sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

ATON, O CORPO DE RÁ

Ilustração Marco Joel Santos


Trabalho escrito para a disciplina de Cultura e Mitologias na Antiguidade, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião

A reforma atoniana prefigura, de facto, uma viragem no rumo religioso egípcio. Tida por muitos como um delírio mais ou menos consciente de um jovem rei – Amen-Hotep IV, que mudou o seu nome para Akhenaton, precisamente em honra do deus Aton, terá, no entanto, tido consequências políticas, religiosas e artísticas para além do seio do faraó, sua família e sua corte. O Hino a Aton é, sem dúvida, uma descrição viva e pungente de um deus que, ao contrário de outros deuses egípcios, parecia ter exclusivamente qualidades vivificantes, sendo o deus da luz, o Disco Solar.

O Hino começa com um parágrafo quase completamente descritivo acerca da essência de Aton, “Apareceste belo no horizonte do céu, Ó Aton vivo, princípio da vida!”. A frase é mais explícita que ambígua, afirma a beleza do disco solar, mas também a sua vida aparentemente eterna, usada, por sua vez, para criar a vida. É o princípio criador, que até aí era premissa de Amon, o Escondido, o todo-poderoso deus de Tebas. Segundo diversas cosmogonias, incluindo a de Heliópolis e de Mênfis, esta teria sido a missão de Atum, o deus primordial, transmutado frequentemente em Rê, divindade suprema da adoração solar, associado mais tarde a Amon. Uma frase importante é: “Como és Ré, chegas até ao extremo de todos os países; une-los para o teu filho amado.”. Inequivocamente, o Hino associa, desde logo, Aton a Rê. Christian Jacq, por exemplo, defende que esta associação é primordial para a compreensão do pensamento de Akhenaton. Este não se limitou a inventar uma nova divindade, antes a transmutou. Na verdade, tanto Aton como Rê eram deuses adorados no Egipto desde os primórdios, e ambos associados ao Sol. Jacq acredita que Akhenaton adorava Aton como o Corpo de Rê, que permanecia abstracto como Deus-Sol, enquanto Aton era a face visível desse princípio abstracto (embora Rê fosse representado frequentemente em formas antropomórficas diversas – Rê Horaktli, Rê-Hórus, Khepra – com forma de escaravelho). Por outro lado, a união de Aton ao seu filho (Akhenaton, ele próprio Aton encarnado) revela-nos o carácter quase pessoal deste culto, o que ajuda a perceber o seu desaparecimento após a morte de Akhenaton.

Prosseguindo no Hino, a evocação da noite revela-nos a vida sem Aton. Que não mais é vida, mas antes a morte:”Quando desapareces no horizonte ocidental, a terra fica como morta, nas trevas.”. Como culto de luz, de cor e vida, o culto de Aton previa a noite como um período de morte. Aliás, o próprio Rê, ou o seu disco, Aton, não tinha uma passagem pelo firmamento plena de poderes. Começava tímido, pela manhã, apresentava-se pujante ao meio-dia, e envelhecia e morria todos os dias no crepúsculo. Apesar de toda a alegria em volta do culto solar, não conseguiu Akhenaton descartar a ideia da morte egípcia, seguida de ressurreição cósmica. Aliás, uma ideia recorrente nas cosmogonias egípcias, sendo Osíris o seu representante máximo. Só que Osíris era o deus do mundo subterrâneo, Aton era o gerador de vida.

Mais à frente no Hino, são explicitadas as capacidades criadoras de Aton, que não se ficam pela natureza exterior ao homem: “Criador da semente na mulher, tu que produzes o sémen no homem, (…)”. É evidente a exaltação do carácter criador, não só do princípio dos tempos, mas também da continuação dos mesmos, de Aton. Aliás, a criação primordial é imediatamente relevada de seguida: “Criaste a terra segundo o teu desejo, quando estavas só, (…)”. Esta é uma das mais controversas afirmações do Hino. Se é certo que remete à ideia de monoteísmo, a verdade pode ser diversa. Já referi que, por exemplo, Jacq não considera o Atonismo um monoteísmo. É certo que Aton estava só no princípio da criação – tomando o lugar de Atum, o criador primordial até aí. Mas não se deve depreender que tenha, segundo a cosmogonia atoniana, permanecido só. Mais não fosse, a afirmação anterior “Como és Ré, chegas até ao extremo de todos os países;” remete-nos igualmente para a adoração de Rê através do seu disco solar, expressão da sua glória. Aliás, partir do princípio que os egípcios eram politeístas era também errado, uma vez que o egípcio não distinguia o sagrado sob essa dimensão. Deus era uno, e no entanto, Conjunto. Deus era representado por diversas formas, e não se pode falar verdadeiramente de uma diversidade enorme de deuses, mas antes de um conhecimento de Deus sob diversas formas. Conhecimento e não Fé. O egípcio experimentava o sagrado, não se limitava a acreditar nele. Por isso a questão do politeísmo é uma falsa questão, como tão bem refere Jacq. Tal como a do monoteísmo no culto de Aton. Basta atentar nos nomes das filhas de Akhenaton, como Ankh-sun-Amon (relativa a Amon) ou Neferneferurê, relativa a Rê. O próprio Akhenaton tinha como título inscrito em tijolos para sua protecção após a morte Osíris-Nefer-khepuré-Ré, ou seja, Osíris associado a Rê, o que, segundo Jacq, não tem nada de herético, já que Akhenaton assim demonstra a sua apetência de um deus ressuscitado (Osíris), ao mesmo tempo que é o próprio deus-sol encarnada (Aton, mas também Rê), mas mostra inequivocamente o carácter flexível do Atonismo e não a imposição do Deus Único Solar.

Como é sabido, o Nilo representa a vida do Egipto. Ele próprio foi divinizado. O Hino a Aton acrescenta: “Criaste um Nilo no mundo inferior.”. Nada da religião antiga é descartado, ou seja, o próprio Nilo passa a ser criação de Aton. Isto demonstra também a dinâmica política do atonismo, ao associar definitivamente os símbolos nacionais ao seu culto. Nada foi deixado ao acaso. A não ser o carácter iniciático do atonismo, o que nada tem de extraordinário – o culto osírico era, nesta altura, também iniciático e não de massas – o que inexoravelmente o fez desaparecer. Dependia do Aton encarnado, e esse era indubitavelmente Akhenaton, na sua cidade de Akhentaton:”Estás no meu coração e não existe outro que te conheça, à excepção do teu filho Neferkheperuré Uaenré. (atente-se no título e na devoção extrema de Akhenaton a Ré). Akhenaton era doente, acabou por morrer relativamente jovem. E Aton não voltou a encarnar.


Bibliografia:

JACQ, Christian – Nefertiti e Akhenaton. Lisboa: Bertrand Editora, imp. Março 2001. 2ª Edição, ISBN 972-25-1130-0

TAVARES, António A. – Civilizações Pré-Clássicas. Lisboa: Universidade Aberta, 1995. 1ªEdição, ISBN 972-674-141-6

SALES, José das Candeias – As divindades egípcias. Uma chave para a compreensão do Egipto antigo. Lisboa: Editorial Estampa, 1999.

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