sexta-feira, 25 de março de 2011

O MURO


Assistir a um concerto de Pink Floyd é uma experiência curiosa, por variados motivos. Começa pela viagem, e por se notar, aqui e ali, que os fanáticos se vão juntando. Nada de demasiado evidente, como acontece com outras supostas grandes bandas. Nada de bandeirolas nem cartazes colados aos vidros. Mas uma ou outra t-shirt dentro dos automóveis, com símbolos discretos de martelos cruzados, prismas de luz, ou, se tiverem raro bom gosto, as pirâmides de Gizeh, símbolo máximo que a banda adoptou.
Na entrada do recinto, ficamos confusos. É interessante ver a mescla de público que vai entrando. E quem fuma pode sempre ficar a apreciar quem entra. Desde casais sexagenários, quarentões, velhos “freaks” dos anos setenta, intervencionistas de Abril, jovens estrelas do nosso panorama musical, pais com os putos, putos com os pais. Juro que vi um casal de avós com os netos pela mão. Ora bem, um concerto de Roger Waters não é um concerto de Pink Floyd, mas é o que de mais parecido há.
A entrada da banda em palco é impressionante pelos efeitos esmagadores do volume de In the Flesh e pelos efeitos visuais, pirotécnicos no literal sentido da palavra, que culmina no despenhamento do bombardeiro Junkers que ameaça cair do tecto do pavilhão a qualquer momento. A primeira parte de The Wall é emocional. É recordação. São as memórias do jovem Roger Waters, da sua infância e juventude, das suas perdas e desilusões. Que são muitas. É um desfilar de faixas enigmáticas, calmas, de ruídos, de chamadas telefónicas. O muro vai crescendo. Tijolo a tijolo. O culminar da primeira parte é o binómio Goodbye Blue Sky / Empty Spaces, a que não será alheio o facto de ser uma parte do álbum musicalmente poderosa, com orquestração perfeita. E diga-se que depois do Another Brick in the Wall pt2, basicamente um jingle proto-pop, o toque misterioso e a brilhante animação do binómio torna a sensação gigantesca. O muro completa-se com a promessa de suicídio. Waters e a banda desaparecem por detrás da parede.
Ao intervalo, as opiniões dividem-se. Os saudosistas derretem-se em memórias e anseiam pela segunda parte. Os que nunca tinham visto um concerto-ópera rock sentem-se algo desiludidos. Afinal, tinham-lhes prometido um grande espectáculo e até ali tinha havido apenas lampejos. A segunda parte começa como acaba a primeira. Hey You não é uma faixa difícil, vai bem de ouvido, e até o seu poderoso solo é, simultaneamente, calmo e apaziguador. Mas o final da faixa deixa adivinhar o que aí vem. “Divided we fall” é um prenúncio. A vida, então actual, de Roger Waters estende-se à nossa frente. E percebemos até onde pode ir a loucura, consegue compreender-se porque existe um muro de quinze metros de altura e cinquenta de largura em cima do palco e das bancadas. A banda desaparece, toca por trás do muro.
Todas as memórias regressam de forma intensa, misturadas com a perda do casamento. Mais um tijolo. A memória da guerra e da perda prematura do pai é patenteada em Vera, mas especialmente em Bring The Boys Back Home. A música á tão poderosa que tendemos a não reparar no que acontece em cima do palco. O muro acende-se, e explode de raiva. A célebre frase de D. Eisenhower é escrita em vermelho sangue: “Every gun that is made / every warship launched / every rocket fired / signifies in the final sense a / theft / from those who hunger and are not fed / those who are cold and are not clothed”. A mensagem é forte, a música igualmente, o efeito visual de um THEFT com 50 metros é esmagador, as imagens do sofrimento humano, com 15 metros de altura, lembram o mundo onde vivemos. Termina num silêncio atroz. É difícil decidir o que fazer. Aplaudir? Reservar-nos? Recolher-nos? Chorar?
Por esta altura e desde o intervalo os fanáticos já tinham a voz rouca de tanto cantar. Admito que não sei cantar, mas não consegui resistir a uma única linha das letras da segunda parte. Do silêncio incómodo politicamente que se ouviu anteriormente, dos efeitos extraordinários desenhados no muro, do homem tentando saltar à vara sobre um outro Muro em Hebron, parte-se para Comfortably Numb. E a casa vem abaixo. O tema dos temas clássicos de Pink Floyd, considerado pelos historiadores da música como a melhor faixa rock de sempre, põe todos em delírio. O muro está parcamente iluminado, e apenas Waters e White têm “spotlights”. A perspectiva do muro vai-se torcendo, tal como a mente de Pink através da viagem ao mundo do ácido. “It's time to go” e Waters, ou aliás, Pink, é arrastado pelos corredores do hotel em braços. A sua metamorfose completa-se. No auge do solo, o muro explode numa diversidade imensa de fragmentos. Vêem-se a erguer-se as colunas do edifício que Pink constrói para a sua loucura. Um porco negro com dez metros surge por detrás do muro e passeia-se por cima do público, ameaçando investir com os seus dentes pontiagudos. Nele está escrito todo o protesto político do concerto. Está repleto de símbolos e máximas. Run Like Hell é para os paranóicos entre o público. E há muitos. Por esta altura, todo o público está paranóico, está suspenso, hipnotizado, esperando a ordem que, se for para matar, será cumprida. A alienação da qual fugia Waters é levada ao extremo. Ninguém consegue tirar os olhos do muro ou do porco voador.
O ditador do público, aquele que em 1977 se apercebeu que era um deus em frente à multidão, aparece em todo o seu esplendor, e a analogia nazi vem com Waiting for the Worms, esses vermes que pululam pela face do muro em movimentos pulsantes que nos retiram a respiração de receio que invadam a plateia. Waters passa do deus despótico e todo poderoso ao verme e à personificação do Mal. As bandeiras agitam-se, vermelhas e pretas. Surge um enorme exército de martelos a marchar. Não pode durar muito. Tem de acabar, nem o público pode aguentar tanto.
O Julgamento começa. A ópera atinge o seu auge. Tudo o que até ali se viu é escrutinado. Pelo professor, pela ex-mulher, pela mãe. Os três que antes apareceram, gigantescos, sobre o palco. Pink, aliás Waters, é condenado a ser exposto perante os seus pares. Para tal, o Muro tem de cair. “Tear Down the Wall” ecoa por todo o recinto. O público junta-se. O apelo é esmagador, e o muro vai ter de cair. Ribombando e ecoando, o Muro cai. Desmorona-se perante os nossos olhos. O delírio é geral, e nem o final do concerto pode calar aquelas pessoas. Waters e a banda reaparecem, pequenos como formigas por entre os escombros, para rematar com um acústico e artesanal “Outside the Wall”.
E os que, ao intervalo, se sentiam desapontados, são aqueles que agora gritavam “Encore, encore”, ou “bis, bis”. Desconhecem que uma Ópera não se repete, um filme não volta atrás, este concerto nunca mais se poderá repetir. Waters explica, em duas palavras, porque a digressão começara em Lisboa, e em português: “Fantásticos! Vocês são fantásticos!”. E aí foi para debaixo dos escombros. Por esta altura, confesso, chorava...

