sábado, 26 de junho de 2010

E AINDA A MORTE DE SARAMAGO

Ainda não, porque eu até nem tinha escrito nada sobre a morte de Saramago. Morre o homem, fica a obra. Em última análise, fica o homem também. Não sei se para sempre, mas ficará por algum tempo. Foi preciso morrer para a TV pública em Portugal transmitir os filmes originados nos seus romances. É o habitual tributo aos mortos de Portugal, que condenou os seus maiores símbolos literários à vida e morte miseráveis, como Bocage, Pessoa ou Camões. Outras novelas...
Por esta altura, devem perguntar-se o que faz a foto do bigodinho a apertar a mão do Pio XII, Papa à data dos acontecimentos, que foi um dos principais cúmplices nos crimes do bigodinho. Já lá vamos.
As reacções à morte de Saramago foram, afinal, aquelas que se podiam esperar. O povo relembrou o homem que levou o nome de Portugal aos píncaros, apesar de desconhecer grande parte da sua obra. Os comunistas aproveitaram para enfatizar o comunismo de Saramago, os partidos de direita respeitaram a morte na diversidade de valores que os distinguem de Saramago, o Presidente da República foi igual a si mesmo, ou seja, mesquinho, faccioso e actuando como um Rei eleito por engano, apenas por erro de cálculo de Sócrates e Soares, ao não se dignar pôr os calcantes no funeral.
A reacção que mais gostei foi a da Igreja. Ah!!! Está explicada a foto, ou pelo menos metade dela... E a outra metade, o bigodinho?? Já lá vamos. Hoje é Sábado e não é dia para grandes correrias, principalmente depois do S.João. O facto de a Igreja ter atacado a memória de Saramago um dia depois da sua morte não é nada de mais, já que faz jus à sua longa tradição de cobardia histórica em proteger os poderosos e atacar os mais fracos. Mas há uma frase do editorial do Observatório Romano, jornal oficial desse país fabulástico que é o Vaticano, que é realmente interessante. E diz o seguinte:
"Um populista extremista como ele, que tomou a seu cargo o porquê do mal do mundo, deveria ter abordado em primeiro lugar o problema das erróneas estruturas humanas, das histórico-políticas às sócio-económicas, em vez de saltar para o plano metafísico".
Ou seja, para o Vaticano, a insistência de Saramago em culpar o metafísico pela crise mundial em que vivemos, pelas injustiças e guerras e outras coisas que tal e coiso, é vista como contraditória, uma vez que essas causas devem ser antes procuradas no plano social, estritamente humano. Sabendo eu e todos que Saramago era um ateu tranquilo, segundo as suas próprias palavras, não deixa de ser estranho que Igreja considere que o autor se referia a Deus quando criticava os escritos e acções da Igreja. Saramago nunca intentou criticar Deus, uma vez que não acreditava na sua existência. Logo, as suas críticas recaíam  inteiramente no plano humano, na Igreja. E, por certo, mais na Igreja Católica, mais habitual e massificante nos países em que escolheu viver - Portugal e Espanha. Esta falta de clarividência católica também não é de espantar.
Posto isto, a contradição imensa em que a Igreja incorre é sempre a mesma. Ora, temos que de um lado os teóricos da Igreja apregoam o fundamento social desta Europa e outras partes do mundo como baseado na matriz religiosa judaico-cristã, defendida pela própria Igreja. O Islão e o Judaísmo fazem o mesmo, uma vez que todas se baseiam no mesmo livro e nos mesmo escritos arcaicos e mitos teológicos. Por outro lado, a sociedade que temos tem essencialmente estes valores judaico-cristãos imprimidos em séculos de repressão católica (e dos outros credos), mas tudo o que ocorre de mal no mundo já não é responsabilidade da Igreja, aí já é apenas responsabilidade humana. Chama-se a isto duas coisas, essencialmente: se, por um lado, a Igreja recusa terminantemente que outros valores que não os seus sejam aceites no interior da sociedade criada por si própria, por outro lado, recusa qualquer consequência da... convenhamos... rica cagada que daí saiu. E era a essa dicotomia que Saramago se referia. Penso que nem todos entenderam a mensagem. E eu próprio apenas a entendi ao ler a tal reacção católica. Muito à frente, este Saramago. Podia era ter escrito alguma coisa de jeito. De resto, muito à frente...
Foto O Outro Lado da Notícia

8 comentários:

  1. Podia era ser um bocadinho mais coerente no que toca a atacar as "causas de cegueira"... também tinha as dele!

    Quanto ao mérito literário, reconheço-lho!...

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  2. Pronúncia, Saramago estava num dos extremos, atacando o outro. Ou seja, podemos considerar que, para combater o que se considera mal, cai-se facilmente na tentação de usar outro mal tão mau ou pior. Penso ser esse o caso, uma vez que o marxismo não foi mais do que uma reacção à sociedade demasiado religiosa da altura. O resto... é política.

    Olha, eu não!!

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  3. Sabes bem o que eu penso sobre extremos... não me vou repetir!

    Pois, eu sei!!

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  4. Pronúncia, não me lembro do que pensas sobre extremos...

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  5. Cirrus, não acredito... e, mesmo que seja verdade, não me apetece nada repetir aquilo que já aqui disse 500.000 vezes (ou por aí)!

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  6. Tantas?? Devia estar desatento...

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  7. Saramago foi muito mais do que tu, eu e muitos mais juntos havemos de perceber no tempo de vida que nos ha-de sobrar, mas isso, o tempo vai dizer...

    abraco

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  8. Francisco, concordo e não concordo. Concordo porque Saramago foi uma figura pública que promoveu uma obra que elevou o nome de Portugal. Mais do que eu ou do que tu, não creio. E isso seria perverter todo o meu sistema de valores. Ele fez aquilo que nós fazemos: trabalhou. Não mais do que se lhe era exigido. Não mais do que nos é exigido a nós. Lá porque eu e tu não aparecemos nas notícias, não quer dizer que sejamos menos válidos como seres humanos que Saramago. Admira-me e não concordo nada com essa tua visão do mundo.

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