 972-25-1130-0

TAVARES, António A. – Civilizações Pré-Clássicas. Lisboa: Universidade Aberta, 1995. 1ªEdição, ISBN 972-674-141-6

SALES, José das Candeias – As divindades egípcias. Uma chave para a compreensão do Egipto antigo. Lisboa: Editorial Estampa, 1999.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O FIM DO MUNDO VISTO DAQUI

Ilustração Marco Joel Santos



O mundo acaba daqui a três dias. Segundo a profecia maia. Não querendo tirar valor a uma civilização que atingiu um grande nível cultural e de genocídio, permitam-me duvidar da profecia. Não porque não pense que um dia destes isto acabe mesmo, mas antes porque isto de profecias escritas em pedra tem o que se lhe diga. Se fosse eu a escrever uma profecia do fim do mundo, escrevia em papel, coisa telegráfica, tipo “dia x do mês y do ano coiso, isto explode e vamos todos com os porcos”. Ora, o artista maia (foi um ou dois, não foram os maias todos, como bem frisou o Eça) que escreveu aquela profecia utilizou a pedra. Escrever na pedra nem é difícil, e quem se lembra das ardósias da escola sabe-o. Mas gravar na pedra é difícil como o caraças. O gajo teve todo o tempo do mundo para inventar o que quisesse!

Bem, em rigor, não é uma profecia maia. É apenas o fim do calendário maia. Ou seja, pode não ser o fim do mundo. Pode ser apenas um fim de ciclo, um fim de linha ou o fim da pedra. O artista pode ter gravado aquilo com caracteres grandes demais e depois não teve pedra para continuar. Por outro lado, há que compreender que, para os Maias, o fim do mundo já veio há muito e terá sido pouco depois do desembarque de Cortés no México. Ora, se não conseguiram prever o fim deles próprios, porque haveriam de saber prever o fim dos outros? Ou se calhar é só vingança.

Seja como for, não será um exercício macabro demais imaginar o fim do mundo no dia 21. Como será? Há quem diga que a Terra vai chocar com o planeta Nibiru. Ora a Terra chocar com um gabiru não seria nada demais. Há por aí muitos gabirus. E se for chocar com um canguru também não é grande proeza, mas tanto num caso como no outro só seria o fim do mundo do respectivo gabiru ou canguru chocante. Agora Nibiru, quer-me parecer que não existe, se bem que, há poucos anos, havia nove planetas no nosso sistema solar e agora ou são oito ou menos que isso. Amanhã devem ser uns dois – nós e a China.

Por outro lado, poderia ser outro corpo celeste a chocar com a Terra. Tipo um meteorito ou um Taveira. Bem, ao que se diz, foi uma coisa dessas que extinguiu os dinossauros há 65 milhões de anos. Mas também é preciso azar que aconteça exactamente 65 milhões de anos depois. Porra, não dava jeito nenhum, acho um bocado quente demais. Não pode ser lá para o próximo milhão de anos? Quem cá estiver que se amanhe – aliás, política há muito seguida em Portugal. E já não teríamos de criar cargos intermunicipais para os dinossauros autárquicos.

O mundo podia acabar numa orgia colectiva. Assim tipo acabar por excesso de sexo. O problema é que isso só acabaria com as pessoas normais, e ficavam cá os gajos da Igreja. Ou não. Também podia ser por uma epidemia de caganeira. Seria, obviamente, um fim do mundo de merda. E diga-se de passagem que ainda havia tempo para soltar o bichinho por aí. Ainda alguém se lembra disso só para escoar as montanhas de vacinas contra a gripe que previnem contra as quedas em escadas. Seria um fim do mundo já anunciado, se bem me lembro, há uns anitos atrás, com uma gripe dos porcos que afinal matou muito menos que a vulgar gripe sazonal. Coisas. Até isso está contra o fim do mundo. Pela doença, e por muito que alguns queiram vender frasquinhos cheios de água benta que dizem ser vacinas, não vamos lá. A peste bubónica não conseguiu…

Também podia ser por uma guerra nuclear. Ora isso era uma coisa em que muita gente pensou durante anos a fio, nos tempos da guerra-fria. Mas a guerra-fria acabou por falta de comparência de um dos contendores frios, que ficou mais frio que o outro frio. Têm surgido umas ameaças nesse sentido. Há quem diga que o Irão tem a bomba. O que é diferente de ter o suficiente para provocar um fim do mundo. E depois há a Coreia do Norte, sucursal do FC Porto, que só quer ver alguma coisa a arder. Mas daí a pegar fogo a tudo… Não me parece que seja por aí.

Então como será este fim do mundo? Não sei. De facto, espero que apenas aconteça lá para as onze da noite porque me dá pouco jeito antes do jantar. E pode ser assim para o tarde, porque no dia seguinte é sábado e podemos levantar-nos mais tarde. Ou de tarde, tanto faz. Mas o fim do dia do fim do mundo, ao contrário do fim do mundo em si, provavelmente será em cuecas. Depois logo se vê se o governo nos deixa vestir mais alguma coisa em Janeiro…

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

DO ORÇAMENTO DE ESTADO PARA 2013



Ilustração de Marco Joel Santos

Umas breves notas sobre o Orçamento de Estado para 2013.

Este OE é considerado, de forma praticamente unânime, como inexequível. Ou seja, e dito com palavras que todos possamos entender facilmente, não é possível de aplicar. Isso tem a ver, na minha opinião, com muitos factores, dos quais destaco os seguintes:

·         O aumento da carga fiscal é contraproducente nas contas do Estado; dependendo da dimensão e carácter da economia em causa, há um ponto de maximização entre o pretendido e o possível, em matéria fiscal; como vimos o ano passado, esse ponto já foi ultrapassado; um aumento de carga fiscal neste momento só vai ter um efeito: menos receitas;

·         A receita não é nova e teve os resultados que teve em 2012 – desastrosos;

·         O documento levanta sérias dúvidas no que respeita a inconstitucionalidade – basta pensarmos que, em 2012, o TC declarou inconstitucional a norma que permitiu a retenção das duas prestações complementares – Natal e Férias – dos funcionários públicos; este ano, o governo decide reter apenas uma dessas prestações e reter o equivalente da outra em aumento de IRS; ora, se em 2012 é inconstitucional, em 2013 será constitucional porquê? Ou espera o governo que seja apenas meio-inconstitucional?

