domingo, 22 de maio de 2011

FILOSOFIA DA ARTE


Baco e Ariadne, Tiziano
A Arte. Poucos conceitos serão tão evasivos com este. A forma como se pode apreender a Arte é diversa, tanto de época para época, como de cultura para cultura. Mesmo entre indivíduos diferentes se podem verificar interessantes discrepâncias quanto ao que se pode considerar ou não arte. Apesar de a História da Arte ser encarada hoje como uma parte integrante da História, e, portanto, e por si só, uma ciência, a verdade é que o objecto de estudo comporta outras dimensões que não as da ciência em sentido estrito.
Como tão bem descreve Mendieta Nuñez, a arte e o seu conceito prende-se com valores ou objectos que vão para lá do sensível e se entranham decisivamente no âmbito da filosofia ou do pensamento teórico. A arte prende-se com um conceito tão subjectivo como a beleza, uma vez que um dos objectivos primordiais é a produção de beleza. No entanto, aqui esbarramos novamente num conceito tão ambíguo e diverso como quantos o interpretam. A beleza não está compartimentada, e muito menos estandardizada a ponto de dizermos com segurança que determinado objecto é belo por si só.
Logo assim, tende-se a pensar a beleza objecto da arte como um processo e não um conceito. Um meio, como diz Nuñez, e não uma finalidade em si. Sendo que a interpretação artística é eminentemente subjectiva, pois cada observador tem uma opinião e interpretação dessa opinião diferente do próximo a observar o objecto, não é fácil, pois, assimilar o Belo como um conceito absoluto. O Belo, arriscar-me-ia a afirmar, não tem noção. Depende de tantos factores extrínsecos à produção artística que é virtualmente impossível classificá-lo definitivamente. Cada observador tem a sua noção de Belo, ainda que o não saiba ou consiga explicar. Para que tal aconteça, concorrem tantos factores de diversificação como a cultura, a experiência prévia ou até factores fisiológicos ou psicológicos. Aquilo que numa determinada altura nos pareceu belo, numa outra pode deixar de o ser. E note-se que aqui me refiro à experiência individual do observador.
Assim sendo, é mais fácil considerarmos a beleza na concepção do que na interpretação artística. O artista, o produtor de arte, e consequentemente do Belo artístico, assume a beleza da sua obra pela sua produção, não tanto pelo seu resultado, mas mais pelo processo a que tal levou. Subjectivo? Sem dúvidas, mas mais objectivo que considerar a miríade de observadores, cada qual com a sua visão particular de uma obra e sua beleza. Em última análise, assistimos, impreterivelmente, à ditadura artística, uma vez que o artista sabe o que expressou, revela-o através da sua obra e esta é interpretada de milhentas formas diversas. No entanto, apenas a visão do autor é a verdadeira, apenas essa é bela na sua essência, que é a do processo criativo e artístico em si. Quem não produz arte pode eventualmente interpretá-la, mas nunca ter a mesma visão determinada pelo artista e pelo processo artístico, uma vez que nunca passou por ele. Assim, a beleza é entendida mais facilmente como um conceito vago, mas entendível no processo, não raras vezes questionável no resultado final, pois este está aberto à interpretação de quem não faz parte do processo.
Uma das barreiras com que nos deparamos na interpretação do belo e da arte é a contextualização histórica, uma vez que em diferentes contextos e épocas históricas a beleza e a arte eram entendidas igualmente de formas diferentes, inclusivamente, serviam para exaltar valores diferentes. Se recuarmos aos tempos pré-históricos, não podemos deixar de sentir que a aquilo a que chamamos arte rupestre entra, com frequência senão com exclusividade, no domínio da magia e da representação prática desse mundo imaginário, através do qual se procurava atrair a sorte de uma caçada, tão importante para a vida de então.
Transpondo-nos para tempos pré-clássicos, a representação artística, que quase adquiria um sentido de ciência exacta, nomeadamente no Egipto, Suméria e Israel, não mudou grandemente o seu sentido mágico, embora num âmbito humanizante do plano teológico, o que não deixa de ser uma função artística que perdurará até ao final dos tempos. Os tempos clássicos trouxeram-nos a figura humana como humana, e não apenas a representação divina. Mesmo assim, a arte de então assumia um pendor mais utilitário que propriamente lúdico ou artístico.
