terça-feira, 17 de maio de 2011

AS INDULGÊNCIAS OU A POBREZA DO CATOLICISMO

A Bíblia de Lutero, em alemão

A Bíblia de Lutero representa, mais que qualquer outro objecto ou realização, a sua época. No fundo, é um objecto que marcará de forma indelével o decorrer da restante História ocidental. Não tanto pelo seu conteúdo, nem pela sua aparência, nem sequer pela língua em que foi escrita (ou re-escrita). Antes pela sua simbologia singular, pelo contexto em que apareceu.
Um contexto complicado rodeou Lutero. Uma época complexa, de sentimentos, correntes e movimentos assíncronos que resultaram num dos períodos mais negros da História europeia, um período de guerras sangrentas que opunham facções religiosas rivais. A antecedê-la, o Humanismo, o Renascentismo. Provavelmente partes de um caldeirão cultural em que a autoridade máxima da Igreja começa a ser posta em causa. No fundo, é disso que trata este singelo texto. Do despertar do homem renascentista europeu para uma outra realidade, diferente da Igreja, diversa de Deus, mas igualmente divina: o Homem e suas realizações.

O Humanismo foi uma corrente cultural, mais do que artística ou simplesmente filosófica. Foi um movimento que gerou não só reflexão, mas também verdadeira cultura, novos modos de encarar o mundo, novas formas de se estar perante o mesmo. Essencialmente, o Humanismo consistiu num regresso ao classicismo grego e romano, ao fascínio da cultura antiga que deu origem à cultura europeia moderna.
O Humanismo distinguia-se por alguns traços distintivos até aí ausentes do pensamento europeu. Antes de mais, o antropocentrismo, expresso numa visão da realidade centrada no indivíduo, no próprio ser humano, integrado numa perspectiva naturista. Obviamente, deriva daqui a busca por modelos clássicos e uma recusa insistente da autoridade que, na época, era protagonizada pela Igreja Romana. Logo assim, inicia-se uma verdadeira revolução cultural, ao nível artístico, é certo, mas ainda mais notória ao nível científico, domínio onde se iniciou uma primazia da ciência experimental em detrimento dos modelos pré-definidos pelas Escrituras, que não admitiam discussão e, mais ainda, não careciam de confirmação. Basta relembrar as controvérsias heliocentristas.
Foi o chamado período do Renascimento. Contudo, mesmo com a força desta corrente que atravessou toda a Europa, a difusão cultural passava ainda pelos velhos modelos monásticos, detentores quase em exclusivo do conhecimento escrito. Esta difusão seria lenta e exasperante, feita através das Academias existentes (Universidades) e das raríssimas Bibliotecas disponíveis. Gutenberg mudou tudo isto. A Imprensa foi a invenção que deu o impulso ao Renascimento. A difusão fácil de cópias dos mais diversos conteúdos literários deram asas ao conhecimento novo, baseado nos modelos clássicos.
Mas, e a Igreja? E as Escrituras? Bem, não é segredo para ninguém que o primeiro livro impresso por Gutenberg foi a própria Bíblia. A Igreja, por um lado, tem a oportunidade única de difundir ainda com mais facilidade e profundidade a sua mensagem primordial. Por outro, esta situação é a menos desejada por Roma.
A Igreja há muito havia caído num remoinho de ambiguidades, de contradições e até de enganos. A Bíblia permanecia a base de toda a doutrina. O problema, no entanto, não era a doutrina, mas sim as práticas. Uma Igreja riquíssima, vivendo de um faustoso modo, era a mesma que apregoava a pobreza e a pureza dos povos. Os instrumentos de que se servia eram a própria negação de tudo o que apregoava. Por isso, e de qualquer forma, a divulgação do conhecimento era uma coisa que não lhe interessava sobremaneira. Acrescia a isto uma evolução social importante, a ascensão de uma nova classe poderosa e rica, a burguesia. A burguesia europeia não via com bons olhos os contributos enormes que lhe eram exigidos por uma Igreja cada vez mais opulenta.
