terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A DIÁSPORA

Ilustração Marco Joel Santos
Trabalho escrito para a disciplina de História do Judaísmo, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião



No século VIII, na Alta Idade Média ou Idade das Trevas, dois factores haviam de moldar os espaços pelos quais a diáspora judaica se havia espalhado. Na Europa, o Império Romano havia-se cindido em dois, e por esta altura já o Império do Ocidente havia caído às mãos dos bárbaros, enquanto o Império Oriental se debatia em estertores que em breve dariam lugar a Bizâncio. Por outro lado, no Próximo Oriente e Norte de África, uma nova fé havia estendido o seu domínio pelas armas, desde a Pérsia até Cartago e, em breve, Marrocos. Assim sendo, o período da Idade Média foi passado pelo povo judeu, de uma forma geral, sob domínio bárbaro franco-germânico a norte e muçulmano a sul.

Apesar de o domínio secular e religioso das regiões onde habitavam os judeus não lhes pertencer, nunca as comunidades judaicas enjeitaram o seu próprio governo, sujeito, muito embora, ao poder vigente. Neste período, o governo destas comunidades espalhadas desde a Babilónia até à Península Ibérica foi assegurado, em termos espirituais, religiosos e éticos pelo chamado “governo dos Sábios”, também conhecido por Catedocracia. As academias, regra geral, exerciam esse poder, e uma dessas instâncias, o gaon de Babilónia, assumia particular importância para o mundo judaico. Paul Johnson, na sua História dos Judeus, assegura-nos: “Na Idade das Trevas, essa catedocracia babilónica era também um judiciário hereditário, a instância final de apelação para toda a diáspora. Falando estritamente, não lhe assistia qualquer poder físico. (…) Mas possuía o poder da excomunhão (…). Gozava também do poder do seu conhecimento”.

Como tal, o poder destes sábios, entre academias e indivíduos sábios, dos quais se vem a destacar Maimónides, cuja caracterização é importante e mais adiante será aflorada, não se prendia com qualquer tipo de poder temporal ou secular mas antes e apenas pela autoridade do seu conhecimento religioso, ou seja, pelo seu conhecimento da Lei. E a Lei judaica não é mais que o conjunto de escritos bem conhecido: a Torá, a Bíblia e o Talmude, este último não tão escrito, mas mais revestido de tradição oral. As academias – gaon – de onde emanava esse poder eram os sucedâneos do Sinédrio, o órgão legislativo supremo nos tempos do Templo de Herodes, o Grande. Eram, pois, constituídas por homens sábios na Lei. Espalharam-se, tal como a diáspora, sendo de assinalar a presença de grandes academias em regiões muçulmanas, como a cidade santa de Kairouan, na actual Tunísia, ou Granada e Córdova, durante o califado Al-Andaluz, em Espanha.

Não será demais referir que este poder era tão forte quanto o poder secular sob o qual existia. Exemplo disso foi o Al-Andaluz, aquando da invasão almóada, que acabou por expulsar os judeus do califado, até aí perfeitamente integrados na sociedade andaluza, mas sempre com o estatuto de dhimmi, ou seja, de não-muçulmano, algo discriminatório. Foi desta onda de refugiados, que extravasou em diversas direcções – desde a Espanha cristã, França e mesmo Norte de África e Egipto – que saiu Maimónides. A sua família refugiou-se em Fustat, a cidade velha do Cairo, e bem cedo revelou a sua faceta de estudioso e sábio.