Na Idade Média, a arte volta às suas raízes místicas, à sua dimensão quase estritamente religiosa. A representação dos Evangelhos ou dos Santos assumiu uma dimensão total. Mas é necessário aqui relembrar que a religião, em tempos medievos, era o âmago das vidas quotidianas de qualquer pessoa. O Humanismo e o Renascentismo conviveram de perto com esta realidade, mas mais uma vez, tal como nos tempos clássicos, a figura humana reaparece. Ajuda este reaparecimento da figura humana à ideia de antropocentrismo. Mais uma vez, uma corrente de pensamento, uma corrente filosófica, tem como coadjuvante a arte. Em último grau, a arte serve como testemunho do pensamento dominante da altura, como uma concretização desse pensamento. Mais uma vez, e como podemos verificar, voltamos ao conceito inicial de arte e de Belo, não como resultado final de uma obra, mas como processo artístico, que expressa um pensamento, ou uma corrente do mesmo, da melhor forma, ainda que a interpretação fosse diversa, até pelo poder vigente na altura, eminentemente religioso. Testemunhos disso são os fabulosos tectos da Capela Sistina, de um fervor religioso impressionante, para a Igreja. De um realismo e antropocentrismo acentuados para o autor. A obra permanece, as interpretações divergem. O processo criativo perpetua-se na obra como objecto pensado pelo autor e não na visão que dela temos ou que alguém possa ter. Daí, a importância científica da História da Arte.
Por outro lado, e como parece explanar de forma clara Huyghe, a Arte parece, em muitos casos, uma expressão de fútil beleza. Esta visão, não partilhada, obviamente, pelo autor citado, mas que parece ser de senso comum, particularmente nos tempos que correm, mais uma vez nos levam ao conceito de arte muito mais como o processo cognitivo que leva à expressão objectiva de um pensamento ou sentimento e não como o objecto em si mesmo. Mais uma vez me parece que esta noção pode ser considerada como redutora, ao reduzir efectivamente a arte ao âmbito do autor da mesma, retirando-a do domínio público, para a situar no do pensamento privado e único. Mas, por outro lado, de que forma poderíamos algum dia abarcar todas as concepções e observâncias exteriores diferentes?
Mas será, efectivamente, a arte, apenas uma expressão de fútil beleza, como diz Huyghe, a quem parece ser o pensamento dominante das pessoas em geral? Na verdade, a verdadeira essência da arte, e o seu paradoxo filosófico, é esse mesmo. Não tendo o conceito fronteiras definidas, não sendo absoluto, nem hermético, sujeita-se a que sejam consideradas expressões artísticas objectos (aqui no sentido lato) que, á partida, como tal não pensaríamos. Uma equação pode ser eminentemente bela para um matemático, e a sua resolução uma expressão artística sublime. E que feliz exemplo, que se me perdoe a modéstia, da noção de arte que defendi antes, pois o que é um resultado de uma equação senão um número. A Arte verdadeira, neste caso, estará no resultado final, ou antes no cálculo, no processo, no raciocínio criativo (ainda que sujeito às leis matemáticas) que a tal resultado levou? Uma obra de arte é um objecto, ou será antes um processo e, consequentemente, um pensamento, uma expressão do mesmo?
E sendo assim, até onde podemos levar a arte expressão do pensamento? A um indivíduo? A um grupo homogéneo? Será que o podemos elevar à dimensão de uma sociedade ou mesmo de uma cultura? Sabemos que tal foi possível no passado, ao nível civilizacional.
Mas, e ao nível pessoal? Poderá o homem viver sem arte? Poderá o ser humano subsistir sem criar? Não será a arte a expressão do que somos, intimamente? Mesmo o indivíduo menos imaginativo pode produzir arte a qualquer momento. No fundo, porque qualquer indivíduo vive a sua existência através dos processos e não em função dos objectos. Se isso é verdadeiro, o resultado óbvio de uma existência pode ser considerado como arte, ou seja, esta funciona como a expressão única da dimensão criativa do ser humano. Sem ela, o ser humano vive em função do objecto e não em função do pensamento. Pensar é produzir arte. Se esta se expressa ou não num objecto é decisão do seu criador.