·         A conjugação de eventos fiscais em 2013 é absolutamente adversa: além dos aumentos irracionais em IRS e no IVA, acresce o aumento do IMI, a descida mais que provável da exportação (60% do valor destas é gasolina para os EUA, que podem não necessitar de tanta em 2013, além de que os nossos maiores mercados estão mergulhados em crises mais ou menos análogas à nossa) e a descida efectiva dos salários dos portugueses. Tudo isto vai levar a uma quebra sem precedentes no consumo interno que, quer queiramos, quer não, é ainda o que sustenta a nossa economia, pelo menos até ter uma verdadeira cultura de produção para exportação, o que não se adquire em seis meses ou num ano;

Eu não espero que Cavaco Silva faça seja o que for ao OE que não seja promulgá-lo, até porque o projecto de lei foi aprovado no Parlamento. Mas, tantas têm sido as vozes que sobre esta questão têm versado, às vezes de forma absolutamente estúpida, que não resisto a focar dois pontos:

·         O presidente da República não deve enviar o OE para o TC só se tiver a certeza da sua inconstitucionalidade, como defende, por exemplo, Lobo Xavier. Se Cavaco tem a certeza, tem poder de veto. Pode vetar e exigir a correcção dos aspectos inconstitucionais. Se devolvido na mesma forma ao presidente, aí a conversa muda;

·         Se o presidente tiver dúvidas sobre a inconstitucionalidade de determinadas normas no diploma, deve enviar o mesmo para análise e decisão do TC;

·         Se o presidente promulga, é porque tem a certeza de que o diploma é constitucional – o que, à partida, sabemos que não é verdade;

Ainda sobre a votação do Parlamento, que resultou na aprovação do OE, temos a seguinte situação:

·         Grande parte dos deputados do CDS apresentaram declarações de voto, anunciando que não concordam com o teor do diploma, mas votaram a favor por disciplina partidária;

·         Dezoito deputados do PSD decidiram fazer o mesmo, numa declaração de voto conjunta; o PSD decidiu substituir essa declaração por uma outra, de todo o grupo parlamentar do PSD, afirmando que o OE feria os valores pelos quais se regiam, e os valores da social-democracia defendida na matriz ideológica do PSD – grosso modo, que não concordavam com o diploma, mas votaram a favor por disciplina partidária;

Tenho a dizer a estes senhores deputados:

·         Não são inteiramente estúpidos, pois já chegaram à conclusão que o OE é mau para o país;

·         Se não são inteiramente estúpidos, e em condições normais, é porque são minimamente inteligentes ou minimamente espertos – são coisas diferentes;

·         Nestas condições, são espertos, não inteligentes;

·         Se os senhores deputados não concordam, votam contra, não votam a favor; se votassem contra, provavelmente seriam expulsos do grupo parlamentar, coisa que consideram impensável;

·         Assim, vão dando a impressão de que se importam com o destino do país, mas votam a favor de uma lei que, sabem, o prejudica, por conveniência do lugar que ocupam;

·         Os senhores deputados que assim procederam são inúteis, pois foram eleitos para votar em consciência;

·         Os senhores deputados que assim procederam nada mais são que amibas, sem coluna vertebral, provavelmente hermafroditas sem testículos igualmente;

·         Os senhores deputados que votam a favor leis com as quais não concordam, e ainda por cima o fazem saber, devem ser interditados de exercer a função de forma permanente, pois violam os mais básicos princípios democráticos da nossa República; como tal não será feito, deviam ter a mínima dignidade de se demitir;

·         Como não me parece que qualquer destes senhores deputados se vá demitir, penso que a comparação mais lógica que posso fazer é, da próxima vez que for à casa de banho, chamar deputado do PSD ou do CDS ao que o meu ânus expelir para a sanita – porque merda por merda, prefiro a que não fala.


sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O CRISTIANISMO E A SOCIEDADE OCIDENTAL



              Trabalho escrito para a disciplina de Antropologia das Religiões, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião


A afirmação de João Paulo II, segundo a qual “o cristianismo é uma religião entranhada na história” pode parecer unicamente um lugar-comum. A verdade é que a noção histórica, senão social ou mesmo política, do cristianismo está fortemente impregnada desse facto inegável – o cristianismo não é apenas uma teoria religiosa abstracta, mas antes uma realidade social dificilmente descartável em qualquer discussão no âmbito da sociedade, de forma geral, e da sociedade e respectivos modelos éticos (e mesmo morais) ocidentais, em particular.

Há diversos aspectos interessantes na afirmação, aparentemente inócua, de João Paulo II. Há o aspecto histórico propriamente dito, o aspecto religioso e o aspecto social. Dado que as raízes do cristianismo vão muito para além do nascimento de Cristo, tende-se a procurar justificar a progressão histórica do cristianismo não numa vertente social, mas antes quase puramente historicista ou puramente religiosa. Mas damo-nos conta, facilmente, que os três aspectos estão intimamente interligados.

Qualquer religião, antiga ou moderna, e genericamente, tem, na sua génese, para além dos seus dogmas, que representam a sua essência espiritual, um carácter civilizador. Quer estejamos a falar de judaísmo, de cristianismo, islamismo ou budismo, é inultrapassável o facto de que qualquer confissão religiosa incorporar, nos seus desígnios, a dimensão social da sua massa de seguidores ou fiéis. O cristianismo não foge a essa regra – antes pelo contrário – tendo tido diversos momentos civilizadores ao longo da sua longa história, e não apenas, como outras religiões, no momento de génese ou compilação de princípios de fé e ética.

