quarta-feira, 18 de abril de 2012

LIBERALISMO



Em voga está a corrente que afoitamente classifica este governo que agora temos de liberal, ou, na melhor das hipóteses, de neo-liberal. Mas será que quem assim advoga realmente sabe o que é o liberalismo? Será ajustado ideologicamente classificar assim o governo de Portugal?
As origens do Liberalismo remontam ao autor e filósofo inglês John Locke (1632-1704), que, para além de numerosos tratados filosóficos, escreveu dois Tratados Sobre o Governo Civil. A ele, essencialmente, se devem algumas das noções do Liberalismo, como o de propriedade privada e o questionar do direito divino dos soberanos. Filosoficamente, Locke defendia que o ser humano nasce sem ideias inatas, sendo uma tábua rasa pronta a ser preenchida. Por tal razão, defende a igualdade de todos os seres humanos. Até aqui tudo bem, mas Locke procura filosoficamente sustentar a escravatura e defende que o poder político apenas pode ser exercido por uns quantos esclarecidos – e quanto a igualdade dos seres humanos estamos conversados. Para Locke, todos somos iguais, ainda que uns poucos possam ser mais iguais que uns poucos mais outros, e o resto são escravos.
Com Adam Smith (1723-1790), o Liberalismo como ideologia político-económica alcança contornos mais bem definidos. Smith defende, na sua obra maior, “Uma Investigação Sobre a Natureza e a Causa da Riqueza das Nações”, que a economia é impulsionada exclusivamente por esforços individuais com vista a satisfazer o auto-interesse de cada indivíduo. Por seu lado, Stuart Mill (1806-1873) admite governos déspotas em países atrasados, entre outras coisas.
O Liberalismo, como corpo doutrinário político, social e económico inteiramente formado, defende essencialmente:
·         A liberdade individual, conducente à livre iniciativa económica; o Liberalismo rejeita a noção de grupo ou equipa, e a sua máxima “trata uma pessoa como um indivíduo e não como parte de um grupo” é disso elucidativa;
·         Exclusivo da propriedade privada face à propriedade pública e/ou comunitária;
·         Individualismo económico – é visto como uma forma de alcançar objectivos – mesmo os mais desfavorecidos são beneficiados porque se esforçam para melhorar a sua condição;
·         A entrega da condução do Estado Constitucional aos detentores dos meios de produção;
·         Completa exclusão do Estado da economia, sendo para este reservado apenas o papel legislativo, sendo que o regulador económico é representado apenas pelas leis de mercado;
·         Sufrágio reservado às elites financeiras e económicas, detentoras do exclusivo político;
Quando se dá a Revolução Francesa, em 1789, o Liberalismo tem a sua primeira grande oportunidade de expansão fora do mundo anglo-saxónico. Mas Rousseau não defende o Liberalismo político. Os ideais da Revolução aproximam-se dos ideais liberais, mas rejeitam o seu primado político. Para os revolucionários franceses, todos são cidadãos e todos, sem excepção, devem participar politicamente – o sufrágio torna-se universal. Interessante será que a condição de igualdade entre todos os cidadãos agradaria, por certo, muito mais a Marx do que a Locke ou Mill.
Isto é o Liberalismo. Isto é o que os portugueses que referem tantas vezes a perspectiva liberal deste governo, estejam a favor ou contra essa perspectiva, deviam saber. Podemos, num exercício puramente académico e altamente especulativo, verificar a situação, ponto a ponto, do governo português face às premissas principais do Liberalismo.
Assim, em Portugal tem-se apelado, cada vez mais, ao empreendedorismo. Mas não esqueçamos que, basicamente, essa dimensão económica esconde, por vezes e das mais das vezes, arriscaria eu, o individualismo ou mesmo o egoísmo económico. Face aos valores comunitários que sempre imperaram na sociedade portuguesa, em que a identificação de um indivíduo no seio do seu grupo sempre foi essencial, pode vislumbrar-se uma mudança de paradigma do social-democrata para o liberal, de facto.