Trabalho realizado no âmbito da disciplina Património Histórico e Artístico, Lic. em História

sábado, 21 de maio de 2011

AS CRUZADAS


Entrada dos Cruzados em Constantinopla, Delacroix

A forma como se coloca a questão: “Cruzadas, fracasso ou sucesso?” é genérica. As cruzadas não foram um fenómeno que, de qualquer forma, possa ser catalogado em termos de sucesso ou fracasso. Não porque não se conheçam as suas particularidades, mas antes porque há diversas facetas a considerar. Para tal, há dois planos que temos de distinguir e estudar antes de formular uma resposta à questão posta, e essa resposta será sempre algo subjectiva. Quais foram as causas das cruzadas? E quais foram as suas principais consequências?
Há toda uma série de causas para a existência das cruzadas. Quando Urbano II apelou, no final do Concílio de Clermont, em 1095, a que se juntassem à volta da cruz os reinos cristãos, para retomar a posse dos locais santos, ele próprio tinha uma razão para o fazer, que se prendia essencialmente com a reunificação das Igrejas oriental e ocidental sob sua égide. No entanto, outras causas eram igualmente importantes. O próprio conceito de cruzada pode ser encarado como uma causa, pois ao juntar a guerra santa então em voga por força da Reconquista Cristã à ideia de peregrinação, a causa religiosa, não de poder papal, mas ao nível dos seguidores, da sua religiosidade, estava plenamente formada, sendo garantida a remissão de pecados e perdão de dívidas. Logo assim, e perante as regras de sucessão europeias, muitos dos nobres não primogénitos europeus viram nas cruzadas uma oportunidade de adquirir riqueza, poder e até algum feudo resultante das conquistas.
As causas mais ou menos pessoais das cruzadas não são exclusivas. Há também as causas económicas. Os que, no fundo, as financiaram, venezianos, genoveses, pisanos e outros financiadores, viram nas cruzadas uma oportunidade única de estabelecerem um comércio mais próximo e mais frutífero com o Oriente, que era já seu quase exclusivo, mas de forma mais onerosa. Os próprios reinos que aderiram às primeiras cruzadas conseguiram angariar somas impressionantes de dinheiro, o que, inicialmente, poderia fazer pensar que estas expedições eram de facto um bom negócio.
Por outro lado, não há que negligenciar a razão oficial das cruzadas, que era a libertação de Jerusalém, então ocupada pelo infiel. Contudo, não só Jerusalém era importante, pois como acabou por se verificar a partir da terceira cruzada, também Bizâncio e o Egipto se tornaram alvos a tentar subtrair às influências orientais, quer se tratassem de gregos cristãos ou de muçulmanos.
Geoffroy de Villehardouin, que participou na tomada de Constantinopla aos gregos no decorrer da quarta cruzada, descreve, no seu relato, alguns aspectos importantes que parecem corroborar plenamente algumas destas causas para a sua existência. “[...]. Se, pela Graça de Deus, conseguissem entrar na cidade pela força, fariam reunir todo o saque num local da cidade e fá-lo-iam distribuir com equidade pela soldadesca [...]”. Repare-se que, mesmo depois da verificação de todos os preparativos para o assalto, o plano de acção que foi aprovado previamente pelos cavaleiros responsáveis não se prendeu especificamente com os planos de batalha, mas antes na distribuição do saque da cidade. De uma forma mais directa ainda, afirma “[...] e a estes homens ser-lhes-ia pedido que jurassem sobre os Evangelhos em como elegeriam para Imperador aquele que [...]”, e ainda em “[...] seleccionariam doze dos homens mais capazes e prudentes do exército francês e outros doze do exército veneziano, que seriam responsáveis pela distribuição de feudos e ofícios [...]”, ou seja, confirma-se a extrema importância do saque e da distribuição dos despojos, não só objectivos, mas também subjectivos, como as relações de poder a estabelecer, como causa para a participação numa cruzada.
