sexta-feira, 22 de novembro de 2013

BREVES NOTAS SOBRE ALGO QUE AINDA NÃO ACONTECEU

Ilustração Marco Joel Santos

            O facto de nascer uma criança nada tem de extraordinário, excepto para ela própria que, mesmo não tendo grande consciência disso, passa a existir, apesar de apenas consistir numa infernal máquina de mamar e cagar e pouco mais. Algumas choram apenas para chatear os pais, sinal de rebeldia futura e de adolescência conturbada – coisas que dantes eram normais, agora são Xanax.
            Portanto, quando o irmão da minha esposa foi pai, bem como a sua companheira mãe, curiosamente da mesma criança, o entusiasmo sobre o nascimento do rebento, fruto do seu amor, foi geral na família. E se há coisa que não entendo é porque lhes chamam rebentos ou frutos do amor. Se são frutos, que nascessem numa árvore. Mas adiante. Foi, portanto, entusiasmo geral. Geral? Não, eu mantive a calma e ouvi Pink Floyd. Não que ouça Pink Floyd especificamente nestas ocasiões, porque, na verdade, ouço sempre. Mas mantive alguma calma e distanciamento face ao facto, uma vez que eu até gosto de crianças desde que estejam em outro fuso horário diferente daquele onde me encontro. O que, estranhamente, raramente acontece, diga-se.
            Até aqui muito bem. Viagens para Coimbra, de cá para lá, de lá para cá, aeroporto à mistura – sim, porque o meu cunhado é engenheiro, e como tal trabalha na Irlanda do Norte – avós babados, bisavó aparentemente distante mas desfeita de emoção, tios e tias e mais quem se lembrou, festa e almoços e coiso. O problema foi quando o meu cunhado se lembrou do baptismo da criatura e convidou os tios preferidos da mesma para apadrinharem o acto e a criança, tudo ao mesmo tempo. Assim tipo dois em um. Na verdade, ele já se tinha lembrado uns meses antes. Mas sabemos como são as coisas, não é? Dizer sim para quê, se ainda falta tanto tempo? Deixa lá isso, depois vê-se. Esta técnica tem o óbvio inconveniente de passarmos a não ter escolha quando o tempo que pensávamos ser tanto afinal se ter evaporado e pronto, até já fomos dados como padrinhos para uma cerimónia a realizar no mosteiro de Sta.Clara. E isto até nem seria assim tão grave, não se desse o caso de eu nem ser católico nem, em boa verdade, o que se pode chamar de cristão na verdadeira acepção da palavra. Só sou cristão por causa do Cristiano Ronaldo. O que me leva a pensar que também poderia ser ronão. Adiante.
            Para além do facto de a minha querida sogra saber de ginjeira o nome que deu à filha mas ter trocado os meus apelidos todos quando falou com o padre, e em boa verdade só tenho dois apelidos, o que torna a questão ainda mais intrigante, e de não saber onde a filha mora, há os requisitos religiosos da coisa. Ora então, pelos vistos, e como consequência da minha incúria em ter dado uma resposta assertiva e negativa ao convite de apadrinhamento em tempo útil ou pelo menos mais cedo que nunca, que foi o que aconteceu na realidade, é-nos agora requerido que frequentemos uma “preparação”, com respectiva declaração a atestar o facto, bem como uma outra declaração a dizer que, na verdade, somos bons cristãos.
            Se o primeiro requisito já me custa, o segundo tira-me do sério. Assim, ter uma reunião com o pároco de Leça do Balio (portanto Reitor do Mosteiro e essa treta toda) não me choca, pois tenho reuniões diárias com clientes. Se a coisa correr mal, desato a falar de gasoil e fico-me por aí. Já a coisa de sermos bons cristãos – eufemismo para bons católicos frequentadores de missa e pagadores de congra – não me parece ser assim tão fácil. A minha esposa é contabilista – o que por si só invalida qualquer crença no sobrenatural ou mesmo a capacidade, normal em outro qualquer ser humano, de ter um lado espiritual. Já eu trabalho numa multinacional petrolífera, e o pároco anda de carro. Parece-me que as hipóteses de sermos bons católicos são tão grandes como as do Passos Coelho ser boa pessoa. Não que duvide que ele seja bom, mas já a parte da pessoa deixa-me desconfiado. Acresce que nunca paguei congra e conheço o mosteiro de Leça do Balio pelo seu valor histórico e por causa da Feira Medieval.
            No meio disto tudo, não duvido que terei de ir a uma missa, pois tenho de falar com o padre. E falar com um padre depois de ir a uma missa rezada por ele é uma coisa. Aparecer-lhe à frente do nada e pedir deste género de favores é outra. Sim, porque o padre não saberá se estamos ou não a mentir, e optará, caso seja um gajo porreiro, por dar um “salto de fé”, mais ou menos parecido com o do Indiana Jones na Última Cruzada, com a diferença de que este se estatela ao comprido lá em baixo no desfiladeiro. O meu perfil religioso, mormente católico, deixa algo a desejar e digamos que estou a ser simpático comigo mesmo, coisa que indulgentemente me concedo de vez em quando.
            Além do mais, muito se fala do conceito de maternidade e de paternidade, já todos sabemos todos os contornos desses conceitos, embora muitos optem por os ignorar assim que têm filhos. Mas, e o conceito de padrinhidade? É estranho, não é? Para já, será que existe um conceito destes? Bem, com este nome, duvido. Mas, na verdade, o que é a padrinhidade? Fingir que somos responsáveis pela criança durante a vida? Sermos o seu interlocutor com as entidades superiores nos círculos religiosos? É que apesar de admirar o Zlatan, duvido que ele seja Deus. E neste conceito de Deus os animistas têm uma enorme vantagem, ao contrário do que pensam os monoteístas. Porquê? Ora, podem adorar um boi, é certo, mas pelo menos vêem o boi! Já cá eu também posso ver bois, mas Deus nunca vi.
            Seja como for, a verdade é que já sou padrinho de um rapagão estudante universitário consumidor de bons livros e que gosta de cozinhar arroz. E sei o que me custou ser padrinho dessa vez, e nem tive de sair da minha terra para o ser. Claro que os cépticos podem aventar que o facto de não frequentar a igreja, só ir a missas de funerais, escrever umas coisas agressivas no meu blog sobre religião, não ser crismado, não ter feito a profissão de fé e ter desistido da catequese aos 9 anos só dificultaram as coisas. O facto é que o padre não ia com a minha cara, só isso. Mas a verdade é que fui o único que soube abrir a Bíblia no versículo desejado pelo falecido padre Saul (Deus lhe dê eterno descanso, ou o diabo calorzinho no Inverno), o que por si só atestou do meu conhecimento das Escrituras e fez o padre reconsiderar a possibilidade de eu poder vir a ser padrinho. Claro que quase deitei tudo a perder quando lhe disse que Hitler também era católico, mas no geral a coisa até correu bem. Mais ou menos… Esperemos que desta vez não corra muito melhor.


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