sábado, 21 de maio de 2011

AS CRUZADAS


Entrada dos Cruzados em Constantinopla, Delacroix

A forma como se coloca a questão: “Cruzadas, fracasso ou sucesso?” é genérica. As cruzadas não foram um fenómeno que, de qualquer forma, possa ser catalogado em termos de sucesso ou fracasso. Não porque não se conheçam as suas particularidades, mas antes porque há diversas facetas a considerar. Para tal, há dois planos que temos de distinguir e estudar antes de formular uma resposta à questão posta, e essa resposta será sempre algo subjectiva. Quais foram as causas das cruzadas? E quais foram as suas principais consequências?
Há toda uma série de causas para a existência das cruzadas. Quando Urbano II apelou, no final do Concílio de Clermont, em 1095, a que se juntassem à volta da cruz os reinos cristãos, para retomar a posse dos locais santos, ele próprio tinha uma razão para o fazer, que se prendia essencialmente com a reunificação das Igrejas oriental e ocidental sob sua égide. No entanto, outras causas eram igualmente importantes. O próprio conceito de cruzada pode ser encarado como uma causa, pois ao juntar a guerra santa então em voga por força da Reconquista Cristã à ideia de peregrinação, a causa religiosa, não de poder papal, mas ao nível dos seguidores, da sua religiosidade, estava plenamente formada, sendo garantida a remissão de pecados e perdão de dívidas. Logo assim, e perante as regras de sucessão europeias, muitos dos nobres não primogénitos europeus viram nas cruzadas uma oportunidade de adquirir riqueza, poder e até algum feudo resultante das conquistas.
As causas mais ou menos pessoais das cruzadas não são exclusivas. Há também as causas económicas. Os que, no fundo, as financiaram, venezianos, genoveses, pisanos e outros financiadores, viram nas cruzadas uma oportunidade única de estabelecerem um comércio mais próximo e mais frutífero com o Oriente, que era já seu quase exclusivo, mas de forma mais onerosa. Os próprios reinos que aderiram às primeiras cruzadas conseguiram angariar somas impressionantes de dinheiro, o que, inicialmente, poderia fazer pensar que estas expedições eram de facto um bom negócio.
Por outro lado, não há que negligenciar a razão oficial das cruzadas, que era a libertação de Jerusalém, então ocupada pelo infiel. Contudo, não só Jerusalém era importante, pois como acabou por se verificar a partir da terceira cruzada, também Bizâncio e o Egipto se tornaram alvos a tentar subtrair às influências orientais, quer se tratassem de gregos cristãos ou de muçulmanos.
Geoffroy de Villehardouin, que participou na tomada de Constantinopla aos gregos no decorrer da quarta cruzada, descreve, no seu relato, alguns aspectos importantes que parecem corroborar plenamente algumas destas causas para a sua existência. “[...]. Se, pela Graça de Deus, conseguissem entrar na cidade pela força, fariam reunir todo o saque num local da cidade e fá-lo-iam distribuir com equidade pela soldadesca [...]”. Repare-se que, mesmo depois da verificação de todos os preparativos para o assalto, o plano de acção que foi aprovado previamente pelos cavaleiros responsáveis não se prendeu especificamente com os planos de batalha, mas antes na distribuição do saque da cidade. De uma forma mais directa ainda, afirma “[...] e a estes homens ser-lhes-ia pedido que jurassem sobre os Evangelhos em como elegeriam para Imperador aquele que [...]”, e ainda em “[...] seleccionariam doze dos homens mais capazes e prudentes do exército francês e outros doze do exército veneziano, que seriam responsáveis pela distribuição de feudos e ofícios [...]”, ou seja, confirma-se a extrema importância do saque e da distribuição dos despojos, não só objectivos, mas também subjectivos, como as relações de poder a estabelecer, como causa para a participação numa cruzada.