Por seu turno, Jean de Joinville, participante na sétima cruzada, por volta de 1250, liderada pelo rei francês S.Luís, à data tio do imperador de Bizâncio, então já um reino latino a atravessar enormes dificuldades económicas, dá-nos o seu testemunho da trágica tentativa de tomada de Damieta, no estuário do Nilo. S.Luís terá instruído Jean de Valéry, um nobre cavaleiro com fama de justo da seguinte forma: “[...] “-Meu Senhor de Valéry”, disse o rei, “acordámos todos que te devíamos entregar as 6.000 libras que foram entregues ao legado para que tu as distribuas como entenderes melhor.” [...]”, o que confirma, novamente, a importância do saque, até mesmo para um homem pio que se tornaria santo, como o rei Luís. Valéry não aceitou a responsabilidade, contudo, pois não esta forma de distribuição não seguia as regras da Terra Santa. Joinville dá-nos igualmente uma descrição do que faziam os cruzados quanto ao comércio: “[...] Os homens do rei, que deviam ter-se mantido em bons termos com os mercadores e comerciantes, tratando-os bem, fizeram-nos pagar, dizia-se, as rendas mais elevadas que conseguiam pelas suas lojas, nas quais vendiam os seus bens. [...]”. Mais uma vez, as relações económicas bem à frente de quaisquer considerações religiosas.
Correspondendo às causas, temos as consequências das cruzadas. Podemos aflorá-las de forma a que se correspondam minimamente. Assim, a unificação das Igrejas sob o poder de Roma não se verificou. Mesmo depois de Bizâncio
Militarmente, as cruzadas não foram bem sucedidas. Se, por um lado, Jerusalém se tornou, durante um século, um reino cristão, e outros domínios houvesse que eram dominados por cristãos francos, como Edessa, Tripoli ou Acre, a verdade é que Jerusalém, mercê de intrigas palacianas que tenderam a diminuir progressivamente o poder régio em detrimento do poder dos feudos, e do génio militar do sobrinho do sultão Nur-ed-din, o famoso Salah-al-din, ou Saladino, havia de cair irremediavelmente na posse dos muçulmanos. Mesmo Bizâncio, que chegou a ser um Império Latino, havia de ser perdida para os Turcos. Quanto a Damieta e ao Egipto, depois de conquistada por S.Luís, foi rapidamente retomada pelos muçulmanos mediante a queda do próprio rei nas suas mãos, que trocaram a vida do rei pela posse da cidade. Militarmente, só a muito custo poderemos reconhecer qualquer uma das cruzadas como um sucesso, exceptuando a primeira, mau grado a carnificina que se seguiu à tomada de Jerusalém, misericordiosamente não vingada por Saladino mais tarde, quando conquistou a cidade sem resistência.
No plano militar, no entanto, as consequências também se fizeram sentir ao nível da aprendizagem e desenvolvimento de novas técnicas, como nos afirma Geoffroy de Villehardouin: “[...] Estas tinham colocado todas as suas máquinas [de guerra] a trabalhar como deve ser, tinham preparado todas as suas pedrarias e mangonéis e todas as restantes máquinas de guerra normalmente usadas para tomar uma cidade... […]”, o que nos torna óbvios os progressos na guerra de cerco. Árabes passam a utilizar cotas de malha à semelhança dos cristãos, e estes passam a valorizar as leves mas letais armas árabes.
No plano económico, é bem verdade que os cristãos, particularmente venezianos e genoveses, se implantaram firmemente por todo o Próximo Oriente, lucrando com um comércio bem mais directo e lucrativo com os mercadores árabes que lhes traziam as sedas e as especiarias do Oriente. Inversamente, a Europa conseguiu comerciar de forma proveitosa os seus próprios produtos para o Oriente.
Mas foi no plano cultural que as consequências das cruzadas se fizeram sentir com mais esplendor. O contacto com a cultura árabe alargou os horizontes culturais europeus, que até à data, e exceptuando os territórios ibéricos, pouco haviam retirado da fabulosa riqueza cultural árabe, da sua extraordinárias perícia com as matemáticas e demais ciências, com a poesia, a arquitectura e engenharia. Mas não se ficou por aqui a influência árabe na cultura europeia. É das cruzadas que surge o Humanismo, por estranho que possa parecer. Os árabes conservaram todos os escritos clássicos (muitos haviam sido queimados na Biblioteca de Constantinopla, quando foi tomada), dos mestres Platão, Aristóteles e tantos outros autores clássicos. É daqui que surge a fascinação humanista pelo Clássico, de onde retira a sua inspiração para os seus traços principais, o antropocentrismo e a dúvida em relação à autoridade da Igreja.
Um sucesso, um fracasso? Talvez ambos, mas as cruzadas são ambíguas. Que nada seria igual na Europa depois delas acontecerem, é um facto. Principalmente no aspecto cultural.