Julgo não ser demasiado fantasista colocar a génese do cristianismo na génese do judaísmo. E esse é o primeiro momento civilizador e, ao mesmo tempo, profundamente dogmático, de toda a doutrina cristã. É com Moisés que o monoteísmo definitivamente se institui, ao mesmo tempo que é constituído o primeiro conjunto de leis – a Lei mosaica. Primeiro, a partir da lei fundamental que são os 10 Mandamentos, depois através de diversas adaptações que fundaram o corpo legal da Lei. Esta Lei não é apenas um código legal – nesse aspecto, já os sumérios e egípcios levavam milénios de experiência. É uma Lei absoluta, que não se separa da Fé, da religião. Nesta altura, o Judaísmo é uma teocracia pura, uma vez que elege Deus como seu governante supremo, em todas as dimensões humanas. Mas é também a primeira Lei que consagra o valor supremo da vida humana, ao afirmar que nada é mais precioso que essa vida humana, pois ela pertence apenas a Deus, que criou, por amor apenas, todas as coisas, e tornou o universo bom, mas apenas uma coisa criou à sua semelhança – o Homem.

Os ensinamentos de Cristo, porém, representam um grande segundo momento civilizador. Ao longo dos séculos, o judaísmo ter-se-à tornado cada vez mais hermético, cada vez mais inflexível e cada vez mais dependente da Lei mosaica. Cristo, nas suas pregações, não altera a Lei de Moisés. Porém, explica-a com novos argumentos, e acrescenta-lhe o 11º mandamento: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Exemplos de relativização da Lei não faltam, ao longo dos tempos do ministério de Cristo. Perguntado se era lícito pregar num Sábado, responde com um exemplo simples e fulminante: se uma cabeça de gado cair num poço num Sábado, não vai o seu dono salvá-la? Quando defendeu a prostituta que a seus pés se arrojou, fugindo da multidão que a queria lapidar, com o famoso “Quem nunca pecou, atire a primeira pedra”. Ou seja, Cristo não só relativiza como refunda a Lei, uma vez que tende a distinguir os conceitos, até aí coincidentes, de pecado e crime. Os pecados podem ser perdoados, os crimes não – “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”, ou seja, começa a distinguir a esfera social da esfera legal e religiosa, que, naquele tempo, eram uma e a mesma coisa.

Por outro lado, o 11º mandamento é elucidativo. A Lei mosaica prezava essencialmente a vida humana porque esta pertence unicamente a Deus. Contudo, Cristo, o Deus feito humano, também tem uma vida humana. E dá-a pelos fiéis – na verdade, pelo povo de Deus, numa versão agora alargada a todo o mundo e não apenas aos judeus. Logo assim, o 11º mandamento adquire uma nova dimensão. Não é só uma demonstração mosaica de amor de Deus, já que o segundo mandamento manda amar o próximo e o primeiro manda amar Deus. Este novo mandamento, no entanto, não manda amar o próximo, vai para além disso, manda dar a vida própria pelo próximo, se tal for necessário. Ou seja, a santidade da vida humana permanece, mas não é um valor absoluto. Mais uma vez, a preservação da vida é relativizada, e circunstâncias há em que dar a vida por determinada pessoa ou causa se torna aceitável – e não será por acaso que dez dos apóstolos de Cristo tenham morrido martirizados pela causa cristã, e João Evangelista tenha sido martirizado pelo mesmo motivo.

Nota-se, assim, e por motivos doutrinários, decorrentes das pregações de Cristo, uma evolução no que concerne à forma como a vida humana deve ser encarada. A sua prática, no entanto, não é menos importante. Pregando para os pobres, vistos na altura como alvo do castigo de Deus – os pobres eram pobres por castigo divino, próprio ou ancestral, aliás, uma teorização que merece reflexão, pois pelo menos o ramo protestante do cristianismo novamente o afirma – Cristo reafirma a igualdade de oportunidades. Ao falar com a mulher samaritana junto ao poço de Jacob, reafirma que os judeus fazem parte do povo de Deus, que é todo o Homem, e não representam uma minoria escolhida. Ao afrontar os vendilhões no pátio exterior do Templo, afronta a ganância humana. E finalmente perdoa quem o mata. Mais uma vez, as noções de pecado e de crime estão bem dissociadas.

A Igreja incorporou estes e muitos mais ensinamentos de Cristo. Não é apenas um enorme Humanista, como um grande civilizador, como haviam sido Moisés ou o Buda, e como haveriam de ser Maomé ou o Jina. Mas não é apenas um grande civilizador como eles, mas antes de mais, um grande humanista. É verdade, porém, que nem sempre o portador destes ensinamentos, a Igreja, se comportou à altura dos mesmos, e provavelmente hoje, e não há muito tempo, isso fica bem patente. Basta pensarmos em atrocidades como as Cruzadas, onde nem os irmãos cristãos de Constantinopla foram poupados, a Inquisição, as perseguições a judeus e heréticos. No século passado, a conivência com os holocaustos judeu e sérvio, a resistência imensa que ainda hoje se mantém em Roma sobre o controlo de natalidade e a prevenção de DSTs e aos avanços científicos – tudo factores que nos poderão levar a descartar o valor moral do cristianismo, mormente do catolicismo.

O protestantismo não fica atrás. A ânsia do capitalismo desenfreado, para quem a ideia de ser pobre é culpa exclusivamente própria, a própria instituição sangrenta do ramo protestante do cristianismo, e a atroz ideia de que não são as obras que salvam, mas unicamente a Fé, indo ao cúmulo calvinista de que Deus já prenunciou o destino de cada alma, são sinais de que a mensagem original de Cristo, provavelmente, terá sido esquecida.

Tal não é inteiramente verdadeiro, porém. Toda a nossa sociedade ocidental é baseada na moral judaico-cristã. E, a avaliar por outras paragens do globo, talvez essa moral não seja a pior das morais. Prova mais que evidente disso é a Declaração dos Direitos do Homem, que consagra todos os valores judaico-cristãos, e mais cristãos que judaicos, em boa verdade. Por outro lado, o esforço de solidariedade, que as próprias Igrejas por vezes confundem com o pobre conceito de caridade, tão prejudicial da condição humana, é notório e, mesmo feito este reparo, digno de admiração.