Lutero assiste à venda de indulgências, a salvação proporcionada pela Igreja mediante pagamento. Indignado, publica as suas Teses na porta da Catedral de Wittenberg, iniciando assim a Reforma Protestante. A sua excomunhão apenas atiça os ânimos. Os escritos, agora herdeiros do liberalismo cultural trazido pelo Humanismo e Renascimento, fluem livremente. Erasmo de Roterdão publica o seu “Elogio da Loucura”, e a crítica à Igreja Católica é abertamente assumida. Lutero abomina as indulgências, propõe a ruptura com Roma, funda o luteranismo. Mas vai mais longe, faz tremer os alicerces da doutrina católica, ao pôr em causa os seus mais preciosos dogmas – e assume uma nova postura, a salvação unicamente como resultado da Fé.
Calvino vai ainda mais longe. Refugiado de França (onde iniciou a reforma luterana em 1534) na Suíça, defende os pontos de vista do luteranismo mas evoca valores a juntar à Fé. Para Calvino, a salvação só se atingia através do trabalho árduo, justo e honesto. Daqui até à ideia de predestinação, segundo a qual as almas já estariam, à nascença, predestinadas à salvação, foi um passo. Não que esta predestinação fosse apenas um facto astrológico – ela era plenamente demonstrada através de uma vida de trabalho e austeridade, para além da sobriedade. Denominados como huguenotes em França, os Calvinistas atingiram grande notoriedade em Inglaterra, onde assumiram a denominação de puritanos. As suas querelas com outros credos originaram as famosas migrações para o Novo Mundo.
Em Inglaterra, Henrique VIII funda a Igreja Inglesa, ou anglicana, como resultado da recusa papal na concessão do divórcio de Catarina de Aragão. Funde elementos Calvinistas com a doutrina outrora católica. Aqui se pode ver como muitos estados europeus desejavam um afastamento do Papa, e essa poderá ter sido uma das razões para o sucesso das Reformas Protestantes.
A Igreja Católica reage de várias formas. De 1545 a 1563, o Papa Paulo III reúne o Concílio de Trento, de onde surge a reafirmação das doutrinas e das disciplinas doutrinárias católicas, a salvação pela Fé e obras caridosas, o culto dos Santos e da Virgem, a Autoridade Papal e a tradição católica. Ou seja, o antagonismo completo às teses de Lutero e restantes protestantes. O Cisma torna-se irreversível e a Igreja passa à repressão. O Index Librorum Prohibitorum faz passar pela censura eclesiástica todo e qualquer livro. Inácio de Loyola, em 1540, funda a Companhia de Jesus. Os jesuítas primam pela disciplina, obediência ao Papa e trabalho de evangelização.
A Igreja acaba por instituir a Santa Inquisição, para perseguir, punir e eliminar vestígios dos hereges. Esta perseguição traduziu-se, a médio prazo, nas longas guerras religiosas na Europa Central, onde os protestantes haviam de enfrentar o mais católico de todos os Reis europeus, e dono de um imenso Império, incluindo partes dessa Europa, como a Flandres – Filipe II de Espanha e I de Portugal. Por esta altura, a Bíblia de Lutero fluía livremente, para consolidação da fé protestante, por todo o mundo ocidental.

No fundo, o contexto da Bíblia de Lutero é uma sucessão e encadeamento extraordinários de acontecimentos e movimentos. O pensamento antropocêntrico do Humanismo ajudou ao espírito de contestação à Autoritas. As suas realizações, incluindo a Imprensa, acabam por facilitar a disseminação das teses de Lutero. A doutrina protestante é literal na interpretação das Escrituras, volta a relevar imensamente os valores do Antigo Testamento, valorizando as provações e honestidade do trabalho, e a salvação pela Fé.
A Igreja conduz o processo pela repressão, o que conduz às Guerras Religiosas. Mas para além disso, e como tão bem fazem notar Max Weber e Landes, a riqueza e pobreza das nações traçaram-se nestes dias. Os protestantes ficam possuidores de uma cultura de esforço e rigor. Os católicos acabam por ficar agarrados à Divina Providência. Para sempre.

Trabalho realizado no âmbito da disciplina Temas de Cultura, licenciatura em História.

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