O
facto de nascer uma criança nada tem de extraordinário, excepto para ela
própria que, mesmo não tendo grande consciência disso, passa a existir, apesar
de apenas consistir numa infernal máquina de mamar e cagar e pouco mais.
Algumas choram apenas para chatear os pais, sinal de rebeldia futura e de
adolescência conturbada – coisas que dantes eram normais, agora são Xanax.
Portanto,
quando o irmão da minha esposa foi pai, bem como a sua companheira mãe, curiosamente
da mesma criança, o entusiasmo sobre o nascimento do rebento, fruto do seu
amor, foi geral na família. E se há coisa que não entendo é porque lhes chamam
rebentos ou frutos do amor. Se são frutos, que nascessem numa árvore. Mas
adiante. Foi, portanto, entusiasmo geral. Geral? Não, eu mantive a calma e ouvi
Pink Floyd. Não que ouça Pink Floyd especificamente nestas ocasiões, porque, na
verdade, ouço sempre. Mas mantive alguma calma e distanciamento face ao facto,
uma vez que eu até gosto de crianças desde que estejam em outro fuso horário
diferente daquele onde me encontro. O que, estranhamente, raramente acontece,
diga-se.
Até
aqui muito bem. Viagens para Coimbra, de cá para lá, de lá para cá, aeroporto à
mistura – sim, porque o meu cunhado é engenheiro, e como tal trabalha na Irlanda
do Norte – avós babados, bisavó aparentemente distante mas desfeita de emoção,
tios e tias e mais quem se lembrou, festa e almoços e coiso. O problema foi
quando o meu cunhado se lembrou do baptismo da criatura e convidou os tios
preferidos da mesma para apadrinharem o acto e a criança, tudo ao mesmo tempo. Assim
tipo dois em um. Na verdade, ele já se tinha lembrado uns meses antes. Mas
sabemos como são as coisas, não é? Dizer sim para quê, se ainda falta tanto
tempo? Deixa lá isso, depois vê-se. Esta técnica tem o óbvio inconveniente de
passarmos a não ter escolha quando o tempo que pensávamos ser tanto afinal se
ter evaporado e pronto, até já fomos dados como padrinhos para uma cerimónia a
realizar no mosteiro de Sta.Clara. E isto até nem seria assim tão grave, não se
desse o caso de eu nem ser católico nem, em boa verdade, o que se pode chamar
de cristão na verdadeira acepção da palavra. Só sou cristão por causa do
Cristiano Ronaldo. O que me leva a pensar que também poderia ser ronão. Adiante.
Para
além do facto de a minha querida sogra saber de ginjeira o nome que deu à filha
mas ter trocado os meus apelidos todos quando falou com o padre, e em boa
verdade só tenho dois apelidos, o que torna a questão ainda mais intrigante, e
de não saber onde a filha mora, há os requisitos religiosos da coisa. Ora então,
pelos vistos, e como consequência da minha incúria em ter dado uma resposta
assertiva e negativa ao convite de apadrinhamento em tempo útil ou pelo menos
mais cedo que nunca, que foi o que aconteceu na realidade, é-nos agora
requerido que frequentemos uma “preparação”, com respectiva declaração a
atestar o facto, bem como uma outra declaração a dizer que, na verdade, somos
bons cristãos.
Se
o primeiro requisito já me custa, o segundo tira-me do sério. Assim, ter uma
reunião com o pároco de Leça do Balio (portanto Reitor do Mosteiro e essa treta
toda) não me choca, pois tenho reuniões diárias com clientes. Se a coisa correr
mal, desato a falar de gasoil e fico-me por aí. Já a coisa de sermos bons
cristãos – eufemismo para bons católicos frequentadores de missa e pagadores de
congra – não me parece ser assim tão fácil. A minha esposa é contabilista – o que
por si só invalida qualquer crença no sobrenatural ou mesmo a capacidade,
normal em outro qualquer ser humano, de ter um lado espiritual. Já eu trabalho
numa multinacional petrolífera, e o pároco anda de carro. Parece-me que as
hipóteses de sermos bons católicos são tão grandes como as do Passos Coelho ser
boa pessoa. Não que duvide que ele seja bom, mas já a parte da pessoa deixa-me
desconfiado. Acresce que nunca paguei congra e conheço o mosteiro de Leça do
Balio pelo seu valor histórico e por causa da Feira Medieval.
No
meio disto tudo, não duvido que terei de ir a uma missa, pois tenho de falar
com o padre. E falar com um padre depois de ir a uma missa rezada por ele é uma
coisa. Aparecer-lhe à frente do nada e pedir deste género de favores é outra. Sim,
porque o padre não saberá se estamos ou não a mentir, e optará, caso seja um
gajo porreiro, por dar um “salto de fé”, mais ou menos parecido com o do
Indiana Jones na Última Cruzada, com a diferença de que este se estatela ao
comprido lá em baixo no desfiladeiro. O meu perfil religioso, mormente católico,
deixa algo a desejar e digamos que estou a ser simpático comigo mesmo, coisa
que indulgentemente me concedo de vez em quando.
Além
do mais, muito se fala do conceito de maternidade e de paternidade, já todos
sabemos todos os contornos desses conceitos, embora muitos optem por os ignorar
assim que têm filhos. Mas, e o conceito de padrinhidade? É estranho, não é?
Para já, será que existe um conceito destes? Bem, com este nome, duvido. Mas,
na verdade, o que é a padrinhidade? Fingir que somos responsáveis pela criança
durante a vida? Sermos o seu interlocutor com as entidades superiores nos círculos
religiosos? É que apesar de admirar o Zlatan, duvido que ele seja Deus. E neste
conceito de Deus os animistas têm uma enorme vantagem, ao contrário do que
pensam os monoteístas. Porquê? Ora, podem adorar um boi, é certo, mas pelo
menos vêem o boi! Já cá eu também posso ver bois, mas Deus nunca vi.
Seja
como for, a verdade é que já sou padrinho de um rapagão estudante universitário
consumidor de bons livros e que gosta de cozinhar arroz. E sei o que me custou
ser padrinho dessa vez, e nem tive de sair da minha terra para o ser. Claro que
os cépticos podem aventar que o facto de não frequentar a igreja, só ir a
missas de funerais, escrever umas coisas agressivas no meu blog sobre religião,
não ser crismado, não ter feito a profissão de fé e ter desistido da catequese
aos 9 anos só dificultaram as coisas. O facto é que o padre não ia com a minha
cara, só isso. Mas a verdade é que fui o único que soube abrir a Bíblia no
versículo desejado pelo falecido padre Saul (Deus lhe dê eterno descanso, ou o
diabo calorzinho no Inverno), o que por si só atestou do meu conhecimento das
Escrituras e fez o padre reconsiderar a possibilidade de eu poder vir a ser
padrinho. Claro que quase deitei tudo a perder quando lhe disse que Hitler
também era católico, mas no geral a coisa até correu bem. Mais ou menos…
Esperemos que desta vez não corra muito melhor.
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