Relativamente à doutrina cristã, desde os tempos do Vaticano II, em 1965, que a aproximação de doutrinas entre os três ramos principais do cristianismo se tem vindo a dar. Ao mesmo tempo, a própria Igreja católica parecia vir a trilhar um caminho de regresso à pureza cristã. Não será a eleição de Bento XVI contraproducente?

Bibliografia:

·         Delumeau, Jean – As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Presença, 1997. 2ª Edição, ISBN 972-23-2241-9

·         Vázquez Borau, José Luís – As religiões do Livro. Lisboa, Ed. Paulus, 2008

·         Carmo, António – Antropologia das Religiões. Lisboa, Universidade Aberta, 2001. 1ª Edição, ISBN 978-972-674-359-0

·         Bíblia Sagrada. Lisboa, imp. Gráfica Europam, 1982. Trad. João Ferreira de Almeida, imp. 1681, Amsterdam

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Um golpe de estado quase legal

Assistimos, hoje, a um golpe de estado nas margens da legalidade. O Primeiro Ministro veio comunicar ao país uma série de medidas que não passam de meras alterações contabilísticas, sem qualquer debate, sem uma estratégia política estrutural visível que não seja a de uma privatização encapotada da Educação e da Saúde e, a curto prazo, da Segurança Social. Pedro Passos Coelho bem tentou uma reforma da Constituição e, não a conseguindo fazer de jure, fá-la de facto.
O que é um sistema de educação mais repartido? Teremos agora uma escolaridade obrigatória até ao 12ºano com os alunos a pagar? Repartiremos os custos, sendo que os que mais contribuem através dos pagamento de impostos serão, também, aqueles que mais pagarão. Ressalvam-se aqueles que, sendo mais abastados, já o fazem no ensino privado. Ignoram, os nossos governantes, que uma enorme percentagem de alunos do ensino secundário já não consegue pagar o material escolar e, muito menos, os manuais. Ignoram, ainda, que muitos não conseguem sequer ter uma alimentação minimamente equilibrada.
Nas longas listas de alunos das turmas de décimo ano de escolaridade, milhares são filhos de pais desempregados cujas prestações sociais estão em risco.
Teremos, também, aqueles que durante uma vida descontaram para a Segurança Social partindo do pressuposto que o estado era uma pessoa de bem e que os seus descontos seriam revertidos na forma de uma determinada pensão a sofrer cortes na quantia que recebem. Os mais velhos terão, assim, menos quando mais necessitam e pagarão mais pelo acesso à saúde.
O Primeiro Ministro vem, de forma assaz "crédula", dizer que as nossas manifestações não são tão perturbadoras e violentas como as que se fazem nos outros países. Talvez se arrependa dessas palavras quando, em 2013, os portugueses sentirem na pele que os seus sacrifícios se agravam e não servem senão para alimentar o sorvedouro dos juros da dívida.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

UMA APROXIMAÇÃO AO ISLÃO

Ilustração Marco Joel Santos


 Trabalho escrito para a disciplina de História do Islamismo, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião

É bem verdade, como Borau afirma, que a abertura da fé islâmica a outras fés e, por conseguinte, da sociedade a outras sociedades, não existe, uma vez que a fé islâmica é entendida pelos próprios como absoluta em si mesma. Assim sendo, o que leva a esta situação? O que faz da fé islâmica uma fé sem poder de encaixe ou sequer grande tolerância? Será o poder da religião em si, ou do seu aparelho? Ou antes o poder conferido pelas crenças e dogmas fundamentais do islamismo, bem como a sua prática?
Na verdade, e respondendo às dúvidas suscitadas, não se pode atribuir a solidez – e rigidez – da sociedade islâmica à existência de qualquer classe clerical, no mesmo sentido que entendemos o clero no Ocidente. Seria, ao fim e ao cabo, negar o próprio dogma fundamental islâmico, como veremos. Assim sendo, a segunda hipótese é de facto a mais plausível. Mas que crenças e dogma são estes? E que prática hermética é essa, que une tão profundamente a comunidade?
Comecemos pelo dogma. Qualquer religião começa por um dogma, ou o tem nas proximidades temporais e teosóficas da sua génese. A questão é fácil de entender, se atentarmos que a religião é, antes de mais, baseada na fé, e não tanto no racionalismo. Logo assim, há que ter e responder a uma questão fundamental, uma questão cuja resposta seja absoluta e definitiva, aceite como verdadeira acima de qualquer dúvida, e dessa resposta nasce a fé. Logo assim, o dogma é o cerne de qualquer religião.
No islamismo, a força do dogma não é diferente daquela que podemos verificar em outras religiões, como o cristianismo. Mas, ao contrário deste, o dogma islâmico é simples, directo e fácil de entender. Os mistérios existem, mas ficam para uma segunda análise, talvez da Leitura. Deus é uno. Não só e apenas único, mas antes único e indivisível, e não admite intermediários na sua relação com os fiéis – explicada está a pouca preponderância da escassa hierarquia islâmica. Ou seja, o dogma islâmico, face ao cristão, por exemplo, é simples de entender – e por conseguinte muito mais fácil de apreender e venerar. A mensagem penetra de forma simples mas extremamente eficaz no subconsciente dos muçulmanos. Ao passo que os cristãos, por tantas voltas que dão ao dogma da Santíssima Trindade, de um Deus que é único mas triplo, apesar de indivisível, se acham facilmente perante as maiores dúvidas, do ponto de vista da Fé.
Teosoficamente, o dogma muçulmano não passa de um decalque simplificado dos dogmas fundamentais das outras religiões do Livro – a Bíblia. O que se entende se se atentar no contexto histórico da génese islâmica. Na cidade de Meca, havia muitos séculos que existia a Caaba, local santo para centenas de fiéis e religiões diferentes, onde existia, inclusivamente, uma Virgem com o Menino ao colo. A Caaba sempre foi ligada a Abraão, pai dos árabes e dos judeus, e patriarca também dos cristãos, por analogia. Logo assim, é natural esta influência. O dogma, por conseguinte, não só une os que acreditam como, pela sua simplicidade, é compreendido profundamente, ao mesmo tempo que é tão absoluto que não abre espaço a diferenciações.
A Lei deriva, directa ou indirectamente, de duas fontes: o Alcorão e os Hadith. O Alcorão, a Leitura, foi supostamente revelado a Muhammad, vulgo ocidental Maomé, directamente por Allah, vulgo ocidental Aquele que É, ou, nas palavras de Moisés, o Senhor Deus. Foi um processo moroso compilar o Alcorão, dado o analfabetismo de Maomé – o que não quer dizer nada acerca das suas inteligência, capacidade e educação, comprovadamente elevadas. As palavras transmitidas por Deus a Maomé foram ditadas por este e escritas por terceiros, companheiros de fé. Mais uma vez, a simplificação islâmica surpreende. Ao passo que a Bíblia, que os muçulmanos consideram como o Livro, é um livro de origens mais ou menos obscuras, embora supostamente de inspiração divina, o Alcorão é emanado directamente de Deus. Ou seja, adquire um estatuto divino, imutável, inquestionável. É um guia, um manual de modus vivendi. A sua interpretação é tanto o isolamento de um versículo, que nem por se extrair do seu contexto perde a sua força de lei divina, como o contrário, a integração de diversos elementos diferentes num determinado contexto fechado. Assim, representa, quer se trate de uma ou outra forma de interpretação, um manancial completo para a conduta e a fé islâmicas. Não precisa de ser complementado, nem explicado. Apesar de o ter sido, por exemplo, por Maomé.
E são as explicações de Maomé sobre passagens do Alcorão que, em grande parte, formam os hadith – os ditos do Profeta. Juntamente com os seus comportamentos, estes formam uma Lei nunca escrita. É uma Lei essencialmente dita. E se o Alcorão é eficaz pelo seu carácter inquestionavelmente divino, os hadith têm uma função extraordinária, e que são bem reveladores da maneira de pensar islâmica. Como já referi, são uma lei oral. Como tal, o seu ensinamento é passado de geração em geração, notavelmente sem grandes corrupções – embora se admitam algumas deturpações. Isso, em si mesmo, é um factor de união extraordinário. Ou seja, a fé islâmica é reavivada, por esse mundo fora, todos os dias. E porquê esta diferença de tratamento entre o Alcorão e os Hadith? Relembremos que o Alcorão é obra de Deus, os hadith são a vida de um homem. Escolhido por Deus, mas nada sendo senão um homem – Maomé.
 Os cinco Pilares do Islão são, no fundo, mais uma forma de fortalecer a fé por comunidade. São simples actos que formam uma prática comum, facilmente reconhecível e aceite por todos. Começa na profissão de fé (shaháda): “Não há outro Deus senão Deus, e Maomé é seu enviado”. Da unicidade de Deus. Mas também da humanidade de Maomé, até porque outros profetas houve, sendo um dos mais importantes Jesus Cristo. A profissão de fé é a entrada para o seio dos crentes. Basta afirmá-la para que sejamos nele acolhidos. Parece simples, e é. Mais uma vez. Mas ao mesmo tempo marca uma predisposição muito vincada contra o politeísmo e contra qualquer outra fé. É fundamental para a coesão da fé. A oração (çalát) não é apenas a oração. Não é apenas recitar ou rezar. É santificar, é purificar pelo ritual, e é um ritual que, não obrigatoriamente, mas preferencialmente, mais uma vez, se deve processar em comunidade, sem ninguém a professar ou celebrar, mas com alguém apenas a dirigir. A santificação ou purificação estende-se à esmola (zakát). Esmola mais no sentido de obra que propriamente no de caridade. Um modo de vida, portanto, que revela os ensinamentos e une os fiéis. O jejum (çawm) é talvez a parte mais exegética do Islão. Deriva dos jejuns judaicos e cristãos, tendo Maomé jejuado e depois instituído o jejum como prática comum. Durante o mês de Ramadão, e durante o dia, jejua-se. Mas é consentida e incentivada a compensação nocturna, daí as festividades desse mês. Mais um elemento agregador – o convívio – proporcionado pela fé. Por fim, a peregrinação (hajj). Trata-se igualmente de um decalque de anteriores peregrinações, como a judaica a Jerusalém. Não só é uma viagem, como uma convergência. Uma reunião imensa de fiéis. Nada pode ser melhor para a consolidação da Fé.
Desde cedo, porém, e pouco após a morte de Maomé, em 632, que as diferentes acepções sobre o seu legado (e o poder do califado) separaram os muçulmanos em dois ramos preponderantes (não os únicos): sunitas (os que acreditavam na eleição do poder) e os xiítas (os que acreditavam na herança com base na linhagem – no caso, do genro de Maomé, Ali). Foi a politização do Islão e, ao mesmo tempo, a separação, mais ou menos sensível, entre muçulmanos árabes sunitas e muçulmanos não árabes xiítas (embora tal não seja linear). O facto de os próprios religiosos terem reservado, de alguma forma, um espaço muito particular de exegese e, por vezes, de deturpação das leis, não ajudou a que a fé islâmica fosse determinante nos jogos e disposições políticas, a não ser episodicamente. Mas, na verdade, com tantos factores de união social e religiosa, quem precisa de política para ver na fé islâmica as suas facetas principais: união, coesão, rigidez? Altivez, mesmo. E isto por uma razão simples: os seus conceitos são simples demais para poderem ser negados. São a verdade. Não precisam de complementos. A fé islâmica afirma-se absoluta pela sua simplicidade.
Bibliografia:
·         Delumeau, Jean – As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Presença, 1997. 2ª Edição, ISBN 972-23-2241-9
·         Vázquez Borau, José Luís, As religiões do Livro, Lisboa, Ed. Paulus, 2008