Trabalho efectuado no âmbito da disciplina de História da Idade Média, Lic. em História.

terça-feira, 17 de maio de 2011

AS INDULGÊNCIAS OU A POBREZA DO CATOLICISMO

A Bíblia de Lutero, em alemão

A Bíblia de Lutero representa, mais que qualquer outro objecto ou realização, a sua época. No fundo, é um objecto que marcará de forma indelével o decorrer da restante História ocidental. Não tanto pelo seu conteúdo, nem pela sua aparência, nem sequer pela língua em que foi escrita (ou re-escrita). Antes pela sua simbologia singular, pelo contexto em que apareceu.
Um contexto complicado rodeou Lutero. Uma época complexa, de sentimentos, correntes e movimentos assíncronos que resultaram num dos períodos mais negros da História europeia, um período de guerras sangrentas que opunham facções religiosas rivais. A antecedê-la, o Humanismo, o Renascentismo. Provavelmente partes de um caldeirão cultural em que a autoridade máxima da Igreja começa a ser posta em causa. No fundo, é disso que trata este singelo texto. Do despertar do homem renascentista europeu para uma outra realidade, diferente da Igreja, diversa de Deus, mas igualmente divina: o Homem e suas realizações.

O Humanismo foi uma corrente cultural, mais do que artística ou simplesmente filosófica. Foi um movimento que gerou não só reflexão, mas também verdadeira cultura, novos modos de encarar o mundo, novas formas de se estar perante o mesmo. Essencialmente, o Humanismo consistiu num regresso ao classicismo grego e romano, ao fascínio da cultura antiga que deu origem à cultura europeia moderna.
O Humanismo distinguia-se por alguns traços distintivos até aí ausentes do pensamento europeu. Antes de mais, o antropocentrismo, expresso numa visão da realidade centrada no indivíduo, no próprio ser humano, integrado numa perspectiva naturista. Obviamente, deriva daqui a busca por modelos clássicos e uma recusa insistente da autoridade que, na época, era protagonizada pela Igreja Romana. Logo assim, inicia-se uma verdadeira revolução cultural, ao nível artístico, é certo, mas ainda mais notória ao nível científico, domínio onde se iniciou uma primazia da ciência experimental em detrimento dos modelos pré-definidos pelas Escrituras, que não admitiam discussão e, mais ainda, não careciam de confirmação. Basta relembrar as controvérsias heliocentristas.
Foi o chamado período do Renascimento. Contudo, mesmo com a força desta corrente que atravessou toda a Europa, a difusão cultural passava ainda pelos velhos modelos monásticos, detentores quase em exclusivo do conhecimento escrito. Esta difusão seria lenta e exasperante, feita através das Academias existentes (Universidades) e das raríssimas Bibliotecas disponíveis. Gutenberg mudou tudo isto. A Imprensa foi a invenção que deu o impulso ao Renascimento. A difusão fácil de cópias dos mais diversos conteúdos literários deram asas ao conhecimento novo, baseado nos modelos clássicos.
Mas, e a Igreja? E as Escrituras? Bem, não é segredo para ninguém que o primeiro livro impresso por Gutenberg foi a própria Bíblia. A Igreja, por um lado, tem a oportunidade única de difundir ainda com mais facilidade e profundidade a sua mensagem primordial. Por outro, esta situação é a menos desejada por Roma.
A Igreja há muito havia caído num remoinho de ambiguidades, de contradições e até de enganos. A Bíblia permanecia a base de toda a doutrina. O problema, no entanto, não era a doutrina, mas sim as práticas. Uma Igreja riquíssima, vivendo de um faustoso modo, era a mesma que apregoava a pobreza e a pureza dos povos. Os instrumentos de que se servia eram a própria negação de tudo o que apregoava. Por isso, e de qualquer forma, a divulgação do conhecimento era uma coisa que não lhe interessava sobremaneira. Acrescia a isto uma evolução social importante, a ascensão de uma nova classe poderosa e rica, a burguesia. A burguesia europeia não via com bons olhos os contributos enormes que lhe eram exigidos por uma Igreja cada vez mais opulenta.
Lutero assiste à venda de indulgências, a salvação proporcionada pela Igreja mediante pagamento. Indignado, publica as suas Teses na porta da Catedral de Wittenberg, iniciando assim a Reforma Protestante. A sua excomunhão apenas atiça os ânimos. Os escritos, agora herdeiros do liberalismo cultural trazido pelo Humanismo e Renascimento, fluem livremente. Erasmo de Roterdão publica o seu “Elogio da Loucura”, e a crítica à Igreja Católica é abertamente assumida. Lutero abomina as indulgências, propõe a ruptura com Roma, funda o luteranismo. Mas vai mais longe, faz tremer os alicerces da doutrina católica, ao pôr em causa os seus mais preciosos dogmas – e assume uma nova postura, a salvação unicamente como resultado da Fé.
Calvino vai ainda mais longe. Refugiado de França (onde iniciou a reforma luterana em 1534) na Suíça, defende os pontos de vista do luteranismo mas evoca valores a juntar à Fé. Para Calvino, a salvação só se atingia através do trabalho árduo, justo e honesto. Daqui até à ideia de predestinação, segundo a qual as almas já estariam, à nascença, predestinadas à salvação, foi um passo. Não que esta predestinação fosse apenas um facto astrológico – ela era plenamente demonstrada através de uma vida de trabalho e austeridade, para além da sobriedade. Denominados como huguenotes em França, os Calvinistas atingiram grande notoriedade em Inglaterra, onde assumiram a denominação de puritanos. As suas querelas com outros credos originaram as famosas migrações para o Novo Mundo.
Em Inglaterra, Henrique VIII funda a Igreja Inglesa, ou anglicana, como resultado da recusa papal na concessão do divórcio de Catarina de Aragão. Funde elementos Calvinistas com a doutrina outrora católica. Aqui se pode ver como muitos estados europeus desejavam um afastamento do Papa, e essa poderá ter sido uma das razões para o sucesso das Reformas Protestantes.
A Igreja Católica reage de várias formas. De 1545 a 1563, o Papa Paulo III reúne o Concílio de Trento, de onde surge a reafirmação das doutrinas e das disciplinas doutrinárias católicas, a salvação pela Fé e obras caridosas, o culto dos Santos e da Virgem, a Autoridade Papal e a tradição católica. Ou seja, o antagonismo completo às teses de Lutero e restantes protestantes. O Cisma torna-se irreversível e a Igreja passa à repressão. O Index Librorum Prohibitorum faz passar pela censura eclesiástica todo e qualquer livro. Inácio de Loyola, em 1540, funda a Companhia de Jesus. Os jesuítas primam pela disciplina, obediência ao Papa e trabalho de evangelização.
A Igreja acaba por instituir a Santa Inquisição, para perseguir, punir e eliminar vestígios dos hereges. Esta perseguição traduziu-se, a médio prazo, nas longas guerras religiosas na Europa Central, onde os protestantes haviam de enfrentar o mais católico de todos os Reis europeus, e dono de um imenso Império, incluindo partes dessa Europa, como a Flandres – Filipe II de Espanha e I de Portugal. Por esta altura, a Bíblia de Lutero fluía livremente, para consolidação da fé protestante, por todo o mundo ocidental.

No fundo, o contexto da Bíblia de Lutero é uma sucessão e encadeamento extraordinários de acontecimentos e movimentos. O pensamento antropocêntrico do Humanismo ajudou ao espírito de contestação à Autoritas. As suas realizações, incluindo a Imprensa, acabam por facilitar a disseminação das teses de Lutero. A doutrina protestante é literal na interpretação das Escrituras, volta a relevar imensamente os valores do Antigo Testamento, valorizando as provações e honestidade do trabalho, e a salvação pela Fé.
A Igreja conduz o processo pela repressão, o que conduz às Guerras Religiosas. Mas para além disso, e como tão bem fazem notar Max Weber e Landes, a riqueza e pobreza das nações traçaram-se nestes dias. Os protestantes ficam possuidores de uma cultura de esforço e rigor. Os católicos acabam por ficar agarrados à Divina Providência. Para sempre.

