domingo, 3 de julho de 2011

A GANGRENA

Foto Google

Preocupa-me, de certa forma, que haja lojas de porcelana em que não nos possamos mover livremente, imposição do dono da loja, sempre disposto a chamar a segurança caso rocemos num qualquer brilhante e frágil objecto. A determinado momento, entra o tão mal afamado elefante na loja e toda a gente, inclusivamente o antes tão persuasivo e activo dono da mesma, o ignora nos seus movimentos, não desastrados por natureza, mas por natureza largos de ossos.
A Europa é uma loja de porcelanas. O seu dono, a Alemanha, o principal segurança a França. Os objectos de porcelana são o Euro. Nós somos os clientes que não se podem mexer, e quando digo nós, refiro-me a uma larga franja dos países europeus, apelidados de periféricos, assim como quem refere, desde o Cais do Sodré, a malta da “outra margem”. O elefante é a crise.
Preocupa-me que a morte do euro esteja tão próxima e todos estejam tão empenhados em o equilibrar, não o deixar cair da sua altaneira prateleira, desconhecendo por certo que esta porcelana é de um raro tipo, do tipo que respira e tem vida, e essa vida está prestes a esvair-se perante a acção de um cancro ou quiçá, de um qualquer ataque de E.Coli.
As causas são diversas. A doença parece ter metástases que se infiltraram até no cérebro do paciente, o BCE, ou como quem diz, a Alemanha e a França. O cérebro quase parou, o resto do corpo jaz inerte perante o gáudio daqueles que se preparam para dividir entre si os despojos, quais abutres famintos, deixando os ossos brilhantes ao sol impiedoso do deserto. As hienas refastelam-se.
Portugal faz parte desta história. É para ali um osso perdido no meio da carne putrefacta. A pouca carne que lhe está agarrada está prestes a ser sugada por duas fileiras de dentes aguçados. A Grécia já se descarnou. A Irlanda partiu e sugam-lhe o tutano. Estes três países sairão do Euro muito em breve. Com dívidas avultadas, mercê de diversos factores diferentes entre si, estes países serão em breve expulsos virtualmente da zona euro. Serão sacados ao corpo do Euro, numa intervenção cirúrgica sem anestesia.
Uma das causas, que me parece tão evidente que quase é ridículo falar nisto, é a estanquicidade do euro. A moeda tornou-se muito forte, tornou-se, a nível mundial, uma referência. Muitos negócios são já feitos em euros a nível global. Pessoas que, como eu, estão mais interessadas em conhecer o mundo do que em gastar fortunas vendo coisas que vemos todos os dias em Portugal, preferem passar férias fora da Europa. Levamos euros que deixamos espalhados por esse mundo fora, pelo Norte de África, pela Ásia, pelas Américas. A moeda dissemina-se a um ritmo alucinante. Mas a Europa alemã não permite que seja emitida mais moeda.
Os países periféricos tornaram-se eminentemente importadores, por obra e graça dos centrais, que tudo ditam na Europa, e que decidiram que os periféricos não podem produzir nada a não ser ar e vento, e talvez algum turismo para os abastados habitantes dos centrais. As importações levam os euros a viajar pelo mundo fora. Mas como o número de euros se mantém constante, e se estão espalhados irreversivelmente por esse tal mundo, faltam em qualquer lado, ou seja, aqui. A Europa é um dador de sangue gigantesco, que deu sangue a todos os que lho pediram ou simplesmente a parasitaram. Agora, a Europa tem pouco sangue. O cérebro exige uma enorme quantidade desse sangue para continuar a funcionar, e esse sangue dirige-se, obedientemente, para as células cerebrais. Os membros e órgãos periféricos, como Portugal, Irlanda ou Grécia são deixados exangues, adormecidos e atacados por essa doença terrível que é a gangrena. Terão de ser cortados e deitados fora, antes que as hienas comam o cérebro.
Os bancos portugueses, irlandeses e gregos não emprestaram aquilo que não tinham financeiramente falando. Bem, se calhar os irlandeses fizeram-no. Simplesmente, quando é necessária moeda viva, não há. Não existe um volume de euros suficiente para que a economia funcione. O euro digital deixou de ter correspondência com o euro real, aquele que cada vez menos guardamos, dobrado, na nossa carteira. E há um ponto, na cadeia de financiamento, em que as transferências digitais se tem de converter em notas do BCE. Mas não há. Não há sangue, o membro começa a gangrenar.
A acrescer a isto, há um outro problema. O sistema digital de circulação de capitais em euros é rendibilizado. Ou seja, e naturalmente, quem cede quantias digitais de dinheiro, exige que contra essa cedência lhes sejam entregues juros. Em clima de crescimento acentuado, esses juros podem ser suportados pelo acréscimo de actividade económica, desde que, sobre esse acréscimo sejam emitidos novos euros em conformidade. Mais ou menos o que se passa na espinal medula, que produz novo sangue perante evidências de que o corpo se encontre saudável. Mas, como vimos, não existe nova emissão de moeda. Os juros exigidos apenas poderão ser pagos se crescermos, mas se ao mesmo tempo fizermos crescer o euro. O que acontece é que não há euros para pagar juros. Não há dinheiro que suporte a multiplicação do dinheiro. Isto porque, numa economia estanque, não pode haver financiamento, cada um tem de financiar as suas actividades, pois a manta não estica.
endemicamente marginais, como a Espanha, a Itália ou a Bélgica, ou mesmos recessões violentas, como o que acontece actualmente em Portugal, Grécia e Irlanda, temos aqui uma gangrena generalizada.
A Europa vai cortar os membros adormecidos e atacados de gangrena. O problema põe-se: poderá um corpo sobreviver sem membros e mesmo sem alguns órgãos periféricos, perante o ataque das hienas e dos abutres? Não, a Europa definhará longamente até ser totalmente consumida. Em breve, no espaço de uma geração, a Europa permanecerá um sonho bonito que numa determinada altura quis juntar diferentes povos, concepções, formas de viver, sem ter atenção a esses mesmos pormenores que, afinal, são pormaiores.
Entretanto, o Euro, a afirmação arrogante desta amálgama sem sentido de países totalmente diferentes, desaparecerá sem deixar grande rasto. E isso não demorará uma geração a concretizar-se.

2 comentários:

  1. Excelentes metáforas... (e com preguiça para tecer maiores comentários, porque iria sair testamento com toda a certeza... e os tempos são de crise e austeridade)

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  2. As metáforas são uma forma simples de algumas cabeças mais duras perceberem a dimensão do buraco em que insistem viver.

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