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O ÊXODO




Trabalho escrito para a disciplina de História do Judaísmo, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião

Escrever sobre o Êxodo não é uma tarefa que se possa fazer de forma linear ou puramente historicista. Trata-se de um acontecimento não só importante como fundamental para a religião judaica e, por arrasto lógico, para todas as chamadas religiões do Livro. Há pelo menos três dimensões pelas quais podemos analisar o Êxodo. Refiro-me às suas dimensões religiosa, política e social (ou cultural). Tentarei, neste breve texto, e com base na História dos Judeus de Paul Johnson, relevar, ainda que de leve, cada uma destas dimensões.
Em que medida o Êxodo é determinante para a religião judaica? Bem, esta questão não é difícil de responder como, aliás, Johnson bem vinca no seu trabalho. Na verdade, o Êxodo não é mais que o próprio âmago histórico-religioso de toda a moral e religião judaicas. Mas convém contextualizar. Johnson afirma que nem toda a nação israelita estaria no Egipto, o que é provável. Se é verdade, e tal parece ser o caso, que os hebreus consistiriam nas tribos habiru que regularmente rumavam ao Egipto em épocas de carência alimentar, então é verosímil que nem todas as tribos israelitas estariam no Egipto naquela altura. Assim mesmo, há que lembrar que, até então, a religião judaica existia em essência, mas não propriamente na prática.
Ou seja, desde o tempo do pacto entre Abraão e sua futura prole e Deus, que o povo hebreu pode ter tido como arquétipo religioso o monoteísmo, a devoção a um Deus que lhes prometia as terras entre o Nilo e o Eufrates em troca de devoção exclusiva e vivência concordante com tal. No entanto, é também certo que até ao aparecimento de Moisés, essa crença permanecia adormecida e algo dúbia. O facto de o Êxodo ser o cumprimento da promessa de Deus, o seu retorno à alma do povo hebreu, não deve ser menosprezado.
Contudo, há mais factores a concorrer para que o Êxodo seja o centro da fé judaica. Tal como Johnson preconiza, o cumprimento da promessa de Deus é fulcral. Contudo, que dizer do desenrolar dos acontecimentos que culminou no Êxodo? Isto é, qual a dimensão religiosa desses acontecimentos? E mais do que exactidão histórica, como retrata a tradição, nomeadamente a Torá, esses acontecimentos? É necessário lembrar que as Pragas do Egipto, independentemente de se terem dado ou não, são sinais de Deus, uma vez que Moisés as anunciou e, na prática, as despoletou, nunca através do seu próprio poder, mas antes, e pelas suas palavras, pelo poder de Deus. Quão aterrador pode parecer esse poder a quem lê a Torá, quem lê o livro do Êxodo? Certamente aterrador quanto baste, e prova cabal do poder que Deus está disposto a dar ao seu Povo Escolhido. A última praga, o aniquilamento dos primogénitos do Egipto, é particularmente terrível, mas igualmente particularmente significativa. Esta praga é de novo o cumprimento do patriarca Abraão e do seu pacto último com Deus, que lhe exigiu o sacrifício do seu filho amado, Isaac. Deus recuou na ordem, então. Mas não recuou na hora de libertar o seu povo.
A dimensão religiosa do Êxodo culmina na abertura das águas por Moisés, mais uma prova do extremo domínio de Deus sobre não só a vontade dos homens, mas antes sobre as forças da natureza, e encontra o seu prolongamento lógico no face a face de Moisés com Deus, ao qual o primeiro não escapa sem o desfiguramento próprio de quem se vê em tal situação, a de contemplar a face da glória por excelência, ao receber nas suas mãos os Dez Mandamentos, ao fim e ao cabo, a base da futura Lei, a mosaica.
 Johnson não se detém em considerar todos estes factos como inovadores. Além de inovadores, considera-os como uma evolução efectiva da mente humana, face ao imobilismo do pensamento, então o acadiano, egípcio e hitita. Algo injusto. E injusto por uma razão, principalmente quando compara o monoteísmo extremista israelita com o politeísmo egípcio. É certo, sem dúvidas, que a religião israelita envolve e evolui, requer do seu povo o sacrifício mas também o entendimento do mesmo. Estabelece como base para todo o acordo entre Deus e o seu Povo a terra, a terra prometida, a nova casa dos hebreus, dos israelitas. Contudo, não é a Lei de Mâat mais sensata que a Lei mosaica? Não prefere a primeira o racionalismo, não constitui uma lei do bom senso, do equilíbrio, ao passo que a segunda não constitui uma constante agressão de Deus sobre o seu povo, a quem nada é permitido que não esteja na Lei de Deus? Por certo, tal visão de Johnson pode ficar a dever-se a três milénios de monoteísmo e a pouca predisposição para um entendimento de uma sociedade entretanto esmorecida e desaparecida.