No que respeita à propriedade, o Liberalismo defende que esta deve ser exclusivamente privada e não pública. A que assistimos na actuação deste governo? À alienação, onerosa ou não de grandes partes do património do Estado. As privatizações, aliás, têm sido catastróficas para a economia nacional, uma vez que o estado tem feito investimentos avultados para desenvolver negócios lucrativos (mormente na energia e água), para depois os entregar a privados. Mais um ponto liberal deste governo e dos que o antecederam? Até certo ponto. Mas há uma inversão de papéis quando se assiste ao grosso do investimento por parte do Estado em empresas vendidas depois em ponto de pleno funcionamento, ou seja, o investimento privado não é estrutural, mas conjuntural, ao contrário do que defende a doutrina liberal.
Já me debrucei sobre o individualismo, mas convém referir que a visão liberal de individualismo, que pode, de certa forma, ser ligado à de liberdade (não no sentido colectivo mas estritamente individual) não implica a liberdade política ou social. Apenas a económica. Para se ser um cidadão de pleno direito, num estado puramente liberal (coisa que nunca existiu e facilmente se provará nunca poder existir), tem de se ter propriedade considerada suficiente para tal. Ou seja, a liberdade política e social só se atinge depois de ultrapassadas as barreiras censitárias. Neste aspecto, estamos longe, em Portugal, de tal situação. Pelo menos para já. O sistema social e político liberal assemelha-se, em certos aspectos, às monarquias feudais da Idade Média, nos termos estritamente políticos e sociais – não no económico.
A entrega da condução do Estado aos detentores dos meios de produção (no sistema económico denominado por capitalismo, os “capitalistas”) é uma realidade portuguesa desde há longos anos. Sócrates funcionou ao serviço de um conjunto de lobbies empresariais. Passos, como toda a gente sabe e finge que desconhece, é um pupilo de um dos homens com mais ramificações empresariais em Portugal, Ângelo Correia, um homem cujos negócios principais, não por acaso, talvez, estão na esfera dos negócios inteiramente subsidiados pelo Estado (Lixo, Água, Energia renovável, etc.). Não é um grande exercício de imaginação supor que Passos esteja efectivamente ao serviço dos detentores dos meios de produção, ou pelo menos alguns deles.
A completa exclusão do Estado da economia é uma utopia. Nenhum país o conseguiu até agora e nunca o irá conseguir, por razões demasiado óbvias que não interessa aqui escalpelizar. Mas ideologicamente, podem fazer-se aproximações razoáveis a esse objectivo, e exemplos desses Estados são, por exemplo, os EUA e a Inglaterra. Nos antípodas deste estado de coisas, temos países socialistas moderados, como a Suécia e restantes nórdicos, com um peso enorme do Estado na economia. A questão da aproximação desse objectivo é inequívoca no que respeita aos princípios ideológicos e sociais – particularmente estes – deste governo. Os cortes sociais são muitos e variados e adivinham-se movimentações para a privatização da Educação e Saúde.
O sufrágio, em Portugal, é universal. Até mais que isso, pois até alguns mortos e enterrados têm direito a voto. Não será fácil, seja a quem for que ocupe um governo em Portugal, revogar esse direito, em nome de seja que imperativo seja. Mas temos de convir que a nossa tradição democrática tem poucos anos. Uns poucos de República em que até Sidónio Pais revogou esse direito e desde o 25 de Abril de 1974. Estaremos assim tão preparados para resistir, se esse for um objectivo de um governo – em abstracto, não especificamente este – revogar o sufrágio universal? Se calhar vai depender de alguns factores mais ou menos exógenos, mas vale a pena pensar e acautelar essa situação. Digo eu…
Portanto, será este governo liberal? No sentido clássico do Liberalismo, sim, quereria ser. É liberal, o mais que pode. Só penso é que devemos todos saber porquê e não atirar chavões para o ar. Aqui expus as razões pelas quais este governo – e atenção, os anteriores igualmente, mormente o de Sócrates – é uma aproximação ao liberalismo. A ausência de estímulos governamentais ao crescimento económico e combate ao desemprego é a maior marca de um governo liberal. E essa é indelevelmente a marca do nosso governo. Resistirá muito tempo a rejeitar o liberalismo? Provavelmente não. Esperemos, na minha singela opinião, que não.

