sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O CRISTIANISMO E A SOCIEDADE OCIDENTAL



              Trabalho escrito para a disciplina de Antropologia das Religiões, Licenciatura em História, Minor em Cultura e Religião


A afirmação de João Paulo II, segundo a qual “o cristianismo é uma religião entranhada na história” pode parecer unicamente um lugar-comum. A verdade é que a noção histórica, senão social ou mesmo política, do cristianismo está fortemente impregnada desse facto inegável – o cristianismo não é apenas uma teoria religiosa abstracta, mas antes uma realidade social dificilmente descartável em qualquer discussão no âmbito da sociedade, de forma geral, e da sociedade e respectivos modelos éticos (e mesmo morais) ocidentais, em particular.

Há diversos aspectos interessantes na afirmação, aparentemente inócua, de João Paulo II. Há o aspecto histórico propriamente dito, o aspecto religioso e o aspecto social. Dado que as raízes do cristianismo vão muito para além do nascimento de Cristo, tende-se a procurar justificar a progressão histórica do cristianismo não numa vertente social, mas antes quase puramente historicista ou puramente religiosa. Mas damo-nos conta, facilmente, que os três aspectos estão intimamente interligados.

Qualquer religião, antiga ou moderna, e genericamente, tem, na sua génese, para além dos seus dogmas, que representam a sua essência espiritual, um carácter civilizador. Quer estejamos a falar de judaísmo, de cristianismo, islamismo ou budismo, é inultrapassável o facto de que qualquer confissão religiosa incorporar, nos seus desígnios, a dimensão social da sua massa de seguidores ou fiéis. O cristianismo não foge a essa regra – antes pelo contrário – tendo tido diversos momentos civilizadores ao longo da sua longa história, e não apenas, como outras religiões, no momento de génese ou compilação de princípios de fé e ética.

Julgo não ser demasiado fantasista colocar a génese do cristianismo na génese do judaísmo. E esse é o primeiro momento civilizador e, ao mesmo tempo, profundamente dogmático, de toda a doutrina cristã. É com Moisés que o monoteísmo definitivamente se institui, ao mesmo tempo que é constituído o primeiro conjunto de leis – a Lei mosaica. Primeiro, a partir da lei fundamental que são os 10 Mandamentos, depois através de diversas adaptações que fundaram o corpo legal da Lei. Esta Lei não é apenas um código legal – nesse aspecto, já os sumérios e egípcios levavam milénios de experiência. É uma Lei absoluta, que não se separa da Fé, da religião. Nesta altura, o Judaísmo é uma teocracia pura, uma vez que elege Deus como seu governante supremo, em todas as dimensões humanas. Mas é também a primeira Lei que consagra o valor supremo da vida humana, ao afirmar que nada é mais precioso que essa vida humana, pois ela pertence apenas a Deus, que criou, por amor apenas, todas as coisas, e tornou o universo bom, mas apenas uma coisa criou à sua semelhança – o Homem.

Os ensinamentos de Cristo, porém, representam um grande segundo momento civilizador. Ao longo dos séculos, o judaísmo ter-se-à tornado cada vez mais hermético, cada vez mais inflexível e cada vez mais dependente da Lei mosaica. Cristo, nas suas pregações, não altera a Lei de Moisés. Porém, explica-a com novos argumentos, e acrescenta-lhe o 11º mandamento: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Exemplos de relativização da Lei não faltam, ao longo dos tempos do ministério de Cristo. Perguntado se era lícito pregar num Sábado, responde com um exemplo simples e fulminante: se uma cabeça de gado cair num poço num Sábado, não vai o seu dono salvá-la? Quando defendeu a prostituta que a seus pés se arrojou, fugindo da multidão que a queria lapidar, com o famoso “Quem nunca pecou, atire a primeira pedra”. Ou seja, Cristo não só relativiza como refunda a Lei, uma vez que tende a distinguir os conceitos, até aí coincidentes, de pecado e crime. Os pecados podem ser perdoados, os crimes não – “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”, ou seja, começa a distinguir a esfera social da esfera legal e religiosa, que, naquele tempo, eram uma e a mesma coisa.

Por outro lado, o 11º mandamento é elucidativo. A Lei mosaica prezava essencialmente a vida humana porque esta pertence unicamente a Deus. Contudo, Cristo, o Deus feito humano, também tem uma vida humana. E dá-a pelos fiéis – na verdade, pelo povo de Deus, numa versão agora alargada a todo o mundo e não apenas aos judeus. Logo assim, o 11º mandamento adquire uma nova dimensão. Não é só uma demonstração mosaica de amor de Deus, já que o segundo mandamento manda amar o próximo e o primeiro manda amar Deus. Este novo mandamento, no entanto, não manda amar o próximo, vai para além disso, manda dar a vida própria pelo próximo, se tal for necessário. Ou seja, a santidade da vida humana permanece, mas não é um valor absoluto. Mais uma vez, a preservação da vida é relativizada, e circunstâncias há em que dar a vida por determinada pessoa ou causa se torna aceitável – e não será por acaso que dez dos apóstolos de Cristo tenham morrido martirizados pela causa cristã, e João Evangelista tenha sido martirizado pelo mesmo motivo.

