Trabalho escrito
para a disciplina de História do Judaísmo, Licenciatura em História, Minor em
Cultura e Religião
Escrever sobre o Êxodo não é uma tarefa
que se possa fazer de forma linear ou puramente historicista. Trata-se de um
acontecimento não só importante como fundamental para a religião judaica e, por
arrasto lógico, para todas as chamadas religiões do Livro. Há pelo menos três
dimensões pelas quais podemos analisar o Êxodo. Refiro-me às suas dimensões
religiosa, política e social (ou cultural). Tentarei, neste breve texto, e com
base na História dos Judeus de Paul Johnson, relevar, ainda que de leve, cada
uma destas dimensões.
Em que medida o Êxodo é determinante para
a religião judaica? Bem, esta questão não é difícil de responder como, aliás,
Johnson bem vinca no seu trabalho. Na verdade, o Êxodo não é mais que o próprio
âmago histórico-religioso de toda a moral e religião judaicas. Mas convém
contextualizar. Johnson afirma que nem toda a nação israelita estaria no
Egipto, o que é provável. Se é verdade, e tal parece ser o caso, que os hebreus
consistiriam nas tribos habiru que regularmente rumavam ao Egipto em épocas de
carência alimentar, então é verosímil que nem todas as tribos israelitas
estariam no Egipto naquela altura. Assim mesmo, há que lembrar que, até então,
a religião judaica existia em essência, mas não propriamente na prática.
Ou seja, desde o tempo do pacto entre
Abraão e sua futura prole e Deus, que o povo hebreu pode ter tido como
arquétipo religioso o monoteísmo, a devoção a um Deus que lhes prometia as
terras entre o Nilo e o Eufrates em troca de devoção exclusiva e vivência
concordante com tal. No entanto, é também certo que até ao aparecimento de Moisés,
essa crença permanecia adormecida e algo dúbia. O facto de o Êxodo ser o
cumprimento da promessa de Deus, o seu retorno à alma do povo hebreu, não deve
ser menosprezado.
Contudo, há mais factores a concorrer
para que o Êxodo seja o centro da fé judaica. Tal como Johnson preconiza, o
cumprimento da promessa de Deus é fulcral. Contudo, que dizer do desenrolar dos
acontecimentos que culminou no Êxodo? Isto é, qual a dimensão religiosa desses
acontecimentos? E mais do que exactidão histórica, como retrata a tradição,
nomeadamente a Torá, esses acontecimentos? É necessário lembrar que as Pragas
do Egipto, independentemente de se terem dado ou não, são sinais de Deus, uma
vez que Moisés as anunciou e, na prática, as despoletou, nunca através do seu
próprio poder, mas antes, e pelas suas palavras, pelo poder de Deus. Quão
aterrador pode parecer esse poder a quem lê a Torá, quem lê o livro do Êxodo?
Certamente aterrador quanto baste, e prova cabal do poder que Deus está
disposto a dar ao seu Povo Escolhido. A última praga, o aniquilamento dos
primogénitos do Egipto, é particularmente terrível, mas igualmente
particularmente significativa. Esta praga é de novo o cumprimento do patriarca
Abraão e do seu pacto último com Deus, que lhe exigiu o sacrifício do seu filho
amado, Isaac. Deus recuou na ordem, então. Mas não recuou na hora de libertar o
seu povo.
A dimensão religiosa do Êxodo culmina na
abertura das águas por Moisés, mais uma prova do extremo domínio de Deus sobre
não só a vontade dos homens, mas antes sobre as forças da natureza, e encontra
o seu prolongamento lógico no face a face de Moisés com Deus, ao qual o
primeiro não escapa sem o desfiguramento próprio de quem se vê em tal situação,
a de contemplar a face da glória por excelência, ao receber nas suas mãos os
Dez Mandamentos, ao fim e ao cabo, a base da futura Lei, a mosaica.
Johnson não se detém em considerar todos estes
factos como inovadores. Além de inovadores, considera-os como uma evolução
efectiva da mente humana, face ao imobilismo do pensamento, então o acadiano,
egípcio e hitita. Algo injusto. E injusto por uma razão, principalmente quando
compara o monoteísmo extremista israelita com o politeísmo egípcio. É certo,
sem dúvidas, que a religião israelita envolve e evolui, requer do seu povo o sacrifício
mas também o entendimento do mesmo. Estabelece como base para todo o acordo
entre Deus e o seu Povo a terra, a terra prometida, a nova casa dos hebreus,
dos israelitas. Contudo, não é a Lei de Mâat mais sensata que a Lei mosaica?
Não prefere a primeira o racionalismo, não constitui uma lei do bom senso, do
equilíbrio, ao passo que a segunda não constitui uma constante agressão de Deus
sobre o seu povo, a quem nada é permitido que não esteja na Lei de Deus? Por
certo, tal visão de Johnson pode ficar a dever-se a três milénios de monoteísmo
e a pouca predisposição para um entendimento de uma sociedade entretanto
esmorecida e desaparecida.
