segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

MISR

Foto Google

Arranjar um assunto difícil sobre o qual pudesse escrever ás 11:00 de uma noite fria de Domingo nunca foi tão fácil. Egipto. País que não existe, na realidade. O país chama-se MISR, e não Egipto. Mas isso é outra história e toda a gente conhece o país como Egipto e está tudo bem. Além do mais, não falamos árabe.
Tunísia, Egipto, Jordânia... Enfim, países do Médio Oriente e norte de África são para mim muito queridos. O Egipto particularmente. Muito se tem falado sobre o país e o seu presidente, o eterno Mubarak. Os egípcios são afáveis, gente simples com bom trato. Não são tradicionalistas, e o Egipto é o país árabe mais liberal em termos religiosos, de longe. O estado é laico e embora a religião dominante seja a islâmica, não é frequente verem-se burkas ou nikabs. Há uma minoria de cerca de 12% da população que é cristã (não confundir com europeus – são cristãos árabes – também os há), que tem liberdade de culto.
O Egipto é o centro do mundo árabe. O Cairo tem o maior museu arqueológico do Mundo, e é a cidade capital da cultura árabe. É uma urbe de proporções assustadoras, sendo que o Nilo divide a cidade em duas partes distintas, al-Qahïra, de doze milhões de habitantes, e Gizah, de seis milhões, e ao fundo da principal avenida desta última encontram-se as Pirâmides. Num centro comercial, perto do Hospital Central de Gizah, encontrei 46 lojas, sendo que 20 eram de lingerie. É um mundo de contrastes, é uma cidade feia com belezas imensas, grandiosa na sua confusão diária de pó do deserto, comércio desenfreado e trânsito caótico. Cidade onde aterrar de avião é sempre uma aventura extraordinária.
A revolta no Egipto é do povo. O povo egípcio está a pedir mais democracia, mais reformas económicas, menos corrupção. O sistema político egípcio cinge-se a uma palavra: Mubarak. A economia, estruturada em volta das três principais fontes de rendimento: agricultura, primeiro, turismo, depois, e finalmente os recursos minerais (petróleo, fosfatos, metais, etc.), está a dar sinais de evidente ruptura, perante um acréscimo de população de 1,25 milhões por ano. A corrupção é palavra de ordem, e a gorjeta aplica-se a todos os níveis da sociedade egípcia.
É natural a revolta. Mubarak está há mais de 30 anos no poder. O povo anseia por uma cara nova que lhe dê esperanças para o futuro. O problema não é a revolta, mas sim o que dela pode sair. Mubarak não é um homem religioso, e na retina fica, a nível de exemplo, a sua lei que proibiu o uso de nikab ou burka no interior das universidades. É essencialmente um homem prático, que não hesita em fechar as fronteiras com Gazah assim que o Hamas tomou posse do seu governo, que não hesita em manter vivo o acordo de paz com Israel, tão importante para a região, que não hesita em alinhar com o Ocidente em questões de equilíbrio regional. Evidentemente, é um homem incrustado no poder, sem capacidade de delegação, que tudo controla, e que, muito provavelmente, sorve grande parte das riquezas imensas do país. Tudo isto pesado, pede-se que abandone o poder, para que se possa instalar uma democracia.
Mas que regime poderá emergir desta revolta? Assumindo que Mubarak abandone o poder, o que não é ainda certo, será que o Egipto pode vir a ser uma plena democracia? Pode. Poder até pode. Mas estou algo céptico. A esperança, é bem sabido, é a última a morrer, mas organizações potencialmente perigosas como a Irmandade Muçulmana alinham-se rapidamente com os manifestantes. Esta Irmandade está conotada com o Hamas e com o Hezbollah, são fanáticos religiosos que, a troco de uma suposta melhoria das condições de vida do povo, pode implantar-se no poder, decretar a República Islâmica e revogar o Estado Laico. Não precisamos de recuar muito para constatar o que aconteceu no Irão há mais de 30 anos e que ainda perdura. Tenho esperança, mas tenho também um enorme receio de que este país, antes aberto a quem o quisesse visitar, que não impunha qualquer código religioso, em breve se possa tornar em mais um bastião religioso.
Por outro lado, e tal como aconteceu na Tunísia, é preciso questionar os nossos líderes ocidentais. É preciso perguntar-lhes porque apoiaram ditaduras tão longas, por que razão Ali e Mubarak eram considerados amigos do Ocidente mesmo sendo ditadores. É preciso saber por que razão a Ministra dos Negócios Estrangeiros francesa se prontificou a ajudar Ali com meios de controlo de rebeliões urbanas. É necessário fazer estas perguntas todas. E acima de tudo, é necessário que o Ocidente se dê conta do que está a acontecer a tempo. Se a evolução dos acontecimentos levar a democracias plenas, óptimo. Se levarem a Repúblicas Islâmicas, perguntar-se por que razão o povo árabe decide aglutinar-se contra o Ocidente. É necessário lembrar que o problema do Médio Oriente foi criado por uma deficiente descolonização dos países europeus dominantes – o Reino Unido, a França e até a Alemanha – que por diversas vezes e muito tempo se limitaram a lavar as mãos como Pilatos.
A única coisa de que posso estar certo é que o que ficará será sempre a extrema simpatia e simplicidade do povo egípcio. E a sua forma de ver o mundo: o Céu é o Misr, o inferno é tudo o mais.