Trabalho realizado no âmbito da disciplina Temas de Cultura, licenciatura em História.

domingo, 15 de maio de 2011

O PARLAMENTO MEDIEVAL PORTUGUÊS


As Cortes de Leiria - Jaime Barata
As cortes eram, grosso modo, assembleias onde o rei reunia as classes que compunham, ao fim e ao cabo, o tecido social do reino. Havia lugar para membros e representantes da Nobreza, do Clero e dos Concelhos, ou seja, do povo. Normalmente convocadas pelo rei, acontecia igualmente serem auto-convocadas e até marcadas de umas sessões para as seguintes. A realidade é que, presos a considerandos jurídicos ou de carácter jurídico, os estudiosos tendem a considerar, de forma geral, as cortes como acontecimentos onde se apresentavam algumas queixas das diversas classes sociais, face a outras, ou mesmo, mais raramente, face ao rei e seus áulicos. A verdade, no entanto, vai bem para além disto. As cortes não eram apenas reuniões de auscultação do rei para saber o estado do reino. Armindo de Sousa ousa, no seu artigo “O Parlamento Medieval Português”, pôr em causa uma ideia antiga sobre as cortes. Assenta a sua argumentação em três pontos essenciais: as cortes como uma sub-estrutura da estrutura política, o facto de terem sido investidas não de poder mas de autoridade e, finalmente, o facto de serem verdadeiramente representativas do país, e nesse particular, um verdadeiro parlamento.
Particularmente a partir da fundação da II Dinastia, em 1385, as cortes sobressaem como uma verdadeira sub-estrutura da estrutura política da época. Defende Armindo de Sousa, na pág.49 do artigo subjacente, que as cortes assumem este papel de forma nítida. Igualmente outros autores o defendem, sendo que se ressalva o carácter iterativo da instituição, uma vez não se tratar de uma instituição reunida em permanência, mas convocada, mas onde tanto o rei tratava de propor os negócios aos representantes das classes, bem como aceitava tratar de outros assuntos que as classes decidissem colocar em discussão. Apesar da sua iteratividade, não há dúvida que devemos considerar as cortes como uma instituição de carácter legislativo permanente, sendo mais antiga, por exemplo, que o famoso English Parliament.
O facto de as cortes nunca terem tido um regimento escrito deu-lhes uma liberdade de regras que confirmam que a sua origem parece ter sido gradual, segundo A.Sousa. Não resultam de uma imposição de código ou vontade, mas antes mediante a força das circunstâncias. Nesse aspecto, o problema das origens das cortes não é de grande importância, porque esta estrutura cresceu em função da sua época, e serviu os propósitos do seu tempo, não sendo um decalque de qualquer outra estrutura análoga do passado, que por certo teria cumprido funções diferentes, ainda que similares, como as cúrias régias ibéricas.
O segundo ponto de argumentação de A.Sousa é de capital importância, uma vez que revela a verdadeira importância das cortes, e essa é a sua autoridade. Buscando entre os autores de antropologia política, como Beattie e o famoso Weber, inspirador de autores como Landes. A.Sousa pretende distinguir, na época medieval, poder de autoridade. Assim, o poder é baseado na desigualdade social e na dominação. Quem detém o poder necessita constantemente de o legitimar face aos súbditos, através de demonstrações públicas de veneração, na sua vertente sagrada, de aceitação, como garantia de ordem, e de contestação, sua verdadeira razão de ser e forma de se alimentar das diferenças sociais e desigualdades. As cortes não eram investidas de poder. Eram investidas de autoridade. Eram efectivamente investidas do reconhecimento público e universalmente aceite da sua legitimidade do poder da autoridade, em contrapartida com o comummente aceite conceito de autoridade do poder – quase diametralmente oposto. As suas decisões tinham um carácter de autoridade que derivava de muitos factores, mas essencialmente da sua representatividade, terceiro ponto da argumentação de A.Sousa.
A representatividade das cortes era o seu ponto forte de autoridade, de referir que as classes dominantes, o Clero e a Nobreza, tinham outras instâncias onde se reunir e decidir. O povo não as tinha. A verdade é que a representatividade do povo era essencial. Notícias há de assembleias que continuaram sem a presença do Clero, ou da Nobreza, ou de ambos. Mas nunca as cortes se realizaram sem a presença ou representação do Povo. Em parte, aí residia a sua força, a sua autoridade. Os concelhos elegiam deputados às cortes, que eram indispensáveis. Muito se tem argumentado que estes deputados não passavam de transmissores de recados ao rei por parte dos concelhos, sem poder decisório ou de julgamento e voto. Na verdade, o que nos mostram os documentos da altura, e como bem refere A.Sousa, estes deputados eram efectivamente investidos de capacidade decisória no decorrer das cortes, de idoneidade individual.
Este aspecto parece-me ser de particular importância. Um Parlamento não pode ser um local ou instituição onde há constituintes que enviam recados através dos seus eleitos. Não apenas isso. O mandato dos deputados não era apenas o de representação de uma aspiração ou pedido ao rei, mas sim um mandato integral, de juízo permanente, de capacidade de negociação individual em nome dos constituintes dos seus concelhos.
O carácter representativo dos deputados presentes às cortes foi sempre posto em causa pela historiografia tradicional, mas para A.Sousa, efectivamente a representatividade das cortes face ao país era uma realidade. Aliás, outros autores referem-na como uma realidade tangível, até particularmente às cortes castelhanas, em que os deputados não tinham as mesmas faculdades que os deputados portugueses, que formavam o tal areópago do povo. A.Sousa refere que os deputados não eram escolhidos pela quantidade, mas sim pela qualidade, segundo o princípio Maior Pars, Senior Pars, sendo que estes Melhores eram escolhidos pelas suas características, tanto pelos seus concelhos, como por outros que não se faziam representar com gente sua, mas que nestes depositavam a sua confiança – assim sendo, completa representatividade do território. Este constitui o terceiro pilar da argumentação de A.Sousa, que lhe permite afirmar que as cortes medievais portuguesas eram, de facto, o Parlamento Medieval Português.