Nota-se, assim, e por motivos doutrinários, decorrentes das pregações de Cristo, uma evolução no que concerne à forma como a vida humana deve ser encarada. A sua prática, no entanto, não é menos importante. Pregando para os pobres, vistos na altura como alvo do castigo de Deus – os pobres eram pobres por castigo divino, próprio ou ancestral, aliás, uma teorização que merece reflexão, pois pelo menos o ramo protestante do cristianismo novamente o afirma – Cristo reafirma a igualdade de oportunidades. Ao falar com a mulher samaritana junto ao poço de Jacob, reafirma que os judeus fazem parte do povo de Deus, que é todo o Homem, e não representam uma minoria escolhida. Ao afrontar os vendilhões no pátio exterior do Templo, afronta a ganância humana. E finalmente perdoa quem o mata. Mais uma vez, as noções de pecado e de crime estão bem dissociadas.

A Igreja incorporou estes e muitos mais ensinamentos de Cristo. Não é apenas um enorme Humanista, como um grande civilizador, como haviam sido Moisés ou o Buda, e como haveriam de ser Maomé ou o Jina. Mas não é apenas um grande civilizador como eles, mas antes de mais, um grande humanista. É verdade, porém, que nem sempre o portador destes ensinamentos, a Igreja, se comportou à altura dos mesmos, e provavelmente hoje, e não há muito tempo, isso fica bem patente. Basta pensarmos em atrocidades como as Cruzadas, onde nem os irmãos cristãos de Constantinopla foram poupados, a Inquisição, as perseguições a judeus e heréticos. No século passado, a conivência com os holocaustos judeu e sérvio, a resistência imensa que ainda hoje se mantém em Roma sobre o controlo de natalidade e a prevenção de DSTs e aos avanços científicos – tudo factores que nos poderão levar a descartar o valor moral do cristianismo, mormente do catolicismo.

O protestantismo não fica atrás. A ânsia do capitalismo desenfreado, para quem a ideia de ser pobre é culpa exclusivamente própria, a própria instituição sangrenta do ramo protestante do cristianismo, e a atroz ideia de que não são as obras que salvam, mas unicamente a Fé, indo ao cúmulo calvinista de que Deus já prenunciou o destino de cada alma, são sinais de que a mensagem original de Cristo, provavelmente, terá sido esquecida.

Tal não é inteiramente verdadeiro, porém. Toda a nossa sociedade ocidental é baseada na moral judaico-cristã. E, a avaliar por outras paragens do globo, talvez essa moral não seja a pior das morais. Prova mais que evidente disso é a Declaração dos Direitos do Homem, que consagra todos os valores judaico-cristãos, e mais cristãos que judaicos, em boa verdade. Por outro lado, o esforço de solidariedade, que as próprias Igrejas por vezes confundem com o pobre conceito de caridade, tão prejudicial da condição humana, é notório e, mesmo feito este reparo, digno de admiração.

Relativamente à doutrina cristã, desde os tempos do Vaticano II, em 1965, que a aproximação de doutrinas entre os três ramos principais do cristianismo se tem vindo a dar. Ao mesmo tempo, a própria Igreja católica parecia vir a trilhar um caminho de regresso à pureza cristã. Não será a eleição de Bento XVI contraproducente?

Bibliografia:

·         Delumeau, Jean – As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Presença, 1997. 2ª Edição, ISBN 972-23-2241-9

·         Vázquez Borau, José Luís – As religiões do Livro. Lisboa, Ed. Paulus, 2008

·         Carmo, António – Antropologia das Religiões. Lisboa, Universidade Aberta, 2001. 1ª Edição, ISBN 978-972-674-359-0

·         Bíblia Sagrada. Lisboa, imp. Gráfica Europam, 1982. Trad. João Ferreira de Almeida, imp. 1681, Amsterdam

7 comentários:

  1. Texto excelente!

    ResponderEliminar
  2. As falas do papa Bento sao sempre significativas. Gostemos ou nao dele, eu nao gosto, suas falas sao muito espertas. Ele nao e cristao! Mas isso e outro assunto.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bem vindo! Por acaso, sempre me pareceu que Bento XVI é mais maçónico que cristão... Mas mesmo assim é Papa.

      Eliminar
  3. O judaismo e supersticioso e excludente. O cristianismo e hipocrita e "impossivel". O islamismo e uma religiao de caserna. Todos nos, judeus, cristaos, muculmanos, herdamos tudo isso!!
    Chega de anatema!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Para não gostar, é necessário conhecer...

      Eliminar
  4. Eu conheco e "gosto"! Se "gostar" se aplica ao caso! (risos)

    ResponderEliminar

LEVANTAR VOO AQUI, POR FAVOR