domingo, 24 de agosto de 2014

LIGANDO OS PONTOS


Ilustração Marco Joel Santos
            Nesta data, são tantos os focos de tensão por esse mundo fora que parece que diferentes pontos do planeta estão fora do controlo, numa raiva assassina imparável. Tudo nos leva a crer que um pouco por todo o mundo a raça humana está a perder a pouca sanidade mental que conservava. Puro engano, e só pode acreditar nisso quem ainda é ingénuo o suficiente para não perceber a verdadeira natureza humana. E a verdadeira natureza humana é a ganância. Mas vamos por partes.
            Falemos então dos diversos acontecimentos ao longo dos últimos tempos. Alguém ainda se lembra da Primavera Árabe? Um encadeamento de revoluções em países árabes com as mais diversas consequências. Começou na Tunísia, onde pouco ou nada mudou verdadeiramente, evoluiu para o Egipto, onde o sentimento de arrependimento pelo afastamento de Mubarak se generalizou de tal forma que os membros da Irmandade Muçulmana estão presos ou em fuga. E depois, o verdadeiro cerne da questão, a Líbia.
            A revolução líbia foi provavelmente aquela que foi mais desejada por todo o mundo ocidental. Para os povos ocidentais, Kadhaffi era o estandarte de uma estranha mistura de fundamentalismo islâmico com socialismo à africana. Um mal a extirpar. Para os governos ocidentais, Kadhaffi vinha servindo os interesses de todos, e não devemos esquecer as excelentes relações que este mantinha com a Comissão Europeia e os diversos governos europeus (com o nosso incluído) e até gozava de alguma aquiescência por parte dos americanos. O que mudou então? Já lá vamos. O certo é que a Líbia entrou numa sangrenta guerra civil, que não parou até hoje, pois as facções que derrubaram Kadhaffi enfrentam-se agora de forma feroz, depois de terem tido o apoio logístico e mesmo bélico do ocidente. Curiosamente, o jornalista James Foley foi aprisionado e mais tarde libertado por Kadhaffi. A Líbia está a ferro e fogo.
            Depois rebentou a revolução na Síria. Assad, que sucedeu ao seu pai também Assad começou a ser contestado e daí até à guerra aberta foi um passo. Os insurgentes, com o apoio ocidental, situação análoga à da Líbia, tomaram posse de diversas cidades sírias e ameaçam derrubar o ditador. O apoio ocidental não pode ser directo, por pressão da Rússia, tradicional aliada de Assad. Curiosamente, os EUA afirmam que o jornalista James Foley foi raptado pelas forças de Assad.
            Mais uma revolução que não ficou pela revolução palaciana simplesmente política foi a ucraniana. O poder instalado com o apoio de Moscovo, que representava metade da etnia russa do país, e que rapidamente tinha substituído a teia corrupta da ex-presidente Yulia Timoshenko por uma teia igualmente corrupta comandada por oligarcas ligados a diversos negócios, começou a ser contestada pela parte da Ucrânia que não fala russo, com o apoio do mundo ocidental. Desta vez, foi particularmente interessante ver representantes de Washington e de Bruxelas entre a multidão que se manifestava nas ruas de Kiev. Sobe ao poder uma mescla de pequenos partidos de oposição, com um denominador comum, a extrema-direita. Quem não se lembra da saudação nazi de Arseniy Yatsenyuk quando finalmente assumiu o poder? A Rússia entra na Crimeia por interesse geopolítico, alegando interesse étnico. O que não é inteiramente falso, uma vez que todo o leste ucraniano é de etnia e língua russa. Aliás, e quem sabe um pouco de História sabe, esta parte da actual Ucrânia está no âmago do nascimento da nação russa. Tal como o Kosovo para a Sérvia. Rebenta a guerra que ainda dura. Pelo meio até um avião comercial malaio se disse que foi abatido, e provas de que teriam sido os rebeldes a fazê-lo apareceram em catadupa, ou pelo menos assim foi dito. O que é um facto é que ninguém apresentou qualquer prova disso até agora e se provas há de alguma coisa é de que toda a gente que abriu a boca para acusar os rebeldes do crime já não abre a boca há bastante tempo, o que não deixa de ser interessante.
            Liguemos os pontos, então. Vamos a denominadores comuns a três situações. Às coincidências. Ora, por coincidência, verifica-se que o mundo ocidental, nomeadamente os EUA e a UE estão presentes nas três situações. Por coincidência, todos estes três países têm implicações importantes na produção e fluxo de gás natural da Ásia e da África para a Europa. A Líbia é um grande produtor, a Ucrânia é por onde passam os gasodutos russos que abastecem a Europa Central e a Síria é a principal alternativa para o mesmo intuito para o gás natural proveniente do Golfo e do Afeganistão – curiosamente países ou regiões onde houve recentemente guerras e onde aparentemente guerras ressurgiram.
            Aspectos laterais destas situações que não deixam de ser interessantes. James Foley, que havia sido raptado por Kadhaffi na Líbia e por Assad na Síria, acabou, afinal, por ser raptado na Síria, sim, mas pelos rebeldes, pelo que parece que Assad tinha alguma razão ao negar que tinha sido ele a fazê-lo. Acaba nas mãos do ISIS, Estado Islâmico da Síria e Iraque, e aparentemente executado em directo na internet por um mordomo muito british. A família, entrevistada dois dias depois do aparentemente sucedido, mostrava uma calma impressionante. O próprio Foley mostrava uma calma impressionante no momento da execução, vestido com um sugestivo fato laranja, que é muito comum, como sabemos, em zonas de guerra, particularmente no Médio Oriente. Mais anedótico do que este excelente vídeo são os excelentes vídeos de assassinato em massa perpetrados pelo ISIS, organização que, relembro, foi apoiada pelo mundo ocidental contra Assad…
            Mais um aspecto interessante destas situações são as sanções à Rússia. Aquilo que até agora me fazia sorrir, pois as sanções à Rússia limitavam-se a algumas ténues proibições financeiras contra alguns esbirros de Putin, faz-me agora rir a bandeiras despregadas, com os nossos produtores de pêra rocha, e os produtores de pêssego espanhóis e os agricultores franceses e os criadores de carne britânicos a queimar em praça pública a bandeira da União Europeia. E, imaginem, a Rússia nem sequer ameaçou um embargo energético, que deixaria a Europa Central congelada já este inverno.
            Como dizem os britânicos, “connect the dots”.