Texto baseado no Artigo de Armindo de Sousa, O Parlamento Medieval Português, trabalho realizado no âmbito da disciplina de História de Portugal Medieval, Licenciatura em História.

domingo, 8 de maio de 2011

TGV OU A VAIDADE DE QUEM GOVERNA

Foto Google - O TGV do PSD

Ora então chegam cá os homenzinhos do FMI cheios de pressa que se faz tarde e tal, só almoçam sandochas de pasteis de bacalhau, depenicam no copo do palheto, não saem dos escritórios porque é urgente a coisa ser feita. Tomam banho à gato na casa de banho do Ministério, com uns toalhetes Dodot de marca Dia que a empregada da limpeza por gentileza, pena e enjoo do cheiro a sovaco mal disfarçado e de restos de espinha de bacalhau ressequida no balde do lixo, por ali deixou. Os homens do FMI são poupados e quase tanto como o Cavaco antes de ser Presidente dos 23% de portugueses.
Um dos homens tem a tarefa mais ingrata, a de endireitar, com imenso jeito e paciência, os agrafos usados que, com algum jeitinho extra, ainda voltam ao agrafador. Outro foi comprar uma borracha de marca branca e entretém-se a limpar as folhas de cálculo manual, escritas a lápis. Outro ainda dá à manivela para activar o carregador de bateria dos portáteis, montado numa roda de bicicleta com dínamo. Nos primeiros dias ainda iam de táxi para o Ministério, mas agora que viram que a viagem é de apenas cinco kms, vão a pé.
Um dos homens lê uma notícia que acaba de passar na TV local, um irritante canal de nome RTP1, onde trabalham os repórteres que não sabendo bem o que andam a fazer, todas as segundas feiras convidam as mesmas pessoas para convencer o povo daquilo que eles próprios gostariam de o convencer: estão ali apenas para ajudar. Não é verdade, minimamente, mas o importante é arranjar escravos para competir com os chineses. Todos páram de trabalhar. Arrumam tudo à pressa, escrevinham num papel uma mensagem em letras garrafais que deixam sobre a mesa de reuniões.
O papel é encontrado pela senhora da limpeza, no dia seguinte, enquanto despeja as espinhas do bacalhau. Apenas se lê: “VÃO PARA O C@R@£Hº!”. Fotocópias do bilhete são emitidas e enviadas para cada sede de cada partido. Ou seja, apenas três. No PS, acham que os senhores se fartaram simplesmente da incompetência do governo Sócrates e pronto, lá se foram. No CDS-PP, Paulo Portas lamenta a situação, pois agora quem pagará os ordenados da tripulação dos seus submarinos?
No PSD, Catroga lê o papel e exclama a Passos Coelho: “Só porque vamos construir o TGV se chegarmos ao Governo? Mas estes gajos não entendem que o TGV só não se deve fazer quando se está na oposição??!”

