domingo, 3 de abril de 2011

CONTINUIDADE CULTURAL TARDOANTICA

Agostinho e a Igreja, Google
A continuidade cultural a que se assistiu na transição da Antiguidade Clássica tardia para as épocas subsequentes, mormente as invasões bárbaras e o período medieval, é um facto que não pode ser explicado apenas pela consubstanciação geográfica. De que modo, então, se preservaram os saberes clássicos, através de que mecanismos, que factos contribuiram para que tal acontecesse, e mais ainda, se tornassem na base daquilo que conhecemos como cultura ocidental?
Diversos historiadores consideram que o ponto fulcral para que a herança clássica, fundamentalmente grega, persistisse até hoje, terá sido a batalha das Termópilas, em que um pequeno exército espartano conseguiu derrotar uma imensa horde persa. Não deixam de ter alguma razão, embora os receios do ponto de vista cultural acabassem por se revelar infundados. Os persas tinham uma visão cultural muito mais aberta do que se julgava. Mas não é só nesta batalha que os persas jogam o futuro da herança cultural europeia. O jovem imperador Ciro acaba por ter um papel importante neste aspecto, ao libertar o povo hebreu do exílio na Babilónia por ele conquistada. De que modo podemos relacionar ambos os factos? É que à herança cultural clássica juntou-se um movimento religioso baseado no judaísmo, o cristianismo, que só existiu porque a libertação do exílio se efectivou.
Ora, na altura de Agostinho, há muito que o cristianismo era uma realidade palpável, sendo à altura a religião de Estado do Império Romano. Aparentemente, e à primeira vista, seria incomportável que um cristão relevasse a cultura clássica, nessa época considerada tardia, na valorização da sua fé. No entanto, não é por acaso que tal sucede. Ao invocar o êxodo do povo hebreu do Egipto, Agostinho sabe do que fala. A sua alegoria da prata e ouro que os hebreus tomaram para si nessa altura, relacionando-os com as verdades doutrinárias que a antiguidade clássica contém para um cristão, bem como o vestuário que os mesmos hebreus retiraram do Egipto, como sendo as instituições dessa mesma antiguidade, Agostinho toca num ponto interessante, que é a da continuidade cultural que se deu na época do êxodo. Basta ler os mitos egípcios para nos apercebemos das similitudes com as profecias judaicas, que haviam de ser cumpridas para dar corpo ao cristianismo. Osíris ressuscitou ao 3ºdia, e forma uma trindade de deuses com sua irmã e mulher Ísis e o seu filho Hórus. A Arca da Aliança, tão parecida com as barcas cerimoniais egípcias.
Melhor alegoria Agostinho não poderia conceber. Ele sabe que a matriz do cristianismo é essencialmente de cariz judaico, e que este é em parte baseado no Antigo Egipto. Mas simultaneamente sabe que o cristianismo não é judaísmo. Sabe que a fé cristã é um produto originalmente concebido na Judeia, mas essencialmente desenvolvido por Roma e pelo poder imperial que daí emana. Sem o poder imperial por trás, o cristianismo provavelmente ter-se-ia desintegrado como aconteceu com o hermetismo ou o zoroastrismo. Roma fez do cristianismo uma religião global. Nos sécs. IV e V da nossa era, tempo de Agostinho de Hipona, a religião cristã era já um legado judaico. Mas seria também um legado da tradição clássica.
A legitimação da antiguidade clássica tardia é um feito de Agostinho e de Jerónimo. Ambos estavam convencidos de que, embora usados para a adoração de demónios, os saberes clássicos eram válidos como valores a ensinar e a preservar. Estes saberes, ao invés de terem sido inventados ou criados pelo homem clássico, seriam apenas materiais em bruto, refinados pelo uso da intelectualidade humana. No fundo, não eram pertença dos pagãos, estes apenas se serviam deles porque deles se apropriaram indevidamente. O uso devido e sublimação desses saberes ocorreriam quando utilizados na defesa da fé cristã. Agostinho foi hábil na manipulação dos mesmos. A sua principal preocupação era a homilia, a pregação, o sermão, através dos quais espalhava a fé e combatia o paganismo. Que melhor forma de o fazer senão empregando as técnicas oratórias utilizadas e ensinadas por um grande orador latino (romano), como Cícero? Os três níveis da oratória de Cícero são por ele defendidos: o humilde, para o ensino; o moderado, para encantar; o sublime, para convencer.
De referir que a exegese cristã é feita unicamente através das Escrituras. Todo o conhecimento cristão provém da Bíblia. Logo, Agostinho utiliza as técnicas clássicas para ensinar os neófitos a fazer essa exegese. Ou seja, as técnicas clássicas de interpretação passaram a ser utilizadas para a adoração do Deus único e não para a adoração dos demónios pagãos, cujos ressurgimentos pontuais Agostinho combatia com veemência.
Ao associar desta forma o conhecimento clássico à fé cristã, Agostinho acaba por moldar o futuro da continuidade cultural ocidental. E esta continuidade ia muito para além da latinidade. Agostinho comparava frequentemente os textos em latim com os originais textos em grego, associando dessa forma, não só a antiguidade clássica tardia mas também a alta à matriz cristã. Jerónimo, por exemplo, foi ainda mais longe, ao preferir o Antigo Testamento em hebraico.
O Império havia de ruir. Agostinho não o sabia na altura, caso contrário teria provavelmente feito ainda mais esforços por preservar o conhecimento e cultura clássicos. De qualquer das formas, ao pôr ao serviço da exegese cristã, da catequese dos neófitos e da propagação da fé os preceitos da literatura, da oratória e, de uma forma geral, das artes e cultura clássicas, legitima-os aos olhos da fé cristã, e acaba por assegurar uma continuidade cultural que moldou o que hoje se conhece como cultura ocidental. Na altura em que finalmente o Império ruiu, já os bárbaros estavam cristianizados, e já as Regulas que regulamentavam o ensino monacal, entre elas a Regula Magistrer e a Regula Beneditina, haviam sido compostas e haviam de assegurar que a continuidade tivesse sucesso, mesmo através dos tempos conturbados que se seguiram à queda. Mas, na realidade, foi graças ao último grande vulto literário do Império, Agostinho, Bispo de Hipona, Santo Agostinho, que não se terá perdido para sempre um precioso legado: a Antiguidade Clássica. 

Trabalho elaborado no âmbito da dsiciplina Temas de Cultura, Lic. História, 1ºAno, Bibliografia Omitida

2 comentários:

  1. "o humilde, para o ensino; o moderado, para encantar; o sublime, para convencer" Se o humilde fosse suficiente para o ensino seria bom... ;)
    Obrigada pela partilha! :)

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  2. Malena, eram outros tempos. Nessa altura a humildade era de parte a parte...

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