Por seu turno, Jean de Joinville, participante na sétima cruzada, por volta de 1250, liderada pelo rei francês S.Luís, à data tio do imperador de Bizâncio, então já um reino latino a atravessar enormes dificuldades económicas, dá-nos o seu testemunho da trágica tentativa de tomada de Damieta, no estuário do Nilo. S.Luís terá instruído Jean de Valéry, um nobre cavaleiro com fama de justo da seguinte forma: “[...] “-Meu Senhor de Valéry”, disse o rei, “acordámos todos que te devíamos entregar as 6.000 libras que foram entregues ao legado para que tu as distribuas como entenderes melhor.” [...]”, o que confirma, novamente, a importância do saque, até mesmo para um homem pio que se tornaria santo, como o rei Luís. Valéry não aceitou a responsabilidade, contudo, pois não esta forma de distribuição não seguia as regras da Terra Santa. Joinville dá-nos igualmente uma descrição do que faziam os cruzados quanto ao comércio: “[...] Os homens do rei, que deviam ter-se mantido em bons termos com os mercadores e comerciantes, tratando-os bem, fizeram-nos pagar, dizia-se, as rendas mais elevadas que conseguiam pelas suas lojas, nas quais vendiam os seus bens. [...]”. Mais uma vez, as relações económicas bem à frente de quaisquer considerações religiosas.
Correspondendo às causas, temos as consequências das cruzadas. Podemos aflorá-las de forma a que se correspondam minimamente. Assim, a unificação das Igrejas sob o poder de Roma não se verificou. Mesmo depois de Bizâncio
Militarmente, as cruzadas não foram bem sucedidas. Se, por um lado, Jerusalém se tornou, durante um século, um reino cristão, e outros domínios houvesse que eram dominados por cristãos francos, como Edessa, Tripoli ou Acre, a verdade é que Jerusalém, mercê de intrigas palacianas que tenderam a diminuir progressivamente o poder régio em detrimento do poder dos feudos, e do génio militar do sobrinho do sultão Nur-ed-din, o famoso Salah-al-din, ou Saladino, havia de cair irremediavelmente na posse dos muçulmanos. Mesmo Bizâncio, que chegou a ser um Império Latino, havia de ser perdida para os Turcos. Quanto a Damieta e ao Egipto, depois de conquistada por S.Luís, foi rapidamente retomada pelos muçulmanos mediante a queda do próprio rei nas suas mãos, que trocaram a vida do rei pela posse da cidade. Militarmente, só a muito custo poderemos reconhecer qualquer uma das cruzadas como um sucesso, exceptuando a primeira, mau grado a carnificina que se seguiu à tomada de Jerusalém, misericordiosamente não vingada por Saladino mais tarde, quando conquistou a cidade sem resistência.
No plano militar, no entanto, as consequências também se fizeram sentir ao nível da aprendizagem e desenvolvimento de novas técnicas, como nos afirma Geoffroy de Villehardouin: “[...] Estas tinham colocado todas as suas máquinas [de guerra] a trabalhar como deve ser, tinham preparado todas as suas pedrarias e mangonéis e todas as restantes máquinas de guerra normalmente usadas para tomar uma cidade... […]”, o que nos torna óbvios os progressos na guerra de cerco. Árabes passam a utilizar cotas de malha à semelhança dos cristãos, e estes passam a valorizar as leves mas letais armas árabes.
No plano económico, é bem verdade que os cristãos, particularmente venezianos e genoveses, se implantaram firmemente por todo o Próximo Oriente, lucrando com um comércio bem mais directo e lucrativo com os mercadores árabes que lhes traziam as sedas e as especiarias do Oriente. Inversamente, a Europa conseguiu comerciar de forma proveitosa os seus próprios produtos para o Oriente.
Mas foi no plano cultural que as consequências das cruzadas se fizeram sentir com mais esplendor. O contacto com a cultura árabe alargou os horizontes culturais europeus, que até à data, e exceptuando os territórios ibéricos, pouco haviam retirado da fabulosa riqueza cultural árabe, da sua extraordinárias perícia com as matemáticas e demais ciências, com a poesia, a arquitectura e engenharia. Mas não se ficou por aqui a influência árabe na cultura europeia. É das cruzadas que surge o Humanismo, por estranho que possa parecer. Os árabes conservaram todos os escritos clássicos (muitos haviam sido queimados na Biblioteca de Constantinopla, quando foi tomada), dos mestres Platão, Aristóteles e tantos outros autores clássicos. É daqui que surge a fascinação humanista pelo Clássico, de onde retira a sua inspiração para os seus traços principais, o antropocentrismo e a dúvida em relação à autoridade da Igreja.
Um sucesso, um fracasso? Talvez ambos, mas as cruzadas são ambíguas. Que nada seria igual na Europa depois delas acontecerem, é um facto. Principalmente no aspecto cultural.

Trabalho efectuado no âmbito da disciplina de História da Idade Média, Lic. em História.

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