terça-feira, 31 de janeiro de 2012

PORTUGAL AGORA, PORTUGAL DE OUTRORA

Ilustração de Marco Joel Santos
25 de Janeiro de 2012 – Não que Portugal mereça ter uma língua inteira só para si. Não vou invocar a História de Portugal. Todos nós a desconhecemos bem.
Este país provavelmente não merece ter a língua que tem. Talvez os Baptistas americanos, os Polibãs lá do sítio, é que tenham razão – nós falamos muito mal o espanhol, seja lá o que for essa língua desconhecida.
Mas, no fundo, lá estou eu a cair nos maiores vícios portugueses, a auto-comiseração e o auto-flagelamento. Um português que não diga mal de Portugal não é um português decente. É provavelmente um descendente de algum mouro que por cá tenha ficado a arrotear para D. Afonso I, ou então de algum romano mal disfarçado ou até, quem sabe, o resultado de um estranho cruzamento com o chauvinismo arrogante que impera do outro lado da fronteira.
Contudo, pensemos bem. Eu tinha motivos para gostar de Portugal. Tinha, mas sinceramente começam a escassear. Gostava do Portugal onde o Benfica era campeão pelo menos ano sim ano não. Agora há campeões programados.
Gostava do Portugal onde se ia à praia gozar o sol de Verão. Agora, dizem-me que o sol envelhece e que o cancro espreita.
Gostava do Portugal onde se comia decentemente. Agora, há pratos para o colesterol, para a hipertensão e para as hemorróidas, todos a saberem ao mesmo – a palha.
Gostava do Portugal onde as crianças ainda iam todos os dias para a escola. Agora, os carros entopem as ruas em que as escolas recebem os pais que não se esquecem de levar os filhos. Gostava do Portugal em que esses filhos eram mais uns putos que iam à escola. Agora são os reis lá de casa.
Gostava do Portugal em que havia crise constante. Agora, tenho saudades de uma boa crise – bons velhos tempos.
Gostava do Portugal ruidoso de manhã, em que buzinas de automóveis se misturavam com pregões de varinas. Agora, vamos ao Pingo Doce comprar peixe chileno e não se pode buzinar porque não é politicamente correcto.
Gostava do Portugal bonito, aquele que demorava uma eternidade a percorrer. Agora, temos estradas que nos levam a nenhures, estamos em Lisboa em três horas e se formos de Alfa nem para babar um sono temos tempo.
Gostava do Portugal das cidades cheias e vibrantes, da confusão das gentes que as habitavam, das suas ruas sujas e vivas. Agora, moram todos em gaiolas nos subúrbios desenhados a régua e esquadro.
Gostava do Portugal às seis, quando zuniam as sirenes para “arrear” do trabalho e as casas se enchiam de famílias famintas com muito para contar dos seus dias. Agora, não têm hora para chegar.
Gostava de Portugal cantinho da Europa, esquecido por todos excepto pelos emigrantes chegados para um mês de pausa no suplício. Agora, somos apenas periféricos, mas todos nos conhecem.
Gostava do Portugal onde os doentes hepáticos iam para Coimbra e sobreviviam com órgãos portugueses. Agora, morrem em Madrid à espera de órgãos… portugueses.
Gostava do Portugal em que um doente oncológico tinha tratamento a duzentos quilómetros de distância. Agora, ou se gasta no transporte ou no funeral – ou nos dois – em todo o caso nada resta para comer.
Gostava do Portugal dos Presidentes da República que subiam para cima de carros ao som de tiros. Agora, queixam-se das reformas.
Gostava do Portugal dos Primeiros-ministros que se dispunham a visitar localidades em que sabiam não serem bem vindos. Agora, não sabem sequer onde isso fica, apesar de ser em todo o lado.
Gostava do Portugal onde se gritava a plenos pulmões “25 de Abril, sempre! Fascismo nunca mais!”. Agora, anseia-se pelo germinar de um novo Salazar.
Gostava do Portugal onde os estudantes eram a reserva moral do povo e os precursores da mudança. Agora, aprendem economia e gestão financeira nas Universidades.
Gostava do Portugal onde quem tomava estupefacientes era drogado. Agora, o toxicodependente é um doente, e o fumador, um criminoso.
Gostava do Portugal dos gordos e dos doentes coronários. Agora somos todos saudáveis mas estão milhões com stress.
Gostava do Portugal dos restaurantes que cheiravam a comida. Agora cheiram a Harpic.
Gostava do Portugal onde os poetas declamavam na TV. Agora apenas vemos e ouvimos excelsos financeiros e economistas errarem previsões. 
Gostava do Portugal com defeitos. Hoje somos todos perfeitos.
As salas das morgues também são perfeitas.

17 comentários:

  1. Saudades do passado? Se bem me lembro ainda há muito pouco tempo dizias aqui no sítio que saudades só tinhas de uma coisa... do futuro!
    Ai, Cirrus que estás a ficar relíquia... :D

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  2. Não são saudades. São apenas factos. Por comparação com o que temos hoje em Portugal, esta cobardia, esta imoralidade... Talvez seja nostalgia dos maus tempos de outrora, sim... Mas no fundo, a nossa vida é o passado. O resto não existe.

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  3. Saudosista pá!
    Eu gostava era de voltar a ser o campeão de berlindes da minha rua!

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  4. A nossa vida é o passado e o presente.

    E como o hoje é o amanhã do ontem..

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  5. Saudades de algumas coisas, sim. Mas lembro-me bem de outras que não queria de volta! Vivi uns anos antes do 25 de Abril... Os suficientes para saber da miséria (sim, hoje também há mas não é semelhante), do frio, dos sapatinhos dois números acima para logo ficarem dois números abaixo, do medo, da ignorância... Continua a haver tudo isto, sei que vais dizê-lo, mas repito que não é nada que se assemelhe.

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  6. Dylan, nós era mais caricas...

    :)

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  7. Pronúncia, a nossa vida é o passado. O presente não existe.

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  8. Malena, sabes bem, pá, camarada, que não recuei a esses tempos! Isso irrita-me, porque sabes bem, pá!

    Porque achas que falei em presidentes em cima de carros e PMs a levar no focinho? Isso não te diz nada, porra?

    E sabes bem, TU SABES BEM que nunca me podia estar a referir ao Salazarismo e nem sequer ao Marcelismo. Tu és má como as cobras, pá!

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  9. muito bom post :)

    as coisas mudam, feliz ou infelizmente. mas há coisas que dão realmente saudade. :P

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  10. Ana, não se trata de saudades. Trata-se de contrastes. Apenas isso.

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  11. ...fazendo jus a um cliché que também dá nome a uma associação de beneficência da Terrinha, pelo menos aquando da escrita deste texto, tu viveste pá!!

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  12. Marco, de facto, Recordar é Viver!!

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  13. Havemos de construir um Portugal com futuro, tenho cada vez mais a certeza. vamos passar por estes anos negros, de um fascismo económico e politico, mas que são uma lição para aqueles que acreditam nestas democracias de ratting e , e levará os povos na europa a querer democracia a sério!

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  14. "Gostava do Portugal dos restaurantes que cheiravam a comida. Agora cheiram a Harpic."
    Há muito que não dava uma gargalhada tão sonora diante do PC!!!
    Subscrevo inteiramente o post, também tenho saudades do Portugal da minha infância e adolescência...

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  15. Tripalio, o meu medo é mesmo que Portugal e a Europa tenham mesmo de passar por muitos momentos de um passado doloroso.

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  16. André, mas não é ao que cheiram??

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