Culturalmente, o Êxodo inicia a era da Lei, a mosaica. Compilada idealmente pela mão do próprio Iahwe, cedida aos homens, a Lei mosaica não é uma lei religiosa tal como percebemos a lei da Igreja Católica, por exemplo. Vai muito para além disso. Qualquer ofensa a Deus é uma ofensa à sua Lei e vice-versa. Johnson foca intensamente este ponto, que me parece igualmente pertinente: não há diferença entre pecado e crime. Qualquer pecado é um crime, qualquer crime é pecado. Não há, como nos dias de hoje, lugar para o legalmente lícito mas eticamente reprovável. A Lei é absoluta e não há outro castigo que não a expiação do pecado.
Numa altura em que as sociedades antigas mantinham já códigos criminais bem definidos, como os acadianos e babilónicos, a verdade é que Lei mosaica não define apenas a posse, como os outros códigos. Nesses, até uma vida humana é uma posse, quando muito própria, nas mais das vezes, de outrem. Tirar uma vida humana é um crime, portanto, passível de reparação monetária ou física. A Lei mosaica santifica a vida através da máxima vinda de Deus de que todos os homens são igualmente feitos à Sua imagem.
Assim, Johnson põe em evidência não só o carácter civilizador da Lei, semelhante às leis osíricas ou enkianas, mas também a santidade da vida humana. Por outro lado, não entrega inteiramente a vida ao seu portador, pois ela é uma graça de Deus e, em última instância, Lhe pertence. Caso para dizer que a expiação pelo crime de morte, por exemplo, é igualmente a morte, talvez não pelo indivíduo morto, mas antes pela pertença dessa vida a Deus exclusivamente. Algo redutor, mas ilustrativo da força da Lei. Mas se a vida é um exemplo extremo, o que dizer do adultério? Ambos os adúlteros são passíveis de condenação à morte. A lei não se limita a civilizar, impõe a civilização, impõe a moral. Lembro, numa altura em que o adultério não era encarado como crime ou sequer ofensa maior pelos povos grandes que então existiam. Bem como o incesto, ou a bestialidade, ou a sodomia.
A dimensão política do Êxodo é igualmente tremenda. Trata-se da libertação de um povo de uma dominação por um Império todo-poderoso. Não é crível que os hebreus tenham sido escravizados pelos egípcios, mesmo considerando o conceito, muito fluido, de escravo, durante o Império Médio. Contudo, a Bíblia diz-nos que faraó temeu a dimensão do povo hebreu, como afirma Johnson. Tal também não é por certo inteiramente correcto, dadas as deambulações pelo deserto subsequentes ao Êxodo, que não se compaginam com uma enorme dimensão populacional, ao passo que o Egipto de (presumivelmente) Ramsés II seria uma nação imensa. Mas, seja como for, e como refere Johnson, é a primeira vez que uma revolta de oprimidos encontra a liberdade dos mesmos.
Decorrendo da lei, não é fácil a nenhum líder israelita impor domínio absoluto. A Lei impõe Deus e não homem algum, e até mesmo a Moisés não é permitido entrar em Canãa, apenas a mirando do alto do Nebo. No entanto, Israel acaba por se impor pela mão de Josué, general de Moisés, conquistador da (já então) quatro vezes milenar cidade de Jericó. É um jogo de alianças e acordos, não tanto ou apenas de lutas e refregas, que vai mais tarde constituir a Israel unificada, imposta, curiosamente, sobre os vencidos tecnologicamente muito superiores aos hebreus, mas quiçá menos arreigados nas artes da peleja ou, por outro lado, menos versados nas artes obscuras da diplomacia antiga.
Bibliografia:
·         JOHNSON, Paul – História dos Judeus. RJ: Imago, 1995. 1ª Edição, ISBN 853-120-421-6
·         TAVARES, António Augusto – Civilizações Pré-Clássicas. Lisboa: Litografia Amorim, 1995. Texto de Base, ISBN 972-674-141-6
·         JACQ, Christian – Poder e Sabedoria no Antigo Egipto. Lisboa: Pergaminho, 1998. 1ªEdição, ISBN 972-711-203-X
·         HOLTZ, Theo – A História dos Judeus. São Paulo: Via Lettera, Janeiro de 2009. 1ªEdição, ISBN 978-85-7636-082-7