 O povo judeu, fixado por toda a bacia mediterrânica e pelo norte europeu, depressa desenvolveu capacidades que faziam falta aos territórios onde se fixavam. A estas capacidades não será alheio a forma de encarar o estudo e as letras. Johnson, por exemplo, diz-nos: “Em resumo, como o formulou um historiador, a família era importante e o êxito comercial era útil, mas a erudição era essencial”. A erudição a que Johnson se refere é mais do que conhecimento geral, é o conhecimento da Lei. Os judeus desta época acreditavam ter maior capacidade de erudição que os restantes, e, de certa forma, estavam correctos. Advinha principalmente do estudo da Lei, pois para um judeu a Lei continha todas as respostas às questões da vida. Como tal, a vantagem judaica face aos demais baseava-se na sua capacidade de estudo e erudição, mas traduzia-se essencialmente no plano burocrático (financeiro e económico) e científico (os mais proeminentes eruditos judeus, como Maimónides, eram, além de mercadores e prestamistas, médicos), o que lhes permitia escalar facilmente a hierarquia vigente e aproximarem-se dos detentores de poder secular, quer no caso dos territórios árabes, quer nos cristãos. A Lei, por exemplo, não permitia a usura entre judeus, mas permitia a usura de judeus sobre membros de outros credos.

No plano religioso, os judeus viveram em eterna dualidade. Por um lado, sábios havia, como o referido Maimónides, que defendia a racionalização da Lei, ou seja, conferia, através dos seus escritos e “governo”, uma base racional para uma Lei que não o parecia ser. Isto porque, principalmente no Talmude, a Lei se emaranhava em conceitos vagos que não permitiam que a razão prevalecesse na procura de respostas. Por outro lado, havia outros sábios, como Namânides, que defendiam um rigorismo legal baseado no estrito cumprimento da palavra da Lei.

Fosse como fosse, a função mais proeminente e pela qual mais eram conhecidos os judeus era o empréstimo de dinheiro a juro. Obviamente, este facto trazia-lhes inimizades consideráveis, e as perseguições iam-se sucedendo, quer na Europa quer nos territórios muçulmanos (como no caso de Al-Andaluz). No século XI, quando a Primeira Cruzada foi lançada, já o anti-semitismo estava instalado, muito por esta razão. E se a Cruzada foi terrível para todos os envolvidos directamente, não o foi menos para a diáspora judaica, que serviu como “corpo de treino” aos cruzados antes do embarque.

As coisas iriam piorar muito por acção de algumas figuras históricas como Eduardo de Inglaterra que, por cobiça dos bens dos judeus, permitiu não só que as maiores calúnias fossem sobre eles lançadas, como o libelo de sangue (assassínio ritual de crianças para expiar o pecado da morte de Cristo) ou o roubo de hóstias, que depois torturariam (Corpo de Cristo), como acabou por organizar enormes pogroms, acabando na expulsão definitiva de Inglaterra. Nos territórios árabes, as coisas corriam de forma mais pacífica, se bem que sempre que havia ondas fundamentalistas os judeus acabavam por pagar, com a vida ou com humilhações a nível social.

De uma forma ou de outra, as coisas nunca foram fáceis para os judeus nos territórios onde se fixaram. Mas sem dúvidas que o período mais negro para a diáspora judaica foram os séculos XIV e XV. Em Espanha, são criados os famosos “debates”, entre os eruditos cristãos e os judeus, que mais não eram que farsas organizadas para julgar a fé judaica em praça pública. Por outro lado, nunca esquecer que os próprios cristãos foram adquirindo as técnicas dos judeus, e chegaram ao ponto de dominarem perfeitamente a usura (por exemplo, os “bancos” Templários), fazendo dos judeus uma comunidade dispensável.

Por outro lado, o anti-semitismo primário começou a cavalgar as mentes cristãs de forma insistente, mais insistentemente que nos territórios muçulmanos. Em breve, por toda a Itália e França, se davam expulsões. Na Espanha, foi criada a Santa Inquisição, para aquilatar das qualidades dos marranos, conversos à força à fé cristã. A questão dos cristãos novos acabou por ser uma espada de dois gumes. Se, por um lado, os judeus escapavam à fogueira por professarem a sua fé, agora associada por dominicanos e franciscanos ao culto do diabo, por outro, tornavam-se alvo das maiores desconfianças e eram perseguidos novamente por suspeitas de professarem o judaísmo em segredo – o que, diga-se em abono da verdade, era certo na maior parte dos casos.