sexta-feira, 6 de maio de 2011

DOS ORGASMOS DIÁRIOS

Foto Google

Se calhar até é verdade que Portugal é um país de brandos costumes. “Brandos” é assim uma palavra que me faz lembrar as tias da Assembleia da República. Tipo manso. Já “costumes” costuma designar aquilo que é usual, ou, portanto, usualmente designa algo que costuma acontecer, ou ainda, tirando o “costume” da frase, é aquilo que acontece todos os dias e ninguém estranhava se acontecesse mais vezes, tipo a outra que tem uma doença estranha que requer ansiolíticos e orgasmos com copos de águas das Pedras. Trocando por miúdos, o que Portugal queria era ter muitos orgasmos por dia. Somos um país nitidamente sortudo. Há países que se contentam com orgasmos diários, mas Portugal vai mais além e até já arranjou alguém para o fornicar. Isso, não têm os estrangeiros! Nem os grécios, como lhes chamava um célebre presidente americano conhecido pelas suas conversa tu cá tu lá com Deus, que já passaram da violação para o homicídio passional, nem os irlandeses, que se fartam de passar Halibut no rabo quando deviam era usar Colgate no céu-da-boca.
Portugal vai muito para além disso. Portugal dá-se ao luxo de dizer a essa corja de estranjas toda que aqui quem manda são os portugueses. Bancos, mas portugueses. Ora dos 78 mil milhões de euros (78.000.000.000,00 €) com que fomos pagos por sexo pela nossa mãe Europa, prefigurando um crime de abuso sexual de menores, sendo esta uma mãe claramente com distúrbios mentais, pelo menos 12.000.000.000,00 € vão directamente para os Bancos que não estão stressados. Desconhece-se quantos mil milhões de euros vão ser necessários para dar o BPN e quantos mil milhões irão parar às empresas públicas a privatizar, para que possam ser dadas sem dívidas a alguém que será indemnizado pelo estado se derem prejuízo. Também não se sabe quanto desse dinheiro será empregue para pagar as indemnizações por concursos públicos cancelados, quantos mil milhões terão de ser atribuídos às concessionárias das autoestradas ou para pagar prejuízos de Hospitais privados.
Sabemos de algumas coisas. Sabemos quanto deste dinheiro será para pôr Hospitais a trabalhar melhor – aproximadamente 00.000.000.000,00 € – aliás, valor em comum para pôr o Sistema de Ensino a funcionar, para a revitalização da agricultura, para o nascimento das pescas e para a descasca do amendoim com o esfíncter. Quem esperava que o FMI cá viesse fechar fundações e ministérios, impedir a proliferação de Empresas Municipais, Intermunicipais, Inframunicipais e hipercondríacas, Institutos da Água, dos Recursos Hídricos, dos Meios Aquáticos, do Vinho do Porto, do Vinho de Lisboa, do Vinho do Dão, do Vinho do Recebem, Entidades Reguladoras do Jogo do Berlinde, do Golfe, da Caça e da Pesca, da Pesca à Mão e da pesca à Chapada, diminuir a sangria do Estado para as empresas privadas suas clientes, ou até mesmo diminuir o peso das flores no Palácio de S.Bento, está muito enganado. Para quê incomodar gente importante se podemos comprar o cu do povo?
Não vem nenhuma solução desta gente, já vimos. Interessa-lhes o perpetuar da situação. Interessa-lhes que haja uns parvos na ponta ocidental da Europa que não criem emprego no seu país, para depois cá virem buscar a sua mão-de-obra qualificada ao preço do melhor escravo chinês da actualidade. Sócio, perdi-me… Rejeitar este resgate financeiro é a única saída que temos de poder fazer algo por nós mesmos no futuro. Até porque dar o pacote por dar, mais vale não ser alegremente ao som dos pífaros destes encantadores homens de negro. Sair do euro morto que fede, sair da Europa enquanto temos tempo. Que esperem! Não pagamos! E quê??? Venham cá buscar a Serra da Estrela!

terça-feira, 3 de maio de 2011

DO ARGANA A ISLAMABAD

Mesquita Faisal, Islamabad

Parece que morreu o Bin Laden. Lá para os lados de Islamabad. Ainda não há muito tempo me lembrei dele, a propósito de um sítio onde tomei café aqui há uns meses, o Café Argana. Era bom o café por lá, e era um excelente ponto de encontro na praça Jemna-el-Fna. Felizmente não passei da esplanada e ainda hoje pensei que provavelmente levava com uns tabiques e uns pedaços de trave na moleirinha se aquilo acontecesse naquela altura. Provavelmente safava-me, dependendo do tamanho dos pedaços de trave.
A verdade é que o mundo parece ter-se livrado de um pesadelo. O homem não era boa rês. Quanto aos americanos, sentem agora um enorme alívio. Fazem a festa. Sendo discutível que o motivo de uma festa possa ser uma morte, eu compreendo bem o sentimento americano. É a vingança de um dia tristemente recordado de Setembro. E quem não se sente não é filho de boa gente, diz o ditado. Mas não será só o cumprir de uma promessa, o concretizar de uma vingança que satisfaz os americanos. Melhor, o povo estará por essas paragens dialécticas.
O Governo americano sentirá, antes de mais, um enorme alívio. Finalmente conseguem tapar um enorme buraco no chão da sala de estar. Um elefante a entrar numa loja de porcelanas. Um homem que foi apoiado no passado pela própria administração americana, treinado pelas suas forças especiais, para combater os russos. Um pouco à imagem de Israel com o Hamas, que ainda hoje chorou a morte do monstro, demonstrando não ser melhor que ele em nada. Voltando aos americanos, o desvelar desta novela rocambolesca que se tornou a caça ao Osama, vem com mais um problema.
E o problema, para além das possíveis consequências que terá a morte do líder da Al Qaeda, que por certo se pretenderá (por eles) vingada, é mais um imbróglio interessante da política externa americana, desta feita com os paquistaneses. O Paquistão foi apoiado, financiado, suportado pelos americanos para se tornarem seus aliados. Mas aparentemente pouco fizeram para capturar Bin Laden, que se escondia a escassos metros de uma Academia Militar paquistanesa. Ainda por provar, mas se provada, a duplicidade do jogo dos paquistaneses deixa novamente os americanos em xeque. Não porque tenham sequer culpa disso. Antes porque conseguiram perceber onde se escondia Bin Laden, mas não conseguiram perceber onde está a lealdade paquistanesa. Tal como há vinte anos, com Bin Laden.
Por esta altura, em Nova Deli, alguém deve estar ao telefone com Barack Obama a gritar: “I told you so! I told you so!”