terça-feira, 13 de novembro de 2012

INVESTIGAÇÃO INDEPENDENTE

Sérgio Denicoli é um investigador da Universidade do Minho, em Braga, que viu a sua tese de Doutoramento ser aprovada por unanimidade. Provavelmente alegrou-se com o reconhecimento de seu trabalho de anos e festejou com a família e os amigos. Porém, a tese de Denicoli chegou a conclusões que não agradaram a todos, nomeadamente a Zeinal Bava, Presidente Executivo da Portugal Telecom (PT). E porquê? Porque, em função do estudo desenvolvido, concluiu  que havia "fortes indícios" de corrupção no âmbito do processo de instalação da Televisão Digital Terrestre (TDT).
A PT levantou um processo judicial contra o investigador. E o que fez a Universidade? Nada! Deixa-o enfrentar sozinho um processo absurdo que põe em causa não só o autor da tese como o júri que o aprovou e a Universidade como instituição autónoma e livre na sua vertente pedagógica e de investigação.
Mal vai o país que vende tudo ao poder económico, incluindo a pouca massa crítica que lhe resta e que deveria ser livre para exprimir as suas opiniões, mais ainda quando fundamentadas em estudos académicos!

sábado, 10 de novembro de 2012

HÁ JÁ MUITO TEMPO QUE COMO BIFES A MODOS QUE QUANDO CALHA


Ilustração Marco Joel Santos
Há uns anos, os bifes da menina joanete até me teriam inflamado o discurso. Mas hoje, depois de tanto tempo, tendo a temperar os comentários com sal e pimenta quanto baste apenas, com toques de salsa porque coentros é coisa que me tira do sério. A verdade é que ninguém gosta de ouvir o que a menina joanete disse. Talvez porque alguns se revêem nas suas palavras, uns na autoria e outros como alvos das mesmas, a quem a carapuça serviu. E a maioria, tenho a certeza, porque não se identifica minimamente, quer numa situação quer noutra.
Os meus medos confirmam-se plenamente, e este quase país está a transformar-se no ideal de direita que é o Estado-Caridade. Quem acompanha o ritmo, vive, quem não acompanha merece toda e qualquer humilhação que se lhe possa ser infligida, incluindo tomar comprimidos que já ninguém quer, comprar alimentos fora de prazo ou, enfim, alimentar-se por especial favor de um qualquer banco de uma qualquer joanete. Há quem diga que é a helenização do país. Espero que não, porque numa coisa a joanete tem razão: para a Grécia ainda nos falta muito – temo ser apenas questão de tempo.
A menina joanete, entretanto, diz que os filhos lavam os dentes com a água a correr. Quantas conclusões brilhantes daqui não se poderiam tirar. Por acaso, eu próprio lavo os dentes sem água a correr. Sempre assim fui ensinado. Mas se os filhos da joanete, os joanetinhos, todos os cinco, lavam os dentes com a água a correr, bem se pode dizer que a joanete não é grande espingarda como educadora. Ainda para mais, com cinco joanetinhos a lavar os dentes com a água a correr, das duas uma: ou ainda a água é fornecida pelo Estado ou então também vem do banco alimentar.
A joanete formou-se em Economia na Universidade Católica, em 1982, com vinte e dois aninhos. Tem cinco filhos, e uma cara de sonsa que sempre me incomodou. Além disso, tem propensão para ter afirmações extraordinárias para quem é voluntária numa organização que pretende ajudar os outros, que roçam muitas vezes o puro desprezo pela pobreza. Em 1983, repare-se, um ano depois de se formar, e com apenas 23 anos, ocupou o cargo de adjunta da direcção da Sociedade Portuguesa de Seguros. Quatro anos mais tarde, com apenas 27 anos, já fazia parte da direcção financeira da Assurances Generale de France, com trabalho em Bruxelas. Ora, eu não sou de intrigas, mas já vi filmes onde gaiatos de 23, 25 ou 27 anos se tornam especialistas de um momento para o outro. A partir de 1993, então com 33 anos, joanete dedica-se por inteiro, ao que parece, à caridadezinha, sendo actualmente presidente do Banco Alimentar contra a Fome, aquela organização que enche os bolsos à Sonae Distribuição e à Jerónimo Martins quando faz campanhas para ajudar amigos, campanhas que, já então por esse mesmo motivo, tinha muita dificuldade em compreender ou apoiar. Na altura diziam que eu não era solidário.
A joanete não conhece miséria em Portugal. Caso para dizer: porque raio preside a um Banco Alimentar contra a FOME? Ah, sim, porque a fome não é miséria… com certeza, para a joanete, menina da linha, a fome é consumir leite sem Nesquick. A miséria é só ter Nesquick e não ter leite.
A joanete diz que os portugueses não podem comer bifes todos os dias. É verdade, e a joanete tem razão nisso. Eu, por exemplo, a modos que como bifes quando calha. Mas até é bom que não os coma, fazem-me mal ao colesterol, que por razões hereditárias, normalmente excede os recordes dos fórmula 1 na recta da meta do Estoril. Estoril porquê? Porque Estoril a joanete conhece, fica na linha. Mas a joanete não sabe que a esmagadora maioria dos portugueses não come bifes todos os dias? Uma vez por semana já não será muito mau… Ok, estou a ser mau, eu bem sei que a joanete estava a ser figurativa. Os bifes são uma metáfora. Bem, na realidade, para a maioria do pessoal são até uma hipérbole…
Já os jovens que vão a concertos dão comichões no cérebro à joanete. Com certeza os joanetinhos nunca foram a um concerto, até porque são um antro de perdição não compatível com a convicção católica da joanete. Aliás, a cultura é uma coisa muito própria deste tipo de gente, mas não deve ser acessível ao pobrezinho. Coitadinho, até porque ele nem entende a cultura… em alternativa, a joanete preferia que os jovens guardassem o dinheiro do concerto para a eventualidade de ter de tirar uma radiografia por causa de uma queda numa aula de ginástica. A joanete antecipa-se e até já se esquece que existe uma coisa chamada Seguro Escolar para as aulas de ginástica que paga as radiografias no Serviço Nacional de Saúde. Mas a joanete entende, e bem, que a continuarem os seus amigos no governo, tanto o seguro, como as aulas de ginástica como a saúde são coisas para quem puder pagar. O resto tem direito ao Banco Alimentar contra a falta de Nesquick… sim, porque fome é falta de Nesquick, e não existe miséria em Portugal.
Um dia, hão-de inventar uma forma de remover cirurgicamente os joanetes. Até lá, não fiquem sem Nesquick.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

YOU CAN'T BRING ME DOWN!


Ilustração Marco Joel Santos
E sabe quem me conhece que detesto estrangeirismos. Tipo wtf e my god e I Love NY mas só lá fui em sonhos e não cheirei. Mas esta frase em particular lembra-me a minha adolescência e faz parte de uma faixa de uma banda que se chamava Suicidal Tendencies. Na altura apreciava a rapidez com que tocavam e à forma que soava aquilo. Hoje, aprendi que afinal os Suicidal Tendencies tinham razão e, ao contrário do que o próprio nome da banda indica, é uma faixa sobre a irreverência que não se pode abafar. Uma lição de vida. E para aqueles que têm medo de ser irreverentes, um dia ficarão cheios com as opiniões que não deram. Enfartados, confortáveis e paralisados.
Isto para dizer que a vida não me verga. Um fim-de-semana de reflexão e cá estou de volta para continuar na luta. Agruras todos temos, desgostos todos passamos. Uns sobrevivem, outros enterram-se em antidepressivos, outros engolem em seco e seguem em frente. Porque só há um destino para cada um de nós e não interessa saber se lá chegamos – porque chegamos – mas como chegamos. Se de stiff upper lip ou derreados, é uma escolha. Porque isto das dores faz parte da coisa.
Além do mais, não há tempo a perder. É agora ou nunca, pensa o Gaspassos. É agora que nos reduz para sempre à condição de escravos ou nunca o fará. E, por mim, nunca o fará! Há que dizer nunca! Porque nunca é apenas uma palavra nas bocas de muitos, mas pode ser uma arma na boca dos demais! E que os demais sejam mais que os muitos, que o povo português, aquele que nunca se deixou levar pelas falinhas mansas do bloco central e do partido dos contribuintes, os que se deixaram levar mas estão arrependidos, os espoliados, os miseráveis, os indignados – os portugueses todos – estejam prontos para o que aí vem.
Porque é agora ou nunca! Quanto a mim, mais vida virá, mais dores virão. Mas quiçá também alegrias em conformidade…!
You can’t bring me down, motherfuckers!