Culturalmente, o Êxodo inicia a era da
Lei, a mosaica. Compilada idealmente pela mão do próprio Iahwe, cedida aos
homens, a Lei mosaica não é uma lei religiosa tal como percebemos a lei da
Igreja Católica, por exemplo. Vai muito para além disso. Qualquer ofensa a Deus
é uma ofensa à sua Lei e vice-versa. Johnson foca intensamente este ponto, que
me parece igualmente pertinente: não há diferença entre pecado e crime.
Qualquer pecado é um crime, qualquer crime é pecado. Não há, como nos dias de
hoje, lugar para o legalmente lícito mas eticamente reprovável. A Lei é
absoluta e não há outro castigo que não a expiação do pecado.
Numa altura em que as sociedades antigas
mantinham já códigos criminais bem definidos, como os acadianos e babilónicos,
a verdade é que Lei mosaica não define apenas a posse, como os outros códigos.
Nesses, até uma vida humana é uma posse, quando muito própria, nas mais das
vezes, de outrem. Tirar uma vida humana é um crime, portanto, passível de
reparação monetária ou física. A Lei mosaica santifica a vida através da máxima
vinda de Deus de que todos os homens são igualmente feitos à Sua imagem.
Assim, Johnson põe em evidência não só o
carácter civilizador da Lei, semelhante às leis osíricas ou enkianas, mas
também a santidade da vida humana. Por outro lado, não entrega inteiramente a
vida ao seu portador, pois ela é uma graça de Deus e, em última instância, Lhe
pertence. Caso para dizer que a expiação pelo crime de morte, por exemplo, é
igualmente a morte, talvez não pelo indivíduo morto, mas antes pela pertença
dessa vida a Deus exclusivamente. Algo redutor, mas ilustrativo da força da
Lei. Mas se a vida é um exemplo extremo, o que dizer do adultério? Ambos os
adúlteros são passíveis de condenação à morte. A lei não se limita a civilizar,
impõe a civilização, impõe a moral. Lembro, numa altura em que o adultério não
era encarado como crime ou sequer ofensa maior pelos povos grandes que então
existiam. Bem como o incesto, ou a bestialidade, ou a sodomia.
A dimensão política do Êxodo é igualmente
tremenda. Trata-se da libertação de um povo de uma dominação por um Império
todo-poderoso. Não é crível que os hebreus tenham sido escravizados pelos
egípcios, mesmo considerando o conceito, muito fluido, de escravo, durante o
Império Médio. Contudo, a Bíblia diz-nos que faraó temeu a dimensão do povo
hebreu, como afirma Johnson. Tal também não é por certo inteiramente correcto,
dadas as deambulações pelo deserto subsequentes ao Êxodo, que não se compaginam
com uma enorme dimensão populacional, ao passo que o Egipto de
(presumivelmente) Ramsés II seria uma nação imensa. Mas, seja como for, e como
refere Johnson, é a primeira vez que uma revolta de oprimidos encontra a
liberdade dos mesmos.
Decorrendo da lei, não é fácil a nenhum
líder israelita impor domínio absoluto. A Lei impõe Deus e não homem algum, e
até mesmo a Moisés não é permitido entrar em Canãa, apenas a mirando do alto do
Nebo. No entanto, Israel acaba por se impor pela mão de Josué, general de
Moisés, conquistador da (já então) quatro vezes milenar cidade de Jericó. É um
jogo de alianças e acordos, não tanto ou apenas de lutas e refregas, que vai mais
tarde constituir a Israel unificada, imposta, curiosamente, sobre os vencidos
tecnologicamente muito superiores aos hebreus, mas quiçá menos arreigados nas
artes da peleja ou, por outro lado, menos versados nas artes obscuras da
diplomacia antiga.
Bibliografia:
·
JOHNSON, Paul – História
dos Judeus. RJ: Imago, 1995. 1ª Edição, ISBN 853-120-421-6
·
TAVARES, António Augusto – Civilizações Pré-Clássicas. Lisboa: Litografia Amorim, 1995. Texto
de Base, ISBN 972-674-141-6
·
JACQ, Christian – Poder e Sabedoria no Antigo Egipto.
Lisboa: Pergaminho, 1998. 1ªEdição, ISBN 972-711-203-X
·
HOLTZ, Theo – A História dos Judeus. São Paulo:
Via Lettera, Janeiro de 2009. 1ªEdição, ISBN 978-85-7636-082-7
Apenas posso agradecer-te a partilha. Aprender até morrer! :)
ResponderEliminarSe podes, podes.
EliminarTanto pude que agradeci! :D
EliminarPerder tempo com a questão judaica não lembra nem a Deus nem ao Hitler...
ResponderEliminarNão percebi aonde queres chegar?
A legitimação do sionismo sobre os restantes povos e o consequente dominio do mundo pelo chamado "povo eleito"
Baixa Tensão
Meu caro, o seu comentário é mesmo para levar a sério ou não leu as letras pequenas? É que não quero ser deselegante sem perceber antes qual a sua situação, e só o serei, como o foi, caso se verifique a primeira hipótese.
EliminarMas acho que é a segunda.
Um abraço.