17 comentários:

  1. Para além das notícias sobre o Egipto, também tenho lido alguns artigos sobre o tema. Um dos que mais me chamou à atenção (não me lembro nem onde o li e nem quem o escreveu) falava sobre a possibilidade de estes distúrbios poderem estar a ser orquestrados precisamente por fanáticos religiosos e que um dos objectivos é a Arábia Saudita... não é nada animador.

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  2. Misr la! Mysra! [Misr não! Mysra!]
    Chokran [Obrigada]

    Os egícios são gente boa, mas é lixado quando um povo só tem história antiga (MUITO antiga, no caso) e não há grande tradição que os una no presente...
    Será o nosso futuro?!?

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  3. Pronúncia, é cedo para dizer. Eu acho estranho que o país mais liberal do mundo árabe seja alvo de uma revolta quando temos países bem mais fechados (Líbia, Árabia Saudita, Koweit) em que aparentemente tudo esteja bem... E o Irão? Não há nada no Irão? É estranho...

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  4. SDaVeiga, lê-se Mysra, mas escreve-se MISR.
    Não creio, e além do mais a história mais recente do Egipto (últimos 900 anos) é interessante. Motivo para unir o povo em redor da ideia de uma nação.
    Só que, ao invés dos Europeus, os árabes não olham as fronteiras como limites nacionais - a nação não é a egípcia ou líbia, mas sim a árabe. São todos árabes e sentem-se como tal. O país onde vivem é apenas uma contingência.

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  5. Bom dia, Cirrus... ))

    Era inevitavel. Os Tunisinos deram o pontapé de saída, contagiando o restante mundo árabe. Agora o Egipto (País que muito gostaria de conhecer), amanhã outro.
    A vontade do povo acaba sempre por vingar.

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  6. O tal artigo que li focava também essas questões que colocas e dava conta da estranheza relativamente ao Irão... os próximos tempos vão ser cruciais...

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  7. Salvador, só acho estranho que os países mais liberais sejam aqueles onde se verifica a revolta. Há países com muito mais necessidade de revolta que a Tunísia e o Egipto. Desconfio muito das reais motivações de tudo isto.

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  8. Pronúncia, imagina só o Egipto no mesmo estado religioso que o Irão...

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  9. Nem quero sequer pensar nisso. Só de imaginar já é um pesadelo...

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  10. Pois é, mas é sem dúvida um pesadelo onde o chamado Ocidente teria toda a responsabilidade - tal como no Irão, há 30 anos, agora o Egipto. E pouco se aprende com os erros.

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  11. Eu mantenho a esperança na democracia. Acredito que é isso que a maioria do povo e a maioria dos jovens pretende. Vamos ver. Um abraço

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  12. Pulha, eu esperança até tenho. Mas não me deixo enganar. Vai haver, pelo menos, tentativa de infiltração religiosa fundamentalista na estrutura de um Estado Laico. O que, não parecendo, pode vir a ser uma dor de cabeça.

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  13. Há um jogo de computador, o Civilization, em que temos de gerir nações e populações que, quanto mais desenvolvidas, mais insatisfeitas.
    Um dos truques para evitar distúrbios populares é mudar a forma de governo e uma das que mais "os acalma" é o fundamentalismo. Claro que o desenvolvimento é muito mais lento, mas não temos chatices e eles têm mais pontos de ataque que os habitantes de democracias ou mesmo só de monarquias.
    Não é minimizar a situação nem coisa que se assemelhe, mas apenas dar uma dica porque é que nos países mais fechados não estão a ocorrer estes distúrbios: porque o regime, por uma razão ou outra, não dá asas a issso.
    Uma das razões porque eu não gosto de política é porque se assemelha demasiado a esses jogos, em que, independentemente do que sucede ao "povo", os "jogadores" têm a sua própria agenda e nada os demove dela, venham quantos danos colaterais vierem.
    A realidade é mais estranha que a ficção...

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  14. Ai é nesse Egipto? Eu, como só tenho visto na televisão falarem do Egito, pensei que era um país novo... afinal é a merd... do acordo.

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  15. SDaVeiga, talvez tenha razão. A questão aqui é se o Egipto se vai tornar ou não um desses países...

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  16. Johnny, o interessante é que em inglês ficou na mesma Egypt...

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  17. nem sei o que dizer, senão que pensei em tudo o que disseste anteriormente.

    é uma situação complicada, especialmente se o fundamentalismo triunfar e a irmandade muçulmana detiver o poder.

    mas podemos sempre ser positivos e optimistas e pensar que tudo correrá pelo melhor.

    sabes o que mais me marcou nas notícias? todos aqueles maravilhosos museus saqueados e pilhados, múmias destruídas, relíquias valiosíssimas perdidas para sempre...

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