Acordei com uma irreprimível
vontade de ser português. Ora, em Agosto, e no norte de Portugal, sê romeiro. Bota
os pezinhos a caminho de Viana do Castelo para ir passar um dia à romaria da
Senhora da Agonia. Em Portugal há muitas coisas bonitas, e sem dúvida Viana é
uma delas. Sempre gostei desta pequena cidade nortenha, bem alcandorada no cimo
do mapa do país, com aspirações a metrópole nunca conseguidas, para bem das
suas gentes e mais de quem a visita.
Viana, outrora da Foz do Lima,
actualmente do Castelo, conserva muito do seu encanto devido ao facto de,
apesar de ser capital de distrito, continuar a ser uma pequena cidade que se
pode, sem grande dificuldade, percorrer de lés-a-lés a pé, coisa que não
conseguimos fazer em Coimbra ou Braga. A sua traça é encantadora, marcada pelo
omnipresente Lima e pelo mar, mas conservando os seus sinais antigos, muitos
dos quais remontando à era medieval. Além disso, tem ainda o encanto de ter
tradições.
Ora tradições podem ser boas ou
más. Não deixam de ser tradições por serem boas ou más, apenas são e serão
tradições, enquanto houver força para as conservar. Quem conserva tradições é
conservador, tradicional ou tradicionalmente conservador? Talvez seja
conservadoramente tradicional. Em todo o caso, Viana conserva algumas tradições
interessantes. Para mim, uma das tradições que conservo quando vou a Viana é
comer bem. E tenho tido pouca dificuldade em manter essa tradição. Mas aí já lá
vamos.
Como a cidade é encantadoramente
pequena, deixar o carro longe é impossível, e assim que o largamos rumamos para
a festa dos cabeçudos e gigantones, e estávamos nós a fazer a nossa discreta
aparição à Praça da República e começava o espectáculo. Bem sei que não estavam
à nossa espera, mas será demasiada presunção minha pensar que sim? Provavelmente,
até porque a praça pululava de gente entusiasmada, empoleirada nas varandas
sobranceiras e na fonte, e em redor dos enormes gigantones que, um a um, foram
elevados e postos a rodopiar pela praça fora, ao som ensurdecedor de inúmeros
grupos de Zés P’reiras e por entre o frenesim dos cabeçudos que corriam de um
lado para o outro, acrescentando um urro de dor de um petiz que por alguma
razão o largou, e que, mesmo para um nortenho de gema como eu, pareceu quase
estrangeiro: aauuuu-eeeeee! Em vez de aauuuu. Outro dos encantos de Viana:
falam uma língua parecida com português, parecida com galego, mas com um
sotaque meio russo, meio inuit.
A fome é uma ciência universal e a
sua linguagem é mais que isso, não dando tréguas a ninguém. Costuma dizer-se
que a única coisa certa na vida é a morte, mas é mentira. A fome é uma coisa
certa na vida. Mais tarde ou mais cedo, vamos senti-la. E é tão bom que a
possamos saciar. E podemos. Por enquanto podemos, pelo menos enquanto não
houver crescimento económico exagerado que nos leve o resto que o que temos
agora já arrebatou. A carne da Casa de Armas é boa. Muito boa. Aconselho. É
mais do que aquilo que um pobre romeiro pode pagar, é certo, mas vale a pena. Certo
mesmo é que a Casa de Armas estava já bem cheia quando nos sentamos na
esplanada a contemplar o hábito muito português de marcar lugares nos sítios de
cortejos e procissões com cadeiras desdobráveis.
As cadeiras desdobráveis são
provavelmente o maior mistério das romarias portuguesas. Ainda na Viagem
Medieval de Santa Maria da Feira (o maior acontecimento cultural do Verão
nortenho) nos sentamos todos no chão, em frente ao exuberante castelo, para ver
o espectáculo. Mas as romarias são diferentes. As cadeiras desdobráveis
aparecem como cogumelos ao longo da rua e são incontornáveis. Depois lá vão
aparecendo os donos, normalmente menos idosos do que seria de supor, embora
idosos o suficiente para reclamar uma primeira fila. O grande mistério é que me
parece que quando as coisas acabam e as cadeiras são novamente dobradas e
postas debaixo do braço direito, os idosos que as usaram, às vezes menos idosos
do que seria de supor, estão tão esgotados e com tantas cãibras como os que
ficaram em pé, pacientemente, por detrás das filas de cadeiras. Um mistério
ortopédico, portanto.
Mudamos de poiso e fomos visitar o
Gil Eannes, o famoso navio-hospital que andou por terras novas, na então gloriosa
época de Corte Real, mas que, já no seu período de uso, eram velhas de quatro
séculos de atribulada história de pesca do bacalhau. Uma visita barata,
interessante e de alguma beleza plástica, dada a elegância do navio e a vista
de Viana que se vislumbra da doca onde está estacionado. Cuidado com as escadas
exteriores, não se armem em heróis.
Depois mudamos o poiso novamente
para a Igreja do Carmo, para ver o cortejo histórico e etnográfico. Que valeu a
pena. Trajes bonitos, bons carros, boas recordações da nossa história. Atrás das
cadeiras desdobráveis, evidentemente. Outro mistério é o facto de as mulheres
vianesas usarem três toneladas de ouro ao pescoço e não se ver sequer um homem
trajado com um mero relógio – de pulso ainda compreendo, mas de bolso, pelo
menos… pelo contrário, usam as suas camisas com coraçõezinhos e floreados,
bordadas à mão, e seguem submissamente atrás das soberbas vianesas douradas das
orelhas até à cintura. Não sei se é compensação por lhes fazerem a vida negra
nos outros dias ou simplesmente porque se estão pouco importando com os bens
terrenos. Ou então sei, mas não digo.
Os mistérios não acabam por aqui. Quem
diria que sairia da romaria de Viana, a da Senhora da Agonia, em condições de
ir directamente para a romaria de Barcelos, a Festa das Cruzes? É que as minhas
estavam com uma vontade de ter tido uma cadeirinha desdobrável durante o dia…
Portugal é cansativo, mas mesmo
dando uma de português popular, de visita a uma romaria, numa belíssima cidade
conservadora e deliciosamente reaccionária, não me canso.
És um Portuga festeiro como deve ser! :)
ResponderEliminarBela descrição e bela homenagem á rainha das festas do Norte, a Sra. da Agonia.
Abraço de Minhota do coração, Cirrus!
*à
ResponderEliminarGafeira, como é hábito! :)