A história judaica na diáspora é pontuada pelo contraste. Se, em determinada altura, tinham liberdade de culto e lhe eram toleradas as suas tradições, muito porque estavam na posição de credores (e sabiam estar nessa posição), outras houve em que a cobiça pelos seus bens e créditos lhes selava o destino (curiosa a associação ao Templários, aniquilados pela mesma razão). E finalmente, a desumanização progressiva do judeu, dada principalmente na Alemanha, havia de trazer as funestas consequências que todos conhecemos. Aliás, a expulsão da Península Ibérica e da Alemanha terão sido as piores fases da diáspora judaica antes do século XX. Johnson afirma: “A ideia de que o judeu conhecia a verdade [acerca de Cristo], mas a rejeitava, preferindo trabalhar com as forças da escuridão – e, portanto, não podia ser humano no sentido em que os cristãos o eram – já estava bem estabelecida”.

Por outro lado, os muçulmanos não parecem ter desenvolvido um sentimento análogo ao dos cristãos relativamente aos judeus. Religiosamente, os judeus eram uma religião do Livro e não aceitaram Maomé, mas também não lhe fizeram mal algum. Os cristãos apontavam-nos como os carrascos de Cristo.

 Bibliografia:

·         JOHNSON, Paul – História dos Judeus. RJ: Imago, 1995. 1ª Edição, ISBN 853-120-421-6

·         HOLTZ, Theo A História dos Judeus. São Paulo: Via Lettera, Janeiro de 2009. 1ªEdição, ISBN 978-85-7636-082-7

·         DELUMEAU, Jean – As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Presença, 1997. 2ª Edição, ISBN 972-23-2241-9

10 comentários:

  1. Malena... delícia de texto.
    Li e reli... A frase final é clássica e o Papa João Paulo II refêz a história....
    Os judeus não foram responsáveis pelo morte de Cristo. A autoridade romana e alguns judeus o foram. A massa foi apenas usada...
    Recomendo-te um site de Portugal:
    www.ruadajudiaria.com
    Ele fala, inclusive, do massacre de judeus em Lisboa em 1504 me parece...
    Gostaria que além de meu blog erótico (esse) você vistasse meu site de poemas...
    www.integraldemim.blogspot.com
    Teu texto é brilhante.....um ensaio histórico!
    Parabéns!
    Marco

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    1. Não é meu, o texto, infelizmente! Este blog é do meu amigo Cirrus Minor e eu escrevo aqui como convidada de vez em quando. Erro meu ter posto o link direccionado para o blog e não para o meu post...
      espero, porém, que continues a visitar este espaço porque vale a pena ler o Cirrus, quer em registo sério como este, quer em registo humorístico.

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  2. Só lembrando que os cristãos novos foram responsáveis por grandes progressos em Portugal.
    Você sabe que Pedro Álvares Cabral - descobridor do Brasil - era judeu ????
    Beijos moça!

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    1. De fcato o texto é meu, mas igualmente se agradecem os elogios.

      Quanto ao facto de Cabral ser judeu, não é certo que tal assim seja. Cabral era descendente de duas ilustres famílias pré-fundação. Contudo, não seria novidade. Cristóbal Cólon quase por certo seria judeu, e outros grandes da navegação portuguesa, como Bartolomeu Dias e Diogo Cão tinham sangue judeu.

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  3. Pois cá pra mim, que sou agnóstico, o que conta são as pessoas.
    Há as pessoas boas e as pessoas que não são boas, ponto!

    Não posso contudo escamotear a realidade histórica e reconhecer que houve (haverá ainda hoje) credos que foram perseguidos de forma desprezível, em determinados momentos no Tempo.
    Situação evitável, percebessem as pessoas que isso dos deuses é coisa da sua imaginação.

    (também será verdade, que não sendo pela religião, haveria de ser outro o mote para se andar às turras; os homens são uma puta duma raça tão imperfeita...)

    Shalom

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  4. ¯\_(ツ)_/¯

    (Já vai longe no tempo e nas brumas da memória...)

    ;)

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    1. A nossa vida é o passado. Não é o presente nem o futuro. É o que vivemos e como vivemos. E o Homem viveu muito mal até agora. Não é coisa do passado, pelo contrário. É coisa do Homem.

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  5. Não me pronuncio sobre agiotas...

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