14 comentários:

  1. EUSÉBIO SANTOS: teria chorado ao seu lado...
    Obrigada por ser um "expert" em PINK FLOYD,por escrever um texto deste gabarito sobre eles, os "eternos"...por lembrar a todos nós ...a VIDA!
    BEIJO
    Mª ELISA

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  2. E a mim só me apetece chorar por ter perdido este concerto... ao menos se tivesse ido as lágrimas eram de alegria e não de tristeza...

    Excelente texto, Cirrus... tem alma! :)

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  3. Maria, quem me dera ser expert em alguma coisa. Ou talvez não, dada a qualidade de experts que vemos por aí... De qualquer forma, é um texto para nós. Não os saudosistas, mas aqueles que realmente têm bom gosto. E essa vida de que fala, essa Vida, para eles, será eterna. Uma exaltação da arte.

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  4. Pronúncia, não comento essa tua primeira parte de comentário. Nem vale a pena comentar, porque já comentei demais esse facto.
    Quanto ao resto, a alma surge quando é dela que retiramos o conteúdo de um texto. E este surgiu-me das profundezas da minha. Não conseguiria nunca dissociá-los da minha existência.

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  5. Fantástico Cirrus!!!

    Quem dera a muitos "críticos" de música vibrar tanto com ela como tu com Pink Floyd, porque quem sente e vive não critica, elogia!

    Adorei e senti-me como se lá estivesse verdadeiramente.

    Obrigada, Cirrus!

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  6. SDaVeiga, o prazer foi meu!

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  7. Olha, sabes que mais?!... Grrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!!!! :D

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  8. Blá, blá, blá, Whiskas saquetas, blá, blá, blá, não pude ir, blá, blá, blá, coisas e coiso?

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  9. Cirrus, fiquei extremamente satisfeito pelo que li. Essa tua descrição foi escrita pelas mãos que seguiram criteriosamente o que foi ditado por um coração saciado e feliz.
    Abraço.

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  10. Cat, podes crer, foram momentos únicos!

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  11. Embora não seja das minhas bandas favoritas, tenho imensa pena de nunca ter assistido a um concerto deles. Ainda tenho esperança que aconteça ))

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  12. Salvador, a Pronúncia parece que sabe umas coisas a esse respeito... Na verdade, não acredito muito. A acontecer, seria a maior digressão de sempre.

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