10 comentários:

  1. Empreendedorismo é o quê? Ter um recanto numa sala para coser paninhos de cozinha?
    Já ninguém aguenta a conversa do "seja o seu próprio patrão"!!
    Liberalismo ou aproximação ao mesmo, o que vale é a situação em que nos meteram! E não é nada boa!

    P.S. Texto excelente, como é teu hábito!

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  2. Conheço um sem abrigo que agora vende livros a 50 centimos...enveredou pelo empreendorismo?quanto à recessão é simples: só com uma recessão durante anos se destroi o estado social, e esse é o objectivo dos senhores do dinheiro, governo, e UE que tb tem essa meta!

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  3. Infelizmente as ideologias há muito que deixaram de existir (apesar de cada vez mais precisarmos delas), e pelo rumo que o Mundo levou, estou convicta que tanto uma como a outra deram muito mau resultado e estão condenadas ao fracasso, com tudo de mau que daí já resultou e continuará a resultar.

    Tenho para mim que o ideal (e esta talvez seja a minha ideologia) seria aproveitar o que uma e outra tem de melhor e esquecer os extremos... afinal "no meio é que está a virtude", já dizia a sábia da minha avó Luísa.

    Ainda que mal pergunte... socialismo moderado na Suécia?!...

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  4. Malena, empreendedorismo é a arte de saber falar bem sem fazer a ponta de um corno. É desse empreendedorismo de que se fala.

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  5. Tripalio, é óbvio que o objectivo principal é ideológico, sim, e não deve andar longe do que disseste, não...

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  6. Pronúncia, nunca como agora a luta foi tão ideológica. E apenas porque sim. Porque convém. A Europa é governada por um directório ultra-liberal, e disso já ninguém tem quaisquer dúvidas.

    Quanto à Suécia, um país com o nível do seu Estado, que detém mais de 50% da riqueza, que atenuou discrepâncias sociais da forma como atenuou, um país onde praticamente não há pobres, mas onde também não há ricos... A que chamas esse regime? Uma Terceira Via? Talvez. Em todo o caso o ideal sueco (de todos os governos que para lá vão) é eminentemente social. Logo, socialista. Penso que não há muitas dúvidas relativamente a isso...

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  7. Pois, o que não deixa de ser interessante é que é um socialismo que foi implementado por um estadista social democrata e que tem sido mantido por consecutivos governos conservadores de centro-direita onde, nas últimas eleições (2010), até a extrema direita tem lugar.

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  8. Apelidar Olof Palme de social democrata é correcto. O incorrecto é dizer que Olof Palme era de direita. Deixo-te esta citação, que podes encontrar na wikipédia, que mostra bem o que era Palme: "Palme was said to have had a profound impact on people's emotions; he was very popular among most left-wing sympathizers, although an outspoken anti-communist, but harshly detested by most liberals and conservatives.[9] This was due in part to his international activities, especially those directed against the US foreign policy, and in part to his aggressive and outspoken debating style."
    Como vês, aquilo que disse não está tão longe da verdade como alguns desejam que estivesse... Palme podia ser social-democrata, mas era odiado pelos conservadores, e não um, como dizes ou queres dizer.

    Mais do que ser ou não governada por conservadores, lembro-te que a Suécia é um país inteiramente socialista nas suas bases - que Palme fundou - pois advoga o mais alto nível de apoios sociais do Mundo e é, actualmente, das democracias ocidentais, o país com mais alto grau de estatização. Ou seja, o país em que o Estado possui mais da economia, incluindo emprego. Ora, por exclusão de partes, não pode ser um país governado à direita, nem que te torças toda. Isto são marcas de socialismo puro, e só não de comunismo porque têm uma economia de mercado não planeada. Por outro lado, praticamente erradicaram a pobreza mas também a riqueza. Não há ricos na Suécia. E o mais rico sueco de todos teve de sair da Suécia para o ser, não esqueças.

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  9. Apenas pretendi ilustrar o meu primeiro comentário em que disse, e reafirmo, que as questões ideológicas puras não fazem de todo sentido, o que para mim faz sentido é aproveitar-se o que de bom cada ideologia tem.

    Não me torço nem vou torcer toda, nem sequer achei, e muito menos insinuei, que o que disseste estava longe da verdade... mas interpretaste assim, tudo bem.

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  10. Não discordo do que dizes. Como já por muitas vezes afirmei, não há sistemas maus. Há pessoas más. Provavelmente também não há sistemas bons, apenas pessoas boas. No entanto, continuo a afirmar que a Suécia e, de um modo geral, as democracias nórdicas, são norteadas por soluções socialistas - estruturais, não conjunturais. Basta vermos a discrepância entre os direitos sociais suecos e os que agora nos propõe este governo. Basta compararmos o peso do Estado na Suécia com aquele que nos querem fazer crer ser o ideal para Portugal.
    Quanto ao torcer... Eh pá, bem te podias torcer um bocado. Às vezes torcer é